segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Rebelião 42: As Relações Perigosas


Cheguei há duas semanas na minha quinta em Sintra, e precisei de quase doze horas para regenerar meu braço e alguns cortes feios que fizeram com que meus Pitt Bulls Terrier não me reconhecessem. Quem fez aquela gárgula sabia o que fazia, e fez muito bem feito. Fica-me o gosto de saber que terá de fazê-lo outra vez, e a decepção de comprar novos cães. Alguma coisa me diz que não foi o velho Bolton quem preparou aquela surpresa para invasores — ele era um homem muito culto, mas jamais soube de um bruxo que morresse de infarto aos setenta e oito anos. Já vi Guardiães animarem enormes carvalhos como se fossem grandes constructos de madeira...

Não, estou ficando paranóico com a idade.

De repente sinto um movimento às minhas costas — ando o tempo todo com o Manifesto Radar em atividade, e assim sinto qualquer coisa à minha volta num raio de quinze metros; um pouco de paranóia é uma coisa sadia — e ataco com muita força usando um Ferrão Mental que seria capaz de matar um ônibus de mortais. Ele resvala em algum tipo de defesa psíquica e explode todos os vitrôs de minhas janelas. Alguns deles são mais velhos que eu.

"Por favor, Sr. Paulo, não estou aqui para brigar."

Giro displicentemente na cadeira em que estou sentado, ainda folheando um Liber Joannis Sapientiae e olho meu interlocutor. Devo acrescentar que estou irritado. Apenas uns poucos amigos visitam esta quinta, e em especial minha biblioteca, e este é um perfeito desconhecido. Olho seus olhos azuis e frios, sua coma negra bem penteada e presa em um longo rabo-de-cavalo. Ele está vestindo um terno preto Alencastri — sei porque é ele quem faz também meus ternos — e mantém suas mãos cruzadas à frente do corpo.

"V. Sª. invadiu o solar de minha família e levou alguns de meus livros — por favor, apenas deixe-me concluir — mas não é por isso que estou aqui". Seu português é muito fluente, e ele fala com um sotaque quase luso, mas percebo na inflexão de algumas consoantes que ele é britânico na verdade. Saxões, melhores de se lidar que eslavos e gauleses.

"A que devo sua visita, Sr..."

"William Charles Bolton. O cavalheiro cuja morte presenciou era um de meus netos, e o responsável por parte de meu acervo literário. Na verdade, os livros que estão em seu poder são cópias — não se preocupe, as fiz com apenas alguns meses de diferença em relação aos originais. O que me interessa nisso tudo, senhor, é sua pessoa".

Nos avaliamos com cuidado. Sua aura ondula mansamente como o mar sob um céu prestes a estourar em tempestade, e apesar de sua relativa tranqüilidade, os bloqueios mentais que mudam de configuração a todo momento mostram que ele está perfeitamente en garde e muito tenso. Ótimo, porque eu fico perigoso quando estou irritado. Não escondo meu poder, nem o mascaro: com um movimento de minhas mãos, os vitrôs quebrados se recompõem, ajustando-se aos seus lugares de origem nas janelas. Acho que nos entendemos, e cada um está na posição em que se pode manter.

"Continue, por favor, Sir Bolton."

"Quando se está sob este céu por muito tempo, uma coisa que percebemos é que a mudança é tediosa. Embora ela pareça dinâmica no calor dos acontecimentos, o distanciamento seguro de alguns séculos mostra que nada mais é que um mosaico que gira algumas vezes, mas continua o mesmo. O senhor esteve em Dublin, no Irish Eyes Pub, em 12 de abril de 1968, correto?"

"Sim, correto."

"Sei disso, com certeza, porque uma explosão matou todos os freqüentadores do bar naquela noite, à exceção de dois. E só sei que você sobreviveu porque eu estava preso nos escombros quando o vi afastar as pesadas toras em chamas. Com o olhar."

Até aqui, pensei que fosse algum investigador paranormal tentando parecer algo mais. Começo a mudar de idéia. Fui horrivelmente extravagante com os destroços do salão do pub pois achava que estava sozinho. Só uma testemunha ocular poderia saber que eu usei telecinese para me livrar das vigas.

"Procurei o senhor por muito tempo depois daquilo. Sem sucesso, é claro. Até que o senhor esbarrou em mim. Li as últimas reminiscências de meu guardião destruído, e o senhor pode imaginar que uma pessoa com os recursos certos poderia chegar até aqui."

"Sem dúvida, Sir Bolton. Contudo, embora esteja impressionado com sua habilidade, nada do que me disse esclarece seus objetivos, ou seu interesse em mim. Não é saudável interessar-se tanto pela minha pessoa — se o senhor teve recursos para me encontrar, certamente também tenho recursos para que ninguém mais o encontre, por isso, sejamos claros e diretos."

"Como disse, não estou aqui para lutar", ele fala com tranqüilidade. Não preciso mais provocá-lo. Se existe um coisa que aprendi em minha vida é que pessoas que não aceitam provocações são as mais perigosas. "Tudo o que quero, Sr. Paulo, é olhar para a multidão e ver, para variar, que outro rosto olha para mim com familiaridade. Os de minha casta geralmente não suportam a companhia uns dos outros, e a eternidade pode ser deveras enfadonha sem uma conversa decente e um pouco de brandy entre semelhantes. O que me diz?"

Um imortal solitário? Ele não é nefilim, e todos os meus sentidos místicos me dizem que também não é anjo ou demônio — de fato, não vejo qualquer conexão entre ele, Sheol e Shamaim. E pode haver vantagens...

"Se há uma coisa que não posso recusar, Sir Bolton, é brandy e um dedo de prosa. Algo mais?"

"Sim. Todos os livros que adquiriu em minha biblioteca são seus — considere-os um presente de cortesia — menos o Renatorum. Não posso correr o risco de que ele venha a cair em outras mãos. Além do mais, ele não tem qualquer utilidade para o senhor. Trago comigo outro item que talvez o interesse mais — eu o encontrei enquanto tentava achá-lo."

Um estojo de pergaminho surge sobre a mesa. O abro e sinto o cheiro familiar de mofo e velhice. Sou versado o bastante no reconhecimento destes itens para saber que ele é original, e deve ter uns cem anos. Pode ser a receita de bolo de um frade franciscano, ou pode ser algo decente, capaz de prender minha atenção. Isso está começando a ficar interessante.

"Certo", estalo os dedos e o Renatorum voa da estante até as mãos de Bolton. Mais um ponto para minha intuição: microfilmá-lo foi uma boa idéia. Ele acaricia o livro e sorri.

"Acredito que foi um bom primeiro contato, Sr. Paulo. Da próxima vez que nos virmos, que seja como convidados, e não invasores. Gosto do ar da Península Ibérica, por isso, talvez nos vejamos novamente em breve."

"Será um prazer."

Ele faz uma reverência sutil e desaparece em seguida, levando o Renatorum. Abro o pergaminho com cuidado, curioso em ver do que se trata. Alfabeto cirílico, caligrafia caprichosa. Parece russo. Outra vez, um idioma eslavo. Por que ele me trouxe este documento em língua bárbara? Saberia ele...

Não, certamente não. Não perderei tempo tentando achar alguém por aqui que possa traduzir isso — pelas suas insinuações, é bem provável que tenha algo a ver com as nove famílias. E conheço alguém perfeito para o trabalho. Por algum motivo, sinto que tudo isso vai além de mim... e não posso me furtar a por em movimento a roda dos acontecimentos.

Continua nas Cartas Paulinas

AS RELAÇÕES PERIGOSAS foi escrito por Renato Simões

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