sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 51: Vivos e Mortos

O alto edifício de vinte andares situava-se numa das áreas mais nobres da Cidade do México. Sua entrada era muito bem vigiada por seguranças particulares e por um elaborado sistema de câmeras. Do outro lado da rua, protegidos pelas sombras da rua, dois misteriosos homens aguardavam pacientemente.

Os dois vestiam mantos negros que cobriam seus corpos por inteiro, e seus rostos ostentavam risonhas máscaras em forma de caveira. Seus nomes eram Enrique Royo e Jacob Ximeno. Eles estavam ali há mais de meia hora, aguardando o momento certo.

— As luzes do edifício já estão quase todas apagadas. O que eles iriam fazer num prédio empresarial? — ponderava Enrique.

— Vivemos num mundo de falsidade e dissimulação, Irmão Enrique. Todas as evidências apontam para cá. Só nos resta descobrir o andar, e usar as sombras para darmos início à invasão — explicou o paciente Jacob, que tinha um pombo negro pousada no ombro. Os dois homens eram integrantes da seita conhecida como Golgotha.

Enrique, que a seus pés tinha um gato melânico, procurava por alguma pista. Ouviu uma vozinha infantil atrás de si. Os dois animais fizeram um barulho forte.

— Eles estão na sala 1666. Estão sacrificando crianças ali, eles são homens muito maus.

Uma menina de uns oito anos, de cabelos castanhos e grandes olhos negros, conversava com os dois encapuzados sem nenhum esboço de medo.

— Os homens maus serão detidos, menina. Qual o seu nome? — perguntou Jacob.

— Meu nome é Cordelia Balesteras, senhor.

— Já sabemos o que necessitamos, Enrique, vamos agora! — sussurrou Jacob, que enquanto mesclava-se às sombras da rua e desaparecia, seguido imediatamente por Enrique, que repetiu o mesmo procedimento.

Enquanto isso, a menininha desaparecia no ar. Ela era um fantasma. Cordelia havia sido morta pelos mesmos assassinos que a Golgotha estava caçando agora. Quando aceita tornar-se parte da Golgotha, um homem passava a habitar um mundo onde os mortos participavam tanto ativamente quanto os vivos.

Enquanto isso, na mesma sala indicada pelo espírito, dois homens e uma mulher vestindo estranhos trajes de cor púrpura traziam duas crianças amarradas e vendadas. Um dos homens, mais alto e bem forte, segurava um punhal de bronze com inscrições hieroglíficas. A mulher, de cabelos oxigenados, puxava as duas crianças, que pareciam dopadas, com força para o centro da sala. O terceiro integrante, um homem moreno e calvo, seguia lendo em voz alta um texto em baixo latim. Quando levantou a cabeça, percebeu um pombo batendo na janela. Ele era inteiramente negro.

E seus olhos brilhavam num brilho prateado...

Soltando um palavrão, o homem remexeu apressadamente na gaveta buscando uma espécie de pingente. Antes que o nefasto ritual progredisse, a porta foi arrombada, e os dois agentes mascarados da Golgotha invadiram. Uma adaga lançada com incrível velocidade atingiu a mulher no pescoço. O felino saltou em cima do homem com o pingente, mas este o repeliu com um safanão. Mesmo arranhado, o homem continuou pronunciando algumas estranhas palavras, e seus ferimentos começaram a cicatrizar.

“O demônio está usando um talismã abissal!” Era a voz de Enrique que ecoava telepaticamente na mente de seu irmão Jacob. “Vamos nos livrar do outro primeiro!”

O mais forte dos demonistas sacou uma arma e tentou mirar em Enrique, mas os movimentos deste foram rápidos demais. As unhas do guerreiro da Golgotha cortaram fundo a carne do bruxo, quase arrancando sua mão. Os integrantes da Golgotha adquirem inúmeras capacidades especiais quando vestem as suas máscaras, e uma delas é o fortalecimento de dentes, ossos e unhas, que tornam-se duros e cortantes como diamante. O bruxo protegido pelo talismã atirou uma mistura gelatinosa em Jacob, que sentiu a pele queimando.

