segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Rebelião 39: O Despertar (Parte 2 de 2)


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Lucas estava tendo dificuldades para se equilibrar, como se uma nuvem negra atravessasse sua visão; teve que se esforçar para pensar com objetividade.

Calma. Não adianta nada quebrar a chave.

Só então percebeu o engano. Estava girando a fechadura para a esquerda, quando o correto seria para a direita. Com os dedos escorregando, conseguiu abrir a porta e ganhar a noite fria de julho.

Lucas morava no subúrbio, num bairro de ruas estreitas e intricadas. Conhecia todas como a palma de sua mão e corria destrambelhado pelas ladeiras e esquinas. Estava consciente, entretanto, do borrão negro que acima de sua cabeça pulava de telhado em telhado ao seu encalço.

Como no sonho, pensou em desespero. Já sabendo o que iria acontecer, chegou até uma pequena praça, sem qualquer iluminação artificial. Somente a luz da lua permitia a visão dos vultos de várias árvores.

Ali, como no pesadelo, sentiu as dores nas pernas. Os músculos, com câimbras, endureceram e o levaram ao solo, fazendo-o perder os dentes. Ao invés de procurar em vão se arrastar pelos paralelepípedos molhados de orvalho, fez o impensável: voltou-se e encarou a criatura.

Primeiro os olhos em fogo e depois a boca salivante e abjeta puderam ser vistos. Lucas olhava a besta de frente pela primeira vez. Era um incrível cachorro – embora a expressão “cachorro” fosse totalmente inadequada para classificar aquele pesadelo de quatro patas. Uma montanha de músculos cobertos de pelos negros eriçados e rígidos parecia ser a expressão mais próxima da realidade. O monstro era quase do tamanho do Fiat uno estacionado na entrada da praça.

A trilha de saliva e o rosnado baixo era o prenúncio do que viria a seguir. O garoto estava completamente imóvel, hipnotizado pela bruta singularidade da criatura diante de si. Somente sua mente trabalhava como uma fábrica chinesa, evitando pensar nas imagens de sua carne sendo destroçada que teimavam em rondar sua cabeça. Só pode fechar os olhos e esperar o inevitável, espremendo-se involuntariamente na sombra formada pela árvore mais próxima.

A criatura estagnou e bufou violentamente. As duas bolas de fogo que possuía no rosto voltaram-se de um lado a outro. Chegou à frente, há apenas um metro do rapaz, tão perto que ele perdeu parcialmente os sentidos graças ao fedor. A criatura balançou a cabeça durante alguns segundos e rosnou bem forte, antes de correr em volta da praça algumas vezes e sumir através das árvores.

A circulação voltou aos poucos ao normal. Estava claro que por algum motivo o cão não o tinha visto, o que não podia entender. A sombra que o abarcara não era nem de longe forte o suficiente para escondê-lo, levando ainda em conta que a criatura sabia onde ele estava. Levantou com dificuldade, somente para ter seus músculos retesados novamente – havia mais alguém na praça.

Era um homem alto e magro usando jeans, uma figura que passaria absolutamente despercebida se não fossem três horas da manhã e ele não andasse como se estivesse em sua sala de estar. Na verdade, Lucas não se lembrava de ter visto uma pessoa que parecia tão segura quanto aquele homem. Tentou calcular sua idade, mas não conseguiu.

— Imagino que deva estar assustado — disse a figura quase surreal. — Não se preocupe, vou lhe explicar tudo.

Ele deu uns passos e Lucas fez menção de correr.

— Não precisa ter medo — ele parou em frente ao Uno estacionado, uma das mãos viradas para frente em sinal de calma. — Tenho a resposta que você procura.

Os olhos do Rapaz faiscaram. Ele permaneceu imóvel, próximo à árvore.

Você não é um mortal como os homens de barro à sua volta — ele apontava para as casas margeantes um pouco afastadas, todas escuras e silenciosas. — Você é filho de um anjo caído, um ser híbrido com descendência tanto do céu quanto do inferno. Um Nefilim, assim como eu.

O homem sorria satisfeito com suas próprias palavras e com o interesse do garoto. Se estivesse prestando atenção de verdade, perceberia que Lucas realmente estava com o olhar fixo – mas não nele.

— Eu fui designado para ser seu tutor. Estou aqui para ensiná-lo sobre o que há fora do pesado véu de trevas que cobre os mortais. Venha comigo e não terá mais dúvidas.

O rapaz encolheu os ombros. Mesmo estando escuro, os olhos treinados do homem perceberam que ele tremia.

— Não precisa ter medo. Na imensidade da criação, com as mais diversas entidades, você achou um igual. Pode confiar em mim.

— Eu confio — disse o rapaz abrindo os braços e levantando corajosamente a cabeça sem sair do lugar. — Venha me dar um abraço.

O homem não deu três passos. Assim que se moveu a enorme criatura negra pulou de uma árvore atrás dele, abocanhando-o por cima da cabeça. As presas o perfuraram na altura dos pulmões nessa primeira fechada de boca, misturando-se o líquido pulmonar amarelado com a espessa saliva da besta. Ela levantou o horrendo pescoço, retirando os pés do homem do chão e espremendo-o por sua traquéia, num quebrar de ossos tal que mexeria com os nervos até de um legista.

Lucas espreitou por alguns instantes o espetáculo de sangue e carne sendo lançadas pelo ar. Havia percebido pelo reflexo no vidro da frente do automóvel que o homem escondia na mão esquerda uma adaga prateada enquanto o distraía com a direita. Tanto a mão quanto as armas encontram-se agora na barriga da criatura, que virou sua monstruosa fuça para Lucas.

O rapaz nem se atreveu a fugir; seria só prolongar a agonia.

Algo ocorreu antes do ataque, entretanto, algo tão repentino e inexplicável quanto tudo naquela estranha noite: O ventre inchado da criatura explodiu, espalhando as entranhas pelo calçamento. Praticamente cortada ao meio, a ligação entre as patas traseiras e o resto do corpo passou a ser feita somente pela espinha dorsal, agora exposta. Com a criatura tombada, o flamejar dos seus olhos foi se apagando como uma lâmpada sendo desligada aos poucos. Por um instante, o garoto quase pode vislumbrar algo de racional naquele olhar, mas foi só por um instante. Logo uma fumaça compacta e negra saiu da carcaça, e a luz dos olhos esmoreceu por completo. Em segundos a criatura desintegrou-se como se mergulhada em ácido. A massa se dissolvia por si própria, formando bolhas que consumiam os músculos antes rígidos e poderosos. Quando as luzes das casas começaram a ser acesas, não havia mais nada ali.

Lucas se abaixou novamente nas sombras, que agora o abraçavam como um cobertor.

Ainda não estou pronto para confiar em ninguém, pensou.

O DESPERTAR foi escrito por Andre Esteves

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