sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 64: Distopia

Welcome to Distopia. Faça o que quiser, acreditamos apenas em nós mesmos. A nossa moeda é nossa alma. Soul-Cent.

Já passava das quatro horas da manhã, e Marlon deixou a pista de dança completamente bêbado. Alícia ajudou-o a chegar até a salinha que ficava quase escondida nos fundos da danceteria.

Alicia deu sete batidas na porta — Marlon, tão fora de si, não se deu conta do número, é claro — e entrou.

Um homem vestindo uma camiseta verde-limão esperava pelos dois refastelado num sofá moldável de plástico. Seus cabelos eram compridos e platinados, e sua dentadura mostrava vários dentes do que parecia ser ouro maciço.

— Meu nome é James. James Corn. Mas você pode me chamar de Bittertongue.

Marlon Sena respirou fundo. Já vinha tentando falar com Bittertongue há pelo menos duas semanas. Alícia, sua colega de raves, despertou seu interesse quando falou-lhe sobre a Distopia após uma noite de sexo desenfreado.

— Marlon, nós aqui na Distopia não temos protocolos e vamos direto ao assunto. Junte-se a nós e verá todos os seus sonhos realizados. Quer dinheiro? Mulheres? Homens? Drogas? Violência? Adrenalina? Você vai ter tudo o que pedir.

— Apenas peça — insistiu Bittertongue.

O rapaz de cabelos castanhos e ralos coçou a cabeça, pensativo. Sua vida não era nada fácil, e ele andava com vontade de “chutar tudo para o alto”. Família, emprego, dívidas, tudo.

— Não seja tímido, gatinho. Você pode — era Alicia quem pedia agora, com lábios carnudos num ar profundamente sensual — ser um de nós.

— Eu... eu... — Marlon parecia hesitante. As palavras vinham com dificuldade, sua garganta queimava, sua barriga doía. — Vocês... vo...

As palavras foram interrompidas por uma violenta contração em suas entranhas. Ele ajoelhou-se, trêmulo, e vomitou no tapete de cerdas douradas.

Bittertongue levantou-se e lançou um olhar de nojo para Alícia. — Sweet Venom, você é responsável por quem você traz aqui, sabia? — seu olhar para querer fulminar o rosto moreno de Alícia, conhecida na Distopia pelo apelido — ou nick, como os Distópicos ou Dystopians gostavam de falar — de Sweet Venom, “Veneno Doce”. O homem de cabelos descoloridos parecia agora bem mais alto pelo tom ameaçador.

Alícia passou a mão pelos cabelos de seu amigo, e forçou-o a levantar-se. Usva uma peruca de fios prateados, e sua maquiagem era pesada, com grandes pingos de glitter espalhados pelo rosto e braços. Puxou um cigarro do bolso e deu uma tragada profunda. Estava ligeiramente trêmula, e aparentava muito nervosismo.

— Eu sei o que faço, Bittertongue. Se trouxe ele até aqui, é porque ele vai ser um dos nossos!

James Corn segurou o braço fino da garota com força, e deu-lhe um beijo forte no pescoço, com tanta força que deixou uma mancha rocha na pele macia.

Sweet, me dê um motivo para não matá-lo aqui e agora! Você não pode ficar trazendo qualquer raverzinho pra me conhecer. O poder da Distopia não está à disposição de qualquer um!!!

O tapa veio tão rápido que Alícia não conseguiu evitar.

Bitch!

O sujeito parecia cada vez mais transtornado, e puxou um canivete, apontando-o na direção de Marlon, que ainda parecia meio trôpego.

— Eu mato ele agora, se for necessário! — a lâmina fincou no pescoço do coitado.

Alícia ficou muda.

— James Corn soltou Marlon por um instante, deixando-o cair sobre o próprio vômito. Com um rápido movimento para trás, pegou um controle remoto e ligou o CD Player. As batidas possantes de techno ecoaram pelo recinto como bombas aéreas.

— Agora sim — disse ele, enquanto voltava a ameaçar o rapaz do mesmo jeito.

— Vamos, fracote. Me dê um motivo para não matá-lo... — sussurrou ao ouvido de Marlon. O rapaz tossiu.

— EU QUERO SER DA DISTOPIA — gritou Marlon, com toda a força que conseguiu reunir.

— Não ouvi...

— EU QUERO SER DA DISTOPIA!!!

— Resposta certa, my friend. Mas tudo tem um preço...

— Eu faço qualquer coisa... — Marlon agora estava de pé, limpando as manchas da camiseta.

— Você quer dinheiro?

— Quero...

Alícia soltou um sorriso, e já não parecia ter esquecido das agressões que sofrera. Passou os dedos pela mesinha de vidro no centro da sala de Bittertongue, e encontrou uma pílulas azuis e amarelas, engolindo-as com sofreguidão. O efeito narcótico não demorou a surtir efeito. Soltou um gemido de alegria.

— Você quer diversão? — o homem de cabelos esmaecidos continuou a estanha sabatina.

— Quero... — a convicção de Marlon parecia crescer com o tempo. Ele pensou na infância pobre, na morte precoce do pai, nas brigas da mãe com o padrasto. Lembrou-se do ódio que sentia pelo seu patrão, e na vontade de ter uma moto.

— Você quer ser o mais forte?

— Sim... me dá... — ele pensou mais uma vez no empreguinho que desprezava, na ex-namorada que trocou-lhe pelo vizinho irmão de traficante. Sua vida não valia nada, e ele queria mudar. Para o quê não sabia, mas tinha certeza que não queria continuar como era.

— Você daria um soco em sua amiga? Seria capaz disso? — os dentes de ouros ficaram expostos num sorriso diabólico.

