segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Rebelião 38: O Despertar (Parte 1 de 2)


A escuridão circundante era meramente ilusória, pensava Lucas. Não obstante cobrisse seus olhos de trevas, não impedia a propagação dos rosnados baixos e constantes que lhe arrepiavam a pele. Nem mesmo bloqueava o fedor insuportável que invadia sem piedade suas narinas. Um cheiro nauseabundo de carne podre misturado com enxofre tão forte a ponto de tonteá-lo.

A Criatura estava próxima agora. O rapaz vinha correndo há tempos, e suas pernas não mais obedeciam a seus comandos desesperados. À beira da fibrilação cardíaca, tombou ao solo devido ao descontrole motor. Estava dominado por câimbras que o faziam rolar de pura dor. O choque do rosto com o chão havia arrancado um ou dois dentes, provocando uma nascente de sangue em sua boca.

O rosnado ficou mais próximo. O rapaz sabia – mesmo em agonia – que o cheiro adocicado do líquido viscoso inebriava os sentidos da besta.

Ele então a viu. O ingrato negrume foi cortado por dois pequenos círculos flamejantes – dois olhos rubros que pareciam absorver todo o oxigênio ambiente. A iluminação proporcionada por eles permitiu a visão da boca negra e comprida, as presas brilhando à luz vermelha e a saliva que escorria por elas até o chão.

Era apenas questão de tempo agora. Por mais que Lucas apertasse os olhos e a mandíbula no esforço, seus músculos endurecidos não permitiam o mínimo movimento. Em instantes a baba amarelada e malcheirosa não caía mais no solo, mas em suas pernas e em seu peito. Sem apresentar qualquer resistência, sua pele foi dilacerada e digerida aos poucos – a besta não tinha qualquer pressa, parecendo deliciada com os gritos estéreis do garoto...

Ele acordou numa poça de suor. Ainda lutou durante alguns instantes com o vazio, como se finalmente seus músculos tivessem resolvido obedecer. O mesmo pesadelo. Todas as noites do último mês, desde que completara 18 anos. No início conseguia despistar a criatura, mas a cada noite ela chegava mais perto. Hoje, pela primeira vez, ela o havia alcançado. Tinha sido devorado. Podia sentir seu corpo dolorido, como se realmente algo de real houvesse ocorrido.

Um estrondo cortou o silêncio da madrugada. A janela de madeira havia se aberto violentamente, permitindo a passagem da fria brisa noturna. Os nervos do rapaz já estavam em frangalhos, mas o barulho serviu como um choque de mil volts em sua espinha dorsal. Pulou da cama e investigou as janelas. Os batentes, sem qualquer ferrugem e ainda reluzentes, estavam totalmente retorcidos.

Aquilo só podia ser interpretado de uma forma. Ela estava ali.

O medo tomou conta de seu corpo. Disparou do quarto e entrou na primeira porta que viu no corredor. Somente ao escutar o familiar ronco, tão contundente quanto uma britadeira trabalhando na madrugada, ele caiu em si: o desgraçado do gordo deitado, que infelizmente era seu pai, não ia ajudar em nada. Pelo fedor, havia passado as últimas horas se enchendo de cachaça, sua única atividade quando estava em casa.

Por alguns segundos, na tensão da situação, pensou encontrar sua mãe naquele quarto. A mãe que não conhecera, pois falecera por ocasião de seu nascimento. Lucas gostava de fantasiar que a via em seus sonhos, na forma de uma mulher ruiva sempre silenciosa, mas que transmitia uma sensação indescritível de paz.

Nem esse alento ele possuía mais; a mulher fora substituída pela criatura peluda. Estava sozinho.

Sem problemas. Tinha se preparado para isso.

Literalmente engolindo o medo, voltou ao quarto e abriu seu armário. Puxou um livro de páginas amareladas pelo tempo e uma mala com vários artefatos. Alisou a capa e as letras douradas ali impressas: “Livro negro de São Miguel”. Abriu na página 227, cujo título era o “exorcismo do demônio”. Puxou um pena negra da mala e um vidro com líquido vermelho escuro. Molhou a ponta da pena e reproduziu no chão do quarto o pentagrama desenhado na folha. Em cada ponta recitava estranhas palavras, acendendo velas bicolores – preta e vermelha – em cada uma delas.

Postou-se de joelhos no centro do círculo e virou-se para a janela. O vento parecia estar mais forte. Rasgou um plástico transparente e dele retirou uma massa mole e encharcada de sangue, quase do tamanho de uma bola de futebol: um coração bovino.

Ele se preparava para aquele momento há algumas semanas. Desde o início dos pesadelos, pressentiu que cabia a ele se defender de alguma forma.

Ia provar que o inferno estava escolhendo a pessoa errada.

Segurou a sinistra peça de carne acima da cabeça e iniciou discurso na mesma língua ofídica de momentos atrás. As janelas bateram mais uma vez; o abajur em cima do criado-mudo foi lançado contra a parede, aumentando a confusão; as gavetas da cômoda se abriram, formando um ciclone de papéis pelo quarto. Até o lustre balançava ao sabor do vento, batendo no teto e espalhando no já conturbado ar os estilhaços das lâmpadas quebradas.

Lucas suava tentando não errar uma palavra. Titubeou, entretanto, quando percebeu que as roupas de cama flutuavam a esmo, quase tocando o fogo tímido das velas que fraquejaram com seu engasgo.

Elas então se apagaram.

A situação mudou num instante. A força do vento passou a ser tal que retirou da parede um espelho de corpo inteiro, lançando-o contra o rapaz. Os fragmentos do vidro quebrado laceraram seu corpo enxuto, obrigando-o a cair para trás e sair do círculo. Como tivesse se chocado contra o pára-choque de um carro, bateu com as costas na porta do armário, quebrando a madeira e caindo como um boneco disforme entre as roupas amontoadas.

O medo, fiel companheiro, se fez presente novamente. Sentindo o coração sair pela boca, pulou de três em três os degraus que levavam até a sala. Enquanto tentava desesperado virar a chave e abrir a porta, esquecido de qualquer ferimento, percebeu sua nuca se eriçar como nunca havia feito antes. O fedor de podre não permitia ao rapaz qualquer dúvida sobre o que se encontrava no aposento contínuo a sala, a cozinha.

Porque essa fechadura desgraçada não abre?

Com o rabo dos olhos, percebeu a luminescência vermelha atrás dele – olhos injetados de sangue. Apertou com maior premência a chave, e sentiu o entortar do objeto; ao mesmo tempo, o odioso rosnado tocou seus ouvidos.

A escuridão imediatamente pareceu ficar mais espessa.

(Parte 2)

O DESPERTAR foi escrito por Andre Esteves

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