Pierre Lemoine levanta seu ancinho impiedosamente e espeta o ventre de seu primo Thierry Lemoine. Pierre extravasa todo o seu ódio pelo parente, que agora está caído no chão, e leva mais um chute. A turba de protestantes huguenotes assiste à cena e vem em socorro de Thierry, que foge pela viela escura. O chão barrento está escorregadio, e ele acaba caindo.
Uma pedra atinge-o com força desmedida na nuca, e sente o sangue quente escorrer pelo pescoço. Os conflitos religiosos explodiram pelo vilarejo, com católicos e protestantes enfrentando-se numa verdadeira batalha campal. Pierre, católico fervoroso, pede a São Jorge que lhe dê força, e ergue-se mais uma vez. Sabe que os seus inimigos são apenas um bando de criminosos e ignorantes controlando por líderes canalhas e exploradores, que manipulam as palavras da Bíblia para jogar o povo inculto contra a Santa Madre Igreja, detentora de uma tradição sagrada que remonta aos Apóstolos do Bom Senhor Jesus.
Thierry já respira com dificuldade, enquanto é amarado por seu meio-irmão Roland Bouche, que roga pedindo a Deus para dar forças a eles na temível guerra que assola o povoado. Eles são os detentores da Palavra de Deus, através da leitura diária e contínua; vêem a sua luta como uma continuação das sangrentas lutas de Josué e do Rei Davi. Sabem que a corja católica é formada por escravos analfabetos que suportam suas vidinhas miseráveis lambendo as botas dos hediondos bispos e padres, esta nojenta casta de parasitas que manipulam a superstição popular para encher de ouro os palácios do Papa.
Um grupo de homens jovens, armados de grandes cutelos e marretas passam correndo pelo moribundo Thierry, que já não consegue ver claramente o que se passa. Até mesmo seu meio-irmão se vê obrigado a abandoná-los quando um grupo de católicos surge ruidosamente por detrás da casa de pedra. Um deles conseguiu, sabe-se lá como, um mosquete, e dispara a esmo contra a multidão de protestantes. Corpos caem por toda a parte. Membros são perfurados, olhos explodem, crânios são partidos.
Enquanto a onda de corpos beligerantes se movimenta com velocidade na direção da praça, levando o tumulto para longe, o fatigado Thierry agoniza, e sente uma mão delicada afagar seus cabelos. Ele não consegue enxergar nada, mas deixa-se guiar pela maviosa voz.
— Não tente falar. Suas entranhas foram rasgadas. Apenas descanse. Não posso salvá-lo mas vou aliviar sua dor.
O pobre huguenote sente a dor desaparecer, e seu corpo envolver-se num suave perfume. Uma brisa morna parece passar por seu rosto, e ele imagina as portas do Paraíso abrindo-se. Talvez os anjos apareçam. Ele lutou o bom combate, e está agora chegando à Presença do Senhor.
O sangue escorre por todas as partes. Cabeças rolam, mutilados caminham tonteantes sem saber mais o que estão fazendo. Católicos matam protestantes, que matam católicos. Gritos de guerra ecoam pelas vielas estreitas e pelas casas queimadas. Um padre é arrastado de dentro de sua casa morto a pauladas. Um jovem mulher protestante é estuprada e surrada até a morte. Quando os desígnios de Deus estão em jogo, não há lugar para a piedade e misericórdia. Destrua os inimigos de Deus, é o grito que anima ambos os lados do conflito.
Junto a uma pilha de sacos de farinha, Pierre Lemoine chora sem parar. Um de seus olhos está perfurado, fazendo com que lágrimas e sangue misturem-se numa amálgama pegajosa. Uma lâmina comprida e fina atravessa sua garganta, e sua caixa toráxica por esmagada por um golpe de marreta. Ele ora por Santa Cecília e Santa Inês, clama pela proteção dos Santos Mártires. A dor profunda nubla seus sentidos, e sua visão parece mergulhada numa enorme aura luminosa. Ele só consegue ver um jovem magra de cabelos cor de palha se aproximando.
“Estarei já morto?”, pensa ele, enquanto sente a moça acariciá-lo com delicadeza, prensando seus ferimentos, numa tentativa de estancar a sangria. Ela não diz nada, e ele a chama de Santa Catarina, repetidas vezes.
