quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Rebelião 15: Vaidade


Com pouco esforço elevo-me cerca de 30cm do chão. Concentro-me mais um pouco e eles se tornam 30m. Abaixo de mim, Günter sorri com satisfação. Ele é um suíço dos Alpes, e fala um dialeto obscuro do alemão carregado de sotaque. Se não fosse por um Manifesto que descobri recentemente, Gnose, que me permite absorver conhecimentos alheios por um curto período de tempo, até mesmo nossa comunicação seria impossível. Eu odeio esta língua bárbara de fonemas aspirados, cheia de grunhidos guturais.

E odeio a inocência imbecil e meio selvagem deste Guardião.

"Aprendi com você, e você comigo. Poderei copiar sua Bíblia esta noite?"

"Claro, assim que acrescentar estes Manifestos e a forma como desenvolvê-los. O que acha de chamarmos este de Dom de Simão?"

"Hmm... é adequado. Simão é o mago que levitou, certo?"

“Sim.”

"Sabe, vê-lo aqui... já faz algum tempo desde que vi um nefilim pela última vez. Achava que estava sozinho... e agora saber que as Linhagens estão organizadas, que estamos estabelecendo formas de contato no mundo todo. É realmente fascinante!"

"Sim, é." Este selvagem me entedia. Graças aos Triarcas os Guardiães não têm uma organização séria.

"Mas fale-me de sua Linhagem. Já ouvi falar de vocês... Precursores. Adotam nomes latinos e são muito formais... querem romanizar-se?" — ele acrescenta isso com um sorriso que, imagino eu, deva achar divertido. Acho patético.

"De certa forma. Gostamos do espírito romano, de seus ideais de força e civilização. Achamos que é esta nossa missão."

"Criar uma civilização para os nefilim?"

"Não. Os nefilim não precisam de civilização — eles já têm poder. A civilização é, principalmente, para os fracos e selvagens. Animais, em geral, precisam ser pastoreados." Meu interlocutor pareceu não gostar muito de minha última observação, visto viver entre estes homens de barro.

"Pastorear as massas através da força. Um conceito darwinista um tanto gasto e repetitivo, não acha?"

"Acho, mas apostamos em idéias que funcionam. Somos pragmáticos, a originalidade é para Paladinos."

"E a diplomacia, para Visionários." — ah, finalmente uma fagulha de espírito! Talvez, se o provocar por, digamos, uns trinta anos, surja um nefilim forte do fundo dessa casca humana indulgente.

Mas nós, é claro, não teremos este tempo.

"Você então não viaja com os Escribas — é esse o nome, não? — aquela Congregação que está catalogando os Manifestos?"

"Não... mas pretendo apresentar-lhes o meu trabalho. Gostamos de ser úteis."

"Ou da fama. Imagino que em alguns anos seus nomes serão venerados e respeitados entre os mais jovens de nossa espécie." Eu teria dito nossa estirpe, mas não espero muita sutileza de meu primo pobre.

"Creio que esta seja uma conseqüência do que fazemos. Nossa intenção real é fortalecer a coletividade."

"Nem todos vocês são latinos, não é mesmo? Vocês é que escolhem seus nomes?"

"Não, nem todos somos latinos — há asiáticos, saxões e mesmo ameríndios entre nós — e sim, escolhemos nossos nomes. O Primaz chama-se Aurelius em homenagem ao autor das Meditações, um imperador que ele muito admira."

"Paulus... a quem está homenageando? Não me lembro de um imperador com este nome." Hmm, devo dizer-lhe? Normalmente isso seria perigoso... mas a tentação é grande. E acho que ele é obtuso o bastante para que a idéia não lhe ocorra logo.

"A São Paulo, é claro. Ele é provavelmente o homem mais inteligente do Novo Testamento."

"Ora, por quê?"

"Ele, judeu e cidadão romano, caçava os cristãos — até matou Estevão apedrejado — mas, veja bem, com o tempo ele percebeu que só matava vasos. O conteúdo é que era importante, e não se mata idéias com pedras."

"E o que há de admirável nisto?" A conversa está ficando complexa demais para ele que, maçado, se senta e começa a folhear meu exemplar da Bíblia.

"Ora, como não podia matar a idéia, ele se apossou dela. Ele transformou uma meia dúzia de preceitos simples numa religião-filosofia que controla a vida de uma boa parte do mundo, hoje. Sem Paulo de Tarso, não haveria o cristianismo como o conhecemos."

"Ah, sei." Já nem está mais me ouvindo. Tão fácil que chega a ser doce.

"Gosto de sua forma de pensar... ele não procurou originalidade, mas soube manipular o caminhar dos eventos a seu favor, e hoje é um santo. Veja só, de assassino a apóstolo, de pecador a precursor venerado da religião de meio mundo!"

"Há, há, então acho que agora é hora de você apedrejar Estevão e tornar-se apóstolo! Muito boa essa, não é, Paulus?"

"Paulus…?"

VAIDADE foi escrito por Renato Simões

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