segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 22: O Sofista


Seus pés tocaram a margem barrenta do grande rio, e ele viu a embarcação que o levaria dali para suas plagas. Não sem uma ponta de saudade e remorso, o Mayávico virou-se e olhou para a pequena comunidade ribeirinha com que passara seus últimos meses.

Homens e mulheres acumulavam-se atrás dele, olhos nublados de pranto pela sua partida. Nisto, Benzedeira aproximou-se dele e disse, no seu doce dialeto:

“Sabiômem que de nós viveu um tanto, não te vai sem antes falar dos poucos que viu vindo cá, entre céu e terra, entre vida e viração.”

E com a lisonja dos sofistas, Mayávico curvou-se ao pedido de Benzedeira. Ao que mesmo ela começou dispondo:

“Nos fala dos deuses.”

Depois de breve silêncio e deliberação interna, disse o sofista:

“Se deuses há, ou influenciam em nossas vidas, ou não. E pelo mundo de nossa vivência, vemos que não influenciam. E se não o fazem, é porque não querem ou não podem. Disto feito, vos digo: tanto faz. Que vivamos então de acordo com as deliberações de nossa razão, que é o que há de mais poderoso debaixo do Sol.”

E todos acharam estas palavras de muito siso e muito acerto. Ao que pôs a Moça seu pé a frente e perguntou: “E o amor?”

“O amor é a falta dos deuses. Pois se não há nada mais belo que o homem sobre o torrão de chão, nada mais belo há que se amar. Então olhem uns para os outros e se amem com verdade, porque eu digo: não encontrarão em canto algum outro deus que não seja teu irmão.”

E todos também pasmaram e acertaram com tamanha sabidez. Foi a vez de Pescador perguntar: “Que é o ódio?”

Sem muita demora lhe respondeu o sofista:

“Ódio é desacerto do amor que não sabe para que serve. Tem o peixe ódio da tua rede? Pois mesmo sem saber vai o peixe sabendo que morre para outro viver: outro peixe que escapou, o homem que o comerá para afugentar a fome, a terra que chupará o tutano de suas espinhas para alimentar o mato. Ódio é ignorância de quem não sabe pra que morre.”

Deslumbrado de tamanha cultura, foi a vez de Velho perguntar: “Há de ser o que a justiça?”

“A justiça é a arte de remendar o desfeito. Todo crime é desfazer o que é de necessário para a vida, quando não a própria vida. Que se puna aquele que desfez, refazendo; se não, que não se puna, ou é vingança que amarga o coração.”

E fez-se grande silêncio nos corações miúdos do povo. Ao que Bêbedo abriu seus olhos baços e perguntou: “Onde está o diabo?”

“O diabo está onde está o homem. Porque não vive um sem o outro. O diabo é a sezão que vai e vem com as estações, e quando mais escondido, mais perigoso. Por isso eu digo: não se engane com seu silêncio, e prefira ter sempre o diabo debaixo de seus dois olhos.”

E o povo admirado achou que nada mais tinha que perguntar. O sofista tomou um largo fôlego daquele ar parado para levá-lo sempre em seus pulmões, quando muito timidamente Coveiro saiu do meio da gente e lhe perguntou: “... a morte?”

Mayávico ficou orgulhoso de coragem, vendo que todo rosto se acabrunhava quando se falava da Mãe Noite, mais íntima dessa gente que a vida. E respondeu com prumo:

“A morte não é sono, como diz o padre. Morte é vigília da vida, até que se possa dormir de novo. É quando os olhos se fecham que o homem está mais acordado.”

Coveiro parecia estar de par com este posto, e resignado como quem se desengana, volta ao seu ofício.

Com passos lentos tira o sofista suas alparcas da lama e sobe ao barco, que com lento impulso ganha o rio. Mas é o barco que está parado enquanto as margens vão passando. Porque Mayávico sabe que pouco interessa os volteios que seu pensamento dá: ele está sempre no mesmo ponto, e não quer chegar a lugar algum.

O SOFISTA foi escrito por Renato Simões

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