Alícia tentou protestar contra a sugestão, mas não teve nem como reagir. Marlon jogou o punho fechado para trás assim que ouviu a ordem, e a moça só pode soltar um grito de dor, antes de cair por sobre o sofá, com um filete grosso de sangue escorrendo dos lábios sensuais. O homem da Distopia não disse nada, mas seu sorriso denunciava seu contentamento. Ele abriu uma gaveta e pegou algo.

— Olhe para esta moeda — falou James Corn com tanta tranqüilidade que parecia outra pessoa. Era uma moeda dourada que brilhava muito, refletindo as luzes estroboscópicas que atravessavam as persianas do “camarote” de James Corn. Não tinha nenhuma figura em ambas as faces, e era tão polida, que Marlon pode ver sua própria face refletida nela.

— Tudo o que você tem que fazer é apenas pegá-la e trazê-la para mim. A estranha proposta não pareceu muito clara para Marlon, que fez um olhar de confuso. Bittertongue abriu a portinhola que havia na parte escura de sua sala.

— Pegue-a. Agora!

O arremesso foi rápido e certeiro. A moeda atravessou o espaço apertado do cômodo e foi cair no vaso sanitário que ficava atrás da portinhola. Marlon ainda tentou agarrá-la em pleno ar, mas a velocidade do lançamento foi maior e ela desapareceu no líquido fétido da privada.

Marlon ainda parou por um momento como se estivesse analisando a situação em que se metera. O vaso estava quase transbordando, e odor por perto era completamente insuportável. A imundície não estava restrita à água, e formava uma crosta asquerosa que parecia revestir a porcelana rachada da privada.

— O que foi... sujo demais...não vale a pena, não é? Você não seria capaz de ir tão fundo, não é mesmo?

Marlon coçou a bochecha com um ar desanimado.

— O preço é muito alto, não? O poder não vale isso tudo...

Marlon continuou olhando fixamente as águas turvas e fétidas. Apesar de toda sujeira boiando no líquido verde-amarronzado, era possível ver-se um pouco da moeda, bem lá embaixo.

— Pense na moeda como a sua alma. Você não tem força para ir atrás da sua alma e tirá-la da podridão. Shit.

O rapaz ajoelhou-se sem o menor pudor, e enfiou a mão até a altura dos cotovelos na privada imunda. Revirou, tateou, e buscou a pequena peça dourada.

Levantou a mão toda suja, exibindo a moeda como um troféu. Bittertongue e até Sweet Venom aplaudiram. James mais uma remexeu nas gavetas e puxou um cartão de plástico.

— Aqui está seu cartão de crédito. Use-o no que bem entender. Ah, e dia 14 tem uma festa na Devil’s Advocate. Passa lá! Be my guest, badboy!

Marlon fez um gesto de estender-lhe a mão, mas o outro fez um ar de nojo.

— Não, assim não. Primeiro vá se limpar! Sweet Venom,mostre a ele o banheiro do segundo andar. Primeiro lave essas mãos porcas, e depois venha buscar seu prêmio. Fique tranqüilo, ele vai estar aqui quando você retornar. Bittertongue passou a mão com carinho no rosto de Alícia, enxugando com uma surpreendente delicadeza as feridas que ele mesmo ajudara a provocar.

— Sem ressentimentos, my love? — sua outra mão já estava enfiada por debaixo da blusa da garota, que acabara de tragar mais duas pílulas.

— Se liga, Bittertongue, na Distopia é tipo assim, living la vida loca.

— Isso aí, gatinha... — James percebeu que Marlon já estava saindo e chamou-lhe a atenção:

— Ah, e antes que eu esqueça, Marlon, como quer ser chamado de agora em diante? Qual seu nick?

O rapaz de cabelos ralos pensou alguns segundos, e respondeu:

— Rei da Festa.

— Não entendi...

Party King.

— Ah, ficou melhor, welcome to Dystopia, Party King.

Assim que Bittertongue ficou sozinho, apagou todas as luzes de seu “camarote”. Ele mais uma vez puxou seu canivete, e fez um leve corte em sua própria garganta. À medida que o sangue escorria pela lâmina de aço, o fluido avermelhado ia tornando-se um visco esverdeado que transformava a pequena faca numa horrenda arma de aspecto alienígena. Sulcos, espinhos e nós formavam-se na superfície metálica.

— Oh Mammon dos Mil Amigos, mais uma alma conquistada! — entoava o cântico soturno.

Alheio a isso tudo, lá se foi Marlon, sem saber que em vez de resgatar sua alma de uma latrina, ele na verdade estava atirando-a numa. Quando ele passou correndo pelo corredor, quase tropeçando num casal que se beijava no chão, não percebeu que alguém o observava.

Num dos cantos da pista de dança, uma japonesa de cabelos tingidos de rosa bebia calmamente uma mistura de suco de laranja e vodka. Ela sentia-se inteiramente sóbria, e seguia o rapaz com discrição.

“Então é aqui que mora o figurão da Distopia, o palpite de Ânderson estava correto. Tenho que avisar os outros...”, pensava consigo mesma, Algodão-Doce, dos Acólitos. Acabara de descobrir o esconderijo de Bittertongue, líder de um seita demoníaca, que em troca de riquezas e poder, arregimentava almas humanas pelo preço de uma simples moeda, chamavam-na de soul-cent, “centavo da alma”.

Uma simples moeda.

Perder tanto por tão pouco.

Algodão-Doce sentiu muita pena. Olhou à sua volta, e teve a sensação de que dúzias de Marlons em potencial estavam circulavam à sua volta.

Por toda a parte, a Distopia não pára de crescer.

DISTOPIA foi escrito por Simoes Lopes

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