sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 60: Tanatológicas

Na porta de Rita de Almeida Campos, na cobertura de um luxuoso prédio de apartamentos no Leblon:

"O calor desta selva evoca lembranças de Barcelona.

Estou na cidade, procure-me.

P."

***

A campainha toca. Nem preciso ligar para a recepção e perguntar porque minha visita subiu sem ser anunciada. Abro a porta.

— Olá, Rita.

Um tapa sonoro me acerta o rosto. Vestido preto justo, sem ser vulgar. Cabelos anelados, longos.

— Galego imundo...

Limpo o filete de sangue no canto de minha boca.

— Posso perdoar você por isso. Minha mãe sempre me disse que as mulheres batem por amor. Acho que aprendeu isto com a sua, também.

Ela ensaia um segundo tapa. Seguro sua mão e a jogo para dentro do quarto.

— Só não posso perdoá-la por me chamar de "galego".

Ela cospe em mim. Mulher voluntariosa. Dá uns tapas sem propósito. Recebo todos. Ela pára arfando, os lindos dentes, brancos, brancos, atrás dos lábios escuros. Meus olhos a percorrem de cima a baixo. Arranco seu vestido com as mãos e puxo o sutiã sem cuidado. Uma presilha abre um corte pouco baixo de sua axila. Ela me beija, a língua quente, ávida, girando em minha boca. Termino de rasgar suas roupas. Ela arranca as minhas.

Um cavalheiro jamais comentaria o que se passou em seguida.

Mas, ao fim de tudo, satisfeito como um cão, sinto um nojo de minha humanidade que me dá ganas de surrá-la por me fazer sentir assim. Ela percebe isso. Sempre percebeu.

— É meu modo de puni-lo, Precursor.

O olhar petulante e desafiador. A língua levemente colocada entre os dentes, lábios carnudos, generosos... mas que diabos...

Novamente, como um cavalheiro, devo me calar.

***

Sob uma rosa-chá, na cabeceira o lado da cama onde repousa a Venerável Rita de Almeida Campos:

"Rosa-chá, porque a paixão já foi satisfeita. Fica a ternura de nossa amizade e um pedido: Konstantin Efremov. Preciso falar com ele, e só você pode trazê-lo.

Na minha casa ou na sua?

P."

***

Restaurante do Copacabana Palace, às 12h30. O garçom aproxima-se do conhecido hóspede com um envelope em mãos:

— Com licença, Sr. Paulo.

O hóspede recebe o envelope sem perguntas e despede o garçom.

"Paulo,

Assim como os ladrões, você chega sem ser anunciado e parte na calada da noite. Mas não me recinto por isso. Embora não haja qualquer ternura no relacionamento doentio que existe entre nós (e que você preferiu chamar de "amizade") estou curiosa para saber qual a nova diatribe que está aprontando.

Venha à minha casa amanhã, ao entardecer. Creio que a gerência de hotéis internacionais ainda não seja tolerante com ocultismo e tanatomancia.

Aguardando a festinha,

R."

O hóspede guarda o envelope no bolso de seu paletó, termina sua comedida refeição e bebe um cálice de vinho do Porto. E Sai satisfeito para o calor ardente do meio-dia.

***

O carro era negro, com vidros escuros. Parou em frente ao velho prédio, onde se lia na fachada: "Sebo". O Precursor subiu a escada estreita, ouvindo a madeira dos degraus ranger sob seu peso. A livraria ficava no andar de cima do sobrado. Um gato preguiçoso sacudia o rabo, devagar, deitado sobre uma pilha de livros bolorentos. Num mural de cortiça, anúncios de cursos de Gnose, Teosofia e Espiritismo. Um homem de meia-idade, cabelos grisalhos, desalinhados, e grossos óculos fazia palavras-cruzadas atrás de um balcão de madeira.

— Tenho um bilhete para o dono.

O homem levanta seus olhos da revista, sem interesse, mas estranhando as finas vestes de seu visitante.

— Sou eu mesmo.

— Não, não é — responde tranqüilamente o nefilim. Ele tira uma moeda de ouro de seu bolso, gravada com o emblema da coroa portuguesa, e a joga sobre o balcão — Eis o óbulo de Caronte.

O homem observa a moeda e levanta a portinhola do balcão que o separa do visitante,o convidando a entrar. Uma porta de madeira velha, coberta de pintura descascada, é aberta e ambos seguem por um corredor úmido e escuro. No fim, através de uma cortina de contas, um brilho bruxuleante lançava fantasmagorias rubras nas paredes.

Era uma sala pequena e abafada, apenas com um pequeno basculante, um altar de madeira roída, frente ao qual estava um velho, uma escrivaninha e uma mesinha com velas acesas. Um velho, de costas para a entrada, com as mãos espalmadas sobre o altar perguntou à sua entrada:

— O que quer, Paulus?

— Preciso de um favor de seu patrono, simoníaco.

— Seus favores são caros...

— Já deixei alguma dívida aberta?

Sem se virar, o velho aponta com a mão esquerda a escrivaninha. Há duas gavetas: de uma delas, Paulus tira uma folha de papel almaço e uma caneta esferográfica. De outra, uma vela de cera ocre. E põe-se a escrever:

"Ahasverus,

Vós, que jamais encontrais descanso sobre esta terra, e cujos olhos viram demais, e cujos ouvidos ouviram o indizível, dignai-vos a atender meu apelo: devo mover-me neste orbe como fazes, dos espectros o vetusto fantasma; que nem mesmo o Genitor meu, pelo sangue plenipotente que tem, me possa encontrar neste mundo."

A carta é entregue ao velho e colocada aberta sobre o altar. Nada é dito, o ancião sequer olha a folha à sua frente. Alguns segundos e passam sob o crepitar lento das velas, a respiração regular do homem, e o clima de modorra da sala é bruscamente rompido com a queima espontânea da carta. O fulgor repentino exibe caracteres de uma língua esquecida na parede frente ao altar. A vela nas mãos do Precursor se acende, e o velho fala, extático:

— Terás tua dádiva por seis dias.

O Precursor coloca a vela sobre a mesinha e retira um diminuto aparelho celular de seu bolso.

"Sem sinal".

Paulus sorri e recoloca o aparelho no bolso. Deus criou o mundo em seis dias. Ele tinha este tempo para saber como começou o seu.

Aqui começam os Atos de Pavlvs.

CARTAS PAULINAS III: TANATOLÓGICAS
foi escrito por Renato Simões


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