segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Rebelião 40: Consulta


Anderson e seu novo companheiro aproximavam-se da porta. Parecia uma casa como outra qualquer no bairro, com seu muro alto e gradeado, um pequeno jardim na frente e sua varanda que se mostrava bem aconchegante ao se perceber a rede pendurada nela. Antes de tocar o interfone, Anderson avisa:

“OK, garoto... fique firme do meu lado e não precisa se assustar, certo? Você está para ver algo que não é muito comum... a não ser que seja do elenco de filmes como “Os Outros” ou “O Chamado”... Ei! Não arregale os olhos assim: você é um Nefilim, certo? Um “Filho de Decaído”, um ‘Híbrido’ ou qualquer outro epíteto idiota que tenhamos inventado para nós mesmos. Além do mais, você está sendo treinado pelo titio Anderson aqui, o que é a maior garantia que você poderia ter... acho.”

Ignorando a expressão apavorada no rosto do neófito; Anderson toca o interfone. Enquanto espera pela resposta dá uma piscada de olho para ele. Finalmente, no interfone, uma voz masculina de timbre forte ressoa:

“Anderson, seja bem vindo, a Pitonisa o espera...”

“Beleza...” Anderson se vira para o garoto. “O bom de visitar gente como a Pitonisa é que não precisamos marcar com antecedência.”

O interfone é desligado e a sirene toca no portão; seguido de um estalo e um ligeiro afastar da porta. O jovem aprendiz observa que a segurança é bem disfarçada, mas intensa: câmeras de segurança, cercas eletrificadas e cães ajudam a evitar visitas indesejadas. Anderson, como que adivinhando o pensamento dele, fala:

“É meio paradoxal essa coisa de tanta segurança moderna num lugar que – por dentro – lembra a casa da família Adams. Mas, acredite, nada melhor que misturar a velha e boa magia com a tecnologia para esse tipo de coisa.” Depois, murmura baixo: “Se bem que para quem é bom mesmo isso não adianta nada...”

Eles entram e o aprendiz passa a entender melhor o que Anderson quis dizer. Lá dentro, a simpática casa se transforma. Com uma escuridão reinante em todo o local, o ar se torna mais frio. Coisas pareciam se mexer na penumbra mas o jovem somente conseguia vê-las com o canto dos olhos. Outras pareciam sussurrar e arrastar pelas paredes, como se vivessem num universo em que a gravidade as jogava para os lados ao invés de para o chão. Um homem negro, enorme e de olhar assustador, os recepciona com um ar nada simpático:

“Anderson...”

“Adebise!” Sorri amplamente Anderson. “Como vai? Garoto, este é o Adebise...”

“Meu nome não é Adebise...” ruge ele “... você sabe muito bem...”

Anderson se volta para ele: “Mas você nunca me disse o seu verdadeiro nome! Qual seria?”

A mudez do homem amplia a sensação de desconforto no local. Anderson parece não ter notado. Vira-se para o jovem e solta uma piscadela.

“Viu? É o que eu disse: Adebise.”

O jovem aprendiz poderia jurar que por fora a casa não parecia tão grande. Seguindo por corredores e mais corredores, todos entremeados de celas de onde saíam as cores e sons mais estranhos pelas frestas das portas (alguns sons lembravam gritos de quem estava sendo torturado, outros uma canção como a de várias sereias... ele não sabia o que seria mais assustador) eles entram num amplo salão dominado por uma luz vermelha. Em meio aos detalhes de correntes penduradas e o cheiro desagradável de animais e sangue seco, o aprendiz percebe ao fundo uma enorme estátua deformada de um ser com corpo de homem e a cabeça de uma mosca. Ele começa a tremer e sussurra baixinho:

“Oh, meu Deus... isso aqui é um templo de magia negra...”

“Claro que é!” Diz Anderson, também baixinho (mais para mostrar respeito que para tentar esconder algo) “O que você esperava? Uma reunião de vendedoras da Avon? Aliás, se me permite um conselho, evite a expressão que acabou de falar enquanto estiver aqui, ok?”

“Mas estamos perdidos... é um lugar de magia negra!”

“Sim, sim, eu já sei. Não sou tão burro. Mas... e se eu te dissesse que conheço lugares que dizem servir ao ‘cara lá de cima’ que são mais assustadores do que aqui?”

O garoto olha para ele com um ar de descrédito. Anderson olha para ele enviesado:

“O que é? Eu tenho cara de alguém que brinca com isso?”

Neste momento, o garoto percebe que das sombras abaixo da assustadora estátua, uma silhueta começa a se formar. Parecia uma mulher envolta em véu de noiva, só que era uma noiva vestida de vermelho. O homem corpulento que os havia acompanhado até aquele momento faz uma mesura respeitosa. Debaixo do véu vermelho que escondia o seu rosto, uma voz que parecia a de três mulheres falando ao mesmo tempo se pronuncia:

“Olá Anderson... seja bem vindo.”

Anderson, também faz uma mesura e o neófito fica sem saber se era de deboche ou não.

“Pitonisa... creio que não preciso apresentá-la ao meu parceirinho aqui...”

