sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 63: Renegados

O jovem escalava as pedras cobertas de limo com atenção redobrada. Escorregadias e com muitas saliências soltas, margeavam um minúsculo córrego quase oculto, que descia rápido do alto do morro. Mais adiante, protegida por uma muralha de árvores de casca negra e apodrecida, uma pequena cabana de alvenaria indicava que as instruções do velho marinheiro do cais estavam absolutamente corretas.

Passando com dificuldade da trilha pedregosa que cobria o traiçoeiro chão de barro vermelho, Juliano tentava equilibrar seu corpo elegante. O visual sofisticado e as roupas pretas de veludo faziam um contraste chocante com o aspecto bolorento do casebre. Com um ar de nojo, ele bateu na porta sem muita convicção.

Uma vez.

Duas Vezes.

Muitas Vezes.

Nenhuma resposta.

A floresta de árvores raquíticas e troncos cobertos de limo era de um silêncio sepulcral. O rapaz não ouvia nenhum som, era como se nada vivo estivesse ali. Nenhum animal movia-se naquele território, tampouco ouvia-se o canto de algum pássaro. Desapontado e sentindo um crescente desconforto, tirou um minúsculo vidro de remédios de um dos bolsos e engoliu avidamente dois comprimidos de um verde esmaecido. Já estava planejando o longo caminho de volta, quando a porta se abriu subitamente, com um ruído desagradavelmente irritante.

Um velho de longos bigodes cinzentos com manchas de um amarelo forte, explicados pelo cigarro fedorento que ainda rolava preguiçosamente entre seus dedos, cumprimentou-lhe com um sorriso banguela.

— Boa noite, Senhor Juliano Pires, sinta-se em sua própria casa! O que um rico corretor de imóveis tão jovem e bem-sucedido deseja com um ex-marujo caquético e quase esclerosado? Não me parece que as histórias de marinheiros e pescadores sejam tão populares de onde o senhor vem...

— Como você sabe que eu... — tentou explicar-se, com um tom gaguejante e um indisfarçável medo.

— Bem... — os dentes amarelos abriram-se num debochado sorriso — ...pela sua aparência, vejo que não tem o hábito de freqüentar barracos imundos como o meu humilde lar. Assim, imagino que o senhor deve saber muito bem que eu sou um sujeito igualmente bem informado — a voz monótona era pontuada por um pigarro constante, mas que não o impedia de continuar falando. — E conheço também sua “outra” vida, e imagino que o motivo que o trouxe aqui relacione-se a ela. Desculpe se falo demais... — pigarreou duas vezes, com força — ...mas não tenha medo, não sou um sujeito indiscreto. Sei guardar segredo.

A atmosfera quente e úmida e o cheiro de mofo eram insuportáveis. O velho marujo, com os olhos sonolentos, continuava com a sua conversa arrastada, alheio às intempéries. Juliano, ao contrário, suava muito, e passava o lenço branco continuamente na testa e rosto.

— Filho, permita-me chamar-lhe assim, já que tenho idade para ser seu pai, quiçá avô, sinto que você tem muito ainda o que aprender. Em todos meus anos naquela maldita seita, e acredite, não foram poucos, aprendi muitas e muitas verdades. Algumas deram-me a ilusão de ser sábio, outras a de ser forte, mas agora o que eu mais desejo é simplesmente esquecer tudo isso.

O rapaz finalmente criou coragem para interromper o velho:

— Anotações que estão em meu poder mencionam uma “Segunda Rebelião”. Uma conhecida nossa em comum orientou-me a procurar o senhor — disse Juliano, enquanto enxugava o suor que empapava a camisa.

— Amiga? Hmm... — o velho fechou os olhos, como se tentasse lembrar de quem era.

— Eu não gostaria...

— Não se preocupe,meu filho. Já sei quem foi a nossa “amiga”, é uma pena que ela tenha falecido. Minha memória não está tão ruim assim. Prossiga!

— Há meses que estudo referência à tal Segunda Rebelião. Gostaria que o senhor viesse comigo para analisar alguns fragmentos...

O velho sentou-se num sofá de aparência centenária levantando uma nuvem de poeira. Gritou um palavrão, e cuspiu nas tábuas de madeira que formavam o chão da cabana. Começou a falar baixo consigo mesmo, como se travasse um ácida discussão interior. Lançou um olhar repreensivo para Juliano.

— Você não entende que existe uma razão para eu me esconder? Ah, jovens! — o marujo calou-se então, coçando a cabeça, e deu mais uma tragada no cigarro. Jogou a guimba no chão, e ponderou por mais uns instantes, que para o rapaz pareceram durar horas.

