terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Rebelião 78: Licor Rubro

Pela janela da sala de jantar eu vejo a cerrada floresta de mangueiras e jaqueiras que cerca o meu sítio. No alto do céu, uma lua minguante pálida desliza através uma cortina de nuvens leitosas. A escuridão da mata contrasta com o brilho de um sem número de pontinhos luminosos, que se observados com mais atenção, revelam ser olhos. Eles piscam num ritmo frenético, como vaga-lumes diabólicos, salpicando com uma débil claridade escarlate as sombras das árvores centenárias.

Eu sei de quem são esses olhos. Sei quem eles são. Na verdade, estou aqui à sua espera. Sinto-os movendo-se por entre as moitas e arbustos com um suave ruído, e à medida que a sinistra matilha passa até mesmo os grilos se calam, envolvendo os arredores de minha casa com uma aura de silêncio sepulcral.

Eu vivo neste mundo por exatos 363 anos, e por muitas vezes — quinze, para ser mais exato — combati criaturas como essas. Venci sempre. Sim, eu sempre triunfei, mas reconheço que não foram vitórias fáceis.

Estes demônios cujos olhos lembram-me a cor do licor que trago silenciosamente neste momento. Sei que dentro de alguns instantes estarei sentindo o hálito gélido daqueles animais impregnando a atmosfera de meu lar, e meus tapetes caros serão emporcalhados por suas patas imundas.

Eles foram mandados em meu encalço por alguém que reputo como covarde, torpe, imundo e reles. Não gosto de economizar adjetivos para exercitar minhas idéias. Alguém tão torpe que não foi capaz de vir pessoalmente para me enfrentar. Alguém que eu mesmo deveria ter aniquilado quando tive a oportunidade.

Mas não o fiz, infelizmente. Uma falha imperdoável para alguém como eu.

A minha vida é longa, mas jamais poderia chamá-la de monótona. Aproveitei cada momento, saboreei cada aspecto de minha conflitante existência. Viajei por tantos lugares, sempre em busca da doce excitação da guerra e do confronto. Engalfinhei-me com beduínos nos contrafortes do Sinai; massacrei mercenários britânicos na Índia; derrotei tanto bolchevistas como nazi-fascistas nas estepes geladas da Rússia, e um impus humilhantes reveses a fuzileiros americanos na Guerra da Coréia.

O fio de minha espada desafiou os mais ousados tipos de demônios, feiticeiros, lacaios e adoradores do Mal. Minha coleção de troféus é invejável até mesmo para aqueles que comungam de minha sina.

Minha bebida está chegando ao fim, e antes do derradeiro gole, sinto vontade de retornar à adega para buscar um vinho ou talvez um conhaque. Não, quem sabe, um uísque?

Tamanha indecisão não é importante agora, pois meus inimigos já cruzaram o pórtico que delimita a entrada de minha varanda. Rastejando na grama úmida, eles não sabem que eu percebi sua chegada.

Sorovo a última gota do licor, e minhas papilas regalam-se um pouco mais com o forte aroma de cereja que estala em minha língua. Neste três séculos jamais me neguei a aproveitar os fugazes prazeres humanos. Tampouco fugi às tentações da carne, que fazem do ser humano aquilo que ele é. Explorei todos os sentimentos que forjaram minha essência mortal, e deles extraí o mais fino dos extratos.

Meu último pensamento relacionado a vinhos e licores se desfaz quando percebo que o primeiro da corja monstruosa forçou sua entrada pela janela de vidro lateral, partindo-a em pedaços e barrando minha passagem até a escada que conduziria à adega. Atrás dele, vejo outra besta surgir, então outra, e mais outra. Paro de contar quando sinto caninos pontiagudos tentarem cravar-se minha coxa. A tentativa não dá certo, graças em parte à minha renovada agilidade, e em parte a um simples golpe de sorte. O ataque conjunto dos primeiros integrantes da alcatéia obriga-me a arriscar uma pirueta que me faz saltar sobre a poltrona de couro e alcançar a pistola automática pousada em minha escrivaninha. A mesma pistola já me salvou a vida por tantas vezes. Numa das paredes, vejo duas katanas presas em seus suportes. Foi-se o tempo em que eu preferia o elegante bailado das adagas e espadas. Na era da tecnologia, eu seria um tolo se abrisse mão do maior poder de fogo em troca da adrenalina do risco maior. É verdade que foi com uma simples adaga que desafiei um grupo de soldados de Napoleão na Holanda, há muito tempo atrás, mas o fedor gelado que incomoda minha narinas agora avisa-me que os animais estão prestes a encurralar-me. Os cabelos de minha nuca arrepiam-se, e eu sinto minha alma transbordar de prazer quando pressiono o gatilho.

