O fogo chamuscava a pele já lacerada da mulher nua e acorrentada a um pilar de pedra natural. Dezenas de outros pilares semelhantes espalhavam-se pela enorme caverna onde ela estava. Rios de lava cortavam o chão, exalando uma fumaça que a sufocava e a impedia de abrir os olhos, rubros de irritação e choro. O cheiro de enxofre impregnava suas narinas a ponto de tonteá-la, caso já não estivesse no limiar dos sentidos.
É. Aqui é o inferno.
Criaturas disformes a molestavam sexualmente, com objetos e formas que aqui não podem ser descritos. Nesse meio tempo, sua pele, músculos e nervos eram castigados pelo chicote de ponta tripla manejado com habilidade pelo torturador. Somente agora ele era visível, seu dorso negro molhado ante o ímpeto aplicado no instrumento de dor. As correntes não agüentaram os espasmos de agonia e a mulher tombou de costas no chão pedregoso, oferecendo o glúteo avantajado e ainda intocado ao torturador. A visão combinada com os gritos dela o fizeram gemer.
Agora era possível ver seu rosto. É ele. Ele era o torturador.
Tudo gira e escurece ao mesmo tempo. Ele está nu e sente o vento machucar a pele. Está muito ferido, com quase todo o corpo em carne-viva. Dois pontos surgem na escuridão, como dois olhos de um ser poderoso. Ele vê que está numa estrada.
Tenta levantar e não consegue; a picape freia a ponto de inclinar para a esquerda, cortando o silêncio da noite com o contundente friccionar dos pneus com o asfalto. O veículo pára a centímetros de seu rosto. A luz forte dos faróis machuca sua vista.
Da picape descem duas mulheres jovens — uma magra e alta, de cabelos ruivos, e outra baixa, com o rosto de proporções imperfeitas. Elas tentaram levá-lo para o carro, mas a força retornava a seu corpo. Com mãos de ébano ele esmigalha o pescoço das duas, sujando de vermelho o tracejado branco da estrada.
Marcelo pula da cama. Outra vez o maldito pesadelo! Invariável, todas as noites do último ano. Ele levantou e abriu a janela, deixando o vento levar embora seus tormentos, como sempre.
As cenas de pesadelo, com exceção das passagens demoníacas e o assassinato das mulheres, haviam sido reais. Há um ano ele foi achado na estrada. O espelho às suas costas mostrava as cicatrizes dos ferimentos que apresentara naquela noite. Fabiana e Simone haviam-no levado para um local seguro e restabelecido sua saúde. Quando perceberam que ele não sabia por que estava na estrada e como havia se machucado, nem mesmo quem era ou onde morava, deram-lhe um nome: Marcelo. Deram, porém, muito mais que isso: com elas descobriu que era um Nefilim, filho de um anjo caído. Treinara poderes e descobrira habilidades. Seu apartamento era repleto de esculturas de madeira e gesso, consideradas soberbas por muitos críticos. Numa das paredes, uma longa espada japonesa emprestava um toque oriental ao ambiente. Mas, longe de ser apenas uma peça de decoração, tornava-se nas mãos de Marcelo um implacável instrumento de morte.
Tudo isso aprendera — ou reaprendera – no último ano. Devido a essas características, foi determinado que ele era um Paladino — uma linhagem que vê a batalha como uma forma de arte.
Tinha uma casa. Uma profissão. A amizade de Fabiana, líder, podia se disser, desta congregação de Nefilins no Rio de Janeiro, assim como a confiança da maioria dos congregados. Tudo que queria.
Ainda assim o mesmo pesadelo: as imagens demoníacas, a tortura, o assassinato de seus amigos. Por que tudo isso?
Ele não sabia — fechou devagar a janela, encostando a testa no frio alumínio, os olhos cerrados —, ou melhor, sabia.
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