— Vocês vão se arrepender de invadir nosso santuário! — praguejou o Bruxo, que riu quando o pombo tentou atacá-lo. — Ah, ah, usar um pombinho como arma. Ah, Ah! Meu corpo está protegido. O que um pássaro sarnento pode fazer?

Ele nem pôde começar uma nova frase, a ave guardiã de Jacob, que atendia pelo nome de Protección, fingiu um ataque ao rosto do bruxo e com um desvio rápido, partiu a corrente do colar do feiticeiro, lançando o pingente no chão.

— Que Satã... — antes de completar a blasfêmia, o bruxo caiu morto, com a garganta cortada pelas adagas de Ximeno. Os feiticeiros tendem a ser arrogantes, e não são todos os que conhecem a Golgotha.

Enrique amparou as crianças, que ainda pareciam meio entorpecidas. Levá-las para fora do prédio seria difícil, mas nada que não pudesse ser feito.

Um som de vidro estilhaçado veio do fundo da sala, onde havia uma espécie de laboratório improvisado. Em meio a um cheiro que misturava vinagre e enxofre, uma criatura demoníaca apareceu rastejando. Era do tamanho aproximado de um cachorro pequeno, possuía dezenas de olhos pedunculares de cor verde espalhados pelo corpo. Arrastava-se como uma enorme lagarta, e possuía mandíbulas afiadas. Era um demônio meri’im, a mais baixa classe das criaturas infernais. Prendia com tentáculos gelatinosos os três fantasmas dos bruxos mortos.

As três bocas tentaram projetar línguas compridas e viscosas na direção das crianças, mas os dois animais, Protección, a pomba de Jacob, e Cazador, o ocelote de Enrique, golpearam o meri’im com violência, fazendo-o recuar.

Jacob puxou do manto uma pequena cruz de marfim, com entalhes escarlates em hebraico. Era “La Cruz Dolorosa”, uma arma muito eficaz contra criaturas abissais.

Apontando a cruz para o monstrinho, este começou a dissolver-se, enquanto um novo signo vermelho aparecia em um dos braços simétricos da cruz. Derretendo como se fosse um tablete de manteiga, o demônio soltou um horrível e desagradável assovio, até desaparecer por completo. Quando o monstro sumiu numa poça fumegante e fétida, os três fantasmas foram tragados pelo ectoplasma abissal. O grito de dor foi horripilante, mas este era o preço que devem pagar todos os agentes do Mal. A Golgotha atua para dar um Fim apropriado a todo aquele que ousar compactuar com a forças tenebrosas.

Agora o importante era levar as crianças para um lugar seguro. Enrique e Jacob olharam pela janela, em busca de sombras escuras o bastante para encobrir a sua fuga.

Tanto Enrique como Jacob ouviram palmas neste momento. Sentado na mesa, eles reconheceram seu colega Pedro Martínez. Vestia uma manto branco e seu disfarce de caveira era negro como alcatrão.

— Parabéns, Irmãos. Sua missão foi um sucesso, o Inferno sofreu mais uma baixa importante esta noite. Já não posso falar o mesmo de minha missão. Esta noite invadi um covil de Adoradores da Lua Negra...

A voz era serena. Enrique e Jacob continuaram ouvindo.

... e fui morto. Seguiremos juntos a partir de agora, mas eu combaterei do outro lado da Mortalha. Azrail, Zelai por Nós!

— Azrail, Zelai por Nós! — repetiram os dois, sem demonstrar nenhuma tristeza. A Golgotha é uma organização onde os Irmãos podem estar vivos ou mortos, não importa. Mesmo após sua morte, um Irmão continua ajudando seus companheiros vivos, graças às bênçãos do Anjo da Morte.

E na madrugada quente do verão mexicano, duas crianças foram devolvidas a seus respectivos pais, sãs e salvas. Os pais jamais saberão que foram os benfeitores.

VIVOS E MORTOS foi escrito por Simoes Lopes

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