— Está certo, vou tirar algumas de suas dúvidas, mas não todas. O porquê de uma rebelião no Inferno? — o velho encarou o jovem com um ar de superioridade. — Sempre existem aqueles que mandam e aqueles são mandados. Sempre foi assim e sempre será! Isto se chama Hierarquia! — as mãos do velho ficavam cada vez mais trêmulas à medida que ele prosseguia no assunto.

Juliano Pires, continuava calado, prestando atenção.

— Mesmo no Inferno, este princípio universal (chamemos assim) criou uma espécie de casta superior, um grupo de anjos caídos que detinha o poder, e conseqüentemente seus privilégios. Opressores e oprimidos, luta de classes, chame como quiser, mas isto gerou uma espécie de atrito que cresceu até níveis colossais. Um grande potencial começou a se acumular vagarosamente.

O velho parou por um momento, como se estivesse querendo uma pausa dramática. Acendeu mais um cigarro num fogareiro a álcool que estava no chão. Densas nuvens de fumaça branca evolaram pelo cômodo. Juliano sentiu vontade de tossir, mas se conteve. O velho então continuou a “aula”.

— Preste atenção, meu jovem, isto prova que até nos abismos mais sombrios do Sheol o anseio por transformação existe. E assim tivemos a dita Segunda Rebelião, precocemente encerrada por eventos imprevistos, ainda inexplicáveis. Graças a isso, hoje estes rebeldes estão caminhando pela Terra e fazendo filhos.

O rapaz pensou bem no que acabara de ouvir. Foi só neste momento que ele percebeu que faltava ao velho dois dedos na mão esquerda.

— Estes “filhos de anjos” são a chave para muitos planos traçados pelas mais diversas seitas e organizações arcanas. Você não imagina como estes planos me causaram problemas... Sua falecida amiga que o diga. Vá embora.

— Como ? — Juliano mostrou-se surpreso pela última frase.

— Vá embora — repetiu.

— Mas, senhor... — o rapaz continuava insistente.

— Vá embora! — o grito saiu num tom quase explosivo. — Eu já lhe disse tudo!

Juliano estava inconformado. O velho tentou empurrá-lo para fora da cabana.

— Que planos são esses? Preciso saber!!! — gritou também, quase derrubando o idoso homem do mar.

— Ora, eu expliquei tudo para nossa amiga, se quer saber mais, pergunte a ela!

O rapaz sentia-se cada vez mais furioso: — Ela... está... morta!

— Ah... eh... desculpe — o marujo reagiu com falsidade.

— Esqueci que ela está morta. É uma pena. Vá embora, já disse tudo!

— Está bem, velho, eu já estou indo. Mas eu garanto — olhou bem nos olhos do seu interlocutor — que em breve nos veremos de novo!

— Ah, com certeza — a gargalhada que saiu dos lábios do velho deu-lhe um ar quase mefistofélico — Isto não acontecerá, rapaz. Pode ter certeza.Quando você retornar, esta cabana estará vazia — completou sua frase com leve safanão no rapaz.

Juliano agarrou o velho pela alça da camiseta.

— Você tem que me dizer mais! Também estou envolvido nisso, e minha cabeça está a prêmio! Preciso de mais informações! Preciso!

O marujo sentia agora o aço frio de uma arma apontada contra sua têmpora.

— Vai dizer tudo o que sabe, velho, agora! — seus dentes estavam trincados, e rosto pálido de Juliano parecia mais pálido ainda. As veias azuladas em sua testa estavam salientes. — Meus antigos aliados querem me ver morto agora, e você é a minha ponte para a salvação!

O marujo — Samir Crispino era seu nome — não demonstrou a menor preocupação.

— O que está esperando? Atire!

Juliano ficou mudo.

— Vá em frente, atire! Não temo a morte, já que sei meu destino é sombrio...

— Apenas diga... — as lágrimas começaram a rolar pelo rosto do jovem.

— O que está acontecendo contigo, aconteceu comigo há muitos anos atrás. Eu sei muito bem que o preço por tanta sabedoria não é nada barato. Atire logo, não seja covarde.

Juliano Pires largou a arma e saiu da cabana. Samir Crispino não fez nada para impedi-lo ou consolá-lo. Sabia muito bem o fardo que é ser um renegado, e a mácula eterna que carregam aqueles que ousaram perambular por caminhos proibidos.

O rapaz era muito novo ainda. Teria que aprender por si mesmo.

O barulho de um tiro ecoou forte pela mata.

Suicídio.

O velho marujo recostou-se na cadeira e acendeu mais um cigarro.

“Ah, rapaz, esperava mais de você. Desistir tão rápido assim...”, pensou Samir consigo mesmo, consciente do fardo que carregaria até o fim de seus dias.

RENEGADOS foi escrito por Simoes Lopes

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