Ela segura em sua mão, beija-a, e assiste a mais um morrer, no combate fratricida que rasgou uma antes pacata vila de pastores de ovelhas ao meio. Ela chora quando vê que mais um morreu, e pensa na insensatez humana. Esta mulher é a única que compreende o que realmente está ocorrendo aqui. Ela sabe quem são os verdadeiros inimigos.
Bem acima do vilarejo, uma construção de pedras ergue-se majestosa, e de uma de suas janelas, Cônego Gérard François de Brabant, assiste à luta, com um sorriso nos lábios. Ele passa a mão em sua roupa de rico tecido italiano, limpando a poeira trazida pelo vento quente, e dirige-se para a sua cama. Ele é o grande líder da comunidade católica nas redondezas, e seus talentos nas artes da Diplomacia e da Política forem recompensados, em breve será feito bispo. Se Deus tem uma voz aqui neste lugar, sem dúvida esta voz é este homem. Os governantes temem suas ameaças de excomunhão, e os camponeses por décadas foram apenas um rebanho de ovelhas obedientes.
Até o surgimento de David Engelbert, e suas palavras espalhando o ódio e a separação. Sua leitura distorcida dos textos sagrados, e a ousadia em querer ensinar o povo a ler e a desprezar o manto protetor da Santa Igreja do Papa. Agora parte do populacho acha que entende mais da mensagem do Nosso Senhor Jesus Cristo do que seus legítimos sucessores, os padres e bispos. O povoado agora está em guerra, com todo ressentimento e fúria represados por séculos explodindo.
Gerard aproxima-se de seu espelhos pensando fixamente no odiado David Engelbert. O espelho é feito do mais cristalino vidro francês, com uma moldura de ouro branco ornada por querubins refinados. A imagem mostra o semblante sereno do cônego: sua testa enrugada, sua barba grisalha e volumosa, seus olhos negros miúdos.
Ele pensa mais uma vez em seu desprezível inimigo, e vê a imagem refletida no espelho nublar subitamente. A realidade parece distorcer, e nuvens luminosas contorcem-se convulsivamente nos limites da moldura do objeto. Os espelho parece crescer, como um imenso vórtice negro, e nele surge agora a imagem do próprio David Engelbert.
— Cônego Brabant, desejas falar-me algo, meu terrível inimigo? — o homem que fala estas palavras tem um forte sotaque gascão, e possui longos cabelos cor de vinho emoldurando uma pele pálida e bochechas volumosas.
— David, a guerra já começou. Nossos peões digladiam-se agora com fúria no vilarejo de Sain-Martin-des-Champs. Creio que os católicos estão vencendo — .explicou a situação sem nenhuma aparência de alegria.
— Pois em Estoile e Montaigu os protestantes já expulsaram os padres e queimaram todas as igrejas. Acho mais apropriados falarmos num empate — retrucou o líder huguenote, contrapondo seus argumentos.
A imagem no espelho desfaz-se após um demorado torvelinho de cores e sons indescritíveis, interrompendo a comunicação entre os líderes. Cada um deve seguir em seus próprios afazeres, guiando seus seguidores na batalha feroz. Tanto o afamado Cônego Gerard de Brabant como o aguerrido e destemido pastor David Engelbert, apesar de sua aparente dissidência, eles atendem aos mesmos mestres.
Mestres estes que serão futuramente conhecidos como os Trezentos. Não foram eles os criadores do Catolicismo ou do Protestantismo. Ambas correntes religiosas são apenas o produto de uma conjugação de fortuitos fatores humanos, associados à manutenção de diversas Egrégoras, algumas delas, milenares.
Nem Gerard nem seu inimigo e aliado Davi sabem qual lado vencerá o conflito entre protestantes e católicos. Mas ambos sabem do principal.
Qualquer um que vença, seus mestres continuarão no comando da turba humana.
O ódio humano quando canalizado com inteligência, é uma arma poderosa de dominação. Que Católicos e Protestantes continuem brigando entre si.
Os 300 estão infiltrados em ambos os lados, e saberão canalizar tamanha energia em proveito próprio.
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