À primeira saraivada de balas, segue-se outra. Após explodir a cabeça de um dos monstros, movo-me com rapidez e encho o outro com tantos buracos que não resta mais que uma carcaça em retalhos.

Desgraçadamente, não consigo impedir que uma mordida voraz arranque parte de panturrilha. Forçado a ajoelhar, caio no tapete.

O sangue escorre, abundante, enquanto tento em vão cicatrizar as feridas de maneira provisória. Poças vermelhas espalham-se pelo chão.

Vermelho-sangue. Vermelho-rubi. Vermelho-cereja.

A cor parece perturbar meus sentidos e turvar minha visão. Um Triunfante faz de sua vida uma batalha permanente. Infinita enquanto durar. Jamais entramos numa luta para perder. Jamais. Quaisquer que sejam os inimigos, quaisquer seja o terreno ou as condições. Jamais aceitamos a derrota como resultado.

Pode ser que meu fim esteja próximo. É a maldição do guerreiro, a Morte sempre nos espreita. Mas eu creio que mais uma vez ela estará por perto, mas não me tocará. Corro para o corredor estreito numa tentativa de levar os cães infernais para onde não tenho espaço para atacarem juntos. Rezo por um milagre, enquanto disparo mais uma salva de tiros, abrindo caminho pela massa de sangue e carne. A munição termina, e retiro as duas espadas da parede.

Enquanto o milagre não acontece, eu devo ajudar-me com o que tenho às mãos. Viver é sempre vencer.

A lâmina baila, decepando uma garra peluda. A outra garra dilacera meu ventre.

Viver é sempre vencer.

Procuro pela outra pistola, em vão. Dois animais atacam ao mesmo tempo esmagando-me contra a parede. Sinto o sangue escorrer de meu nariz quebrado. Grossas e vermelhas gotas mancham o vitral que decora meu armário de bebidas. Ignoro a dor de uma costela provavelmente quebrada e salto, pendurando-me no lustre.

Viver é sempre vencer.

O lustre previsivelmente não agüenta meu peso, e eu caio sobre uma segunda leva de demônios. Irracionais demais para combinarem uma estratégia de luta, eles facilitam minha fuga. Meus ferimentos já são severos demais, e não consigo ir muito longe. Eles percebem isso. Eles farejam meu medo.

Em meio aos destroços de meu quarto, as bestas abissais cercam-me mais uma vez. Sua fúria não está voltada só contra a minha pessoa, mas contra a minha casa. Com seus robustos músculos, eles despedaçam meus armários, e seu sopro glacial estilhaça o vidro das estantes. Pilhas de livros são reviradas e moídas.

Meu corpo está debilitado demais, e não tenho tempo suficiente para reparar meus ferimentos. Não sinto mais minha perna, e a costela quebrada arranha minhas entranhas. A Morte está prestes a tocar-me. Rezo mais uma vez por um milagre, que já parece tão improvável.

Um dos monstros rosna e me acerta uma patada na cabeça. Mais uma vez sinto-me invadido pelo brilho vermelho do sangue. Outro deles mastiga um globo metálico do tamanho de um punho.

Pela primeira vez, eu sinto vontade de rir. O milagre esperado chegou, da forma mais inusitada.

Aquele globo é uma granada. De meu arsenal particular. Uma granada cujo pino de segurança acaba de ser arrancado pelos dentes afiados do lobo diabólico.

Eu junto todas as minhas forças para buscar abrigo.

Viver é sempre vencer.

A explosão dilacerar alguns de meus inimigos, deixando-me momentaneamente livre. Ainda corro perigo, mas ganhei alguns segundos preciosos. A taça ainda não está inteiramente vazia. Restam-me algumas gotas do rubro licor chamado vida. Eu ainda anseio em sentir o seu sabor.

Morrer é ser derrotado. Algo que jamais fui.

Restam-me algumas gotas. É o que me basta para mais uma vez buscar a vitória.

Viver é sempre vencer.

LICOR RUBRO foi escrito por Simões Lopes

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