A estranha figura parece ignorar o comentário.

“Meu noivo ainda deseja conversar com você pessoalmente, detetive.”

“Eu agradeço o interesse, mas prefiro não ter sócios.”

“Você seria livre, Cria dos Traidores. Não haveria Danação para você...”

“Claro, claro...” se vira para o jovem apavorado “aposto que ele diz isso para todos” volta-se novamente para a Pitonisa “...me dê mais alguns séculos para pensar, ok? Vamos ao que viemos fazer aqui.”

Enquanto dizia isso, Anderson se aproximava lentamente da Pitonisa. Com medo de se afastar de seu Tutor, o Neófito o acompanhava em seu movimento de maneira quase inconsciente. Conforme foi se aproximando, ele percebeu um outro vulto deitado próximo da figura de véu. Parecia um garoto de uns 5 anos encolhido, dormindo. Neste momento, Anderson comenta:

“Cresceu o garoto...”

“Ele ainda não definiu sob que sexo virá...” respondem as três vozes em uníssono “... talvez seja um casal de gêmeos.”

“Que lindo! Me avise com antecedência para o presente do chá de bebê... vamos ao que interessa agora?”

A figura no véu deixa sua cabeça cair para trás, inspira profundamente e – de repente – joga a cabeça para frente de novo, como se estivesse em transe. O jovem começou um princípio de convulsão, com o corpo completamente dominado pelo medo. Mas seu descontrole completo viria com o que acontece a seguir.

Inesperadamente, o garoto que parecia dormir salta para frente e flutua no ar. Seus olhos se abrem e ele começa a falar. Dos orifícios de seu rosto, uma luz espectral avermelhada dança para fora como chamas bruxuleantes. Era como se ele tivesse lava ao invés de órgãos dentro dele. Sua voz ressoa como um trovão rouco, vindo do fundo de um abismo sem fim. Seu corpo permanece esticado e tenso, como se estivesse preso por correntes invisíveis.

“Preste atenção, Cria dos Traidores, pois eu só direi uma vez...”

O jovem aprendiz começa a gritar desesperadamente para sair dali. Seu corpo estava em convulsões profundas e ele chorava descontroladamente. Anderson suspira e solicita ao homem que os acompanhava:

“Acho melhor que ele saia...”

Com um sorriso que era uma mistura de pura zombaria com autêntica crueldade, o homem encaminha o jovem para uma porta lateral. Quando se vê na varanda, ao lado da rede que balançava placidamente com o vento, o jovem começa a vomitar e agradecer aos céus por ver a luz do dia de novo...

Lá dentro, o recado é dado. Como sempre, de maneira dúbia; pois não se recebe a ajuda do demônio sem que ele tenha alguma vantagem por trás disso. Ao se terminar, Anderson fala:

“Bem, agradeço. Creio que o pagamento será o mesmo de sempre...”

“Não desta vez...” diz a voz tripla da Pitonisa novamente “... este é um caso especial, como você bem sabe!”

Anderson não gostou nada do que ouviu. Ele deveria ter perguntado antes, mas a presença do garoto o distraiu destes detalhes. Após um suspiro profundo, ele pergunta:

“Ok, ok. Eu fui um mané. Qual seria o pagamento então?”

“Isso já está sendo providenciado..”

O garoto levitando sorri. A Pitonisa retira o seu véu, olha para Anderson e sorri também. Anderson se controla para não sair balbuciando e chorando também como o garoto com o que vê. Apenas diz:

“Cacete! Me tira logo daqui... não me faça passar vergonha na frente do garoto!”

* * *

Já na rua, Anderson conversa com o garoto mais suavemente.

“Tudo bem?”

O Neófito sacode a cabeça afirmativamente, mas meio que relutante.

“O que era aquilo?”

“A Pitonisa? Dizem que era humana, até que ficou noiva. Na verdade alguns dizem que eram três humanas e outros que era uma humana que se mesclou a outras noivas anteriores que morreram... o garoto é o seu filho, que nascerá ainda, após a consumação do casamento. Dizem que o casamento já está marcado, mas só os noivos sabem da data exata! Deve ser um festão. De qualquer forma, um dos ‘presentes’ de seu noivo foi uma capacidade muito especial de saber das coisas que acontecem e acontecerão...”

“E... e quem... é o seu noivo?”

O Nefilim mais velho olha para o mais jovem com um olhar de aviso.

“E você quer mesmo saber agora?”

Após olhar para seu Tutor, o jovem responde: “Não...” ele então sorri “... não. É melhor ficar nisso por enquanto.”

Anderson se sente melhor; era hora de outra piada para relaxar um pouco.

“Ei, vamos! Assim eu vou ser obrigado a dizer ‘você está demitido’, pô!”

O garoto olha para ele, esperançoso.

“Como assim? Eu posso deixar de ser um Nefilim?”

Anderson revira os olhos.

“Tá brincando? Se isso fosse possível, quantos Nefilim você acha que existiriam? Acredite, ser demitido – para um de nós – é a pior coisa que pode te acontecer...”

“Como assim?”

“Puxa, você não entende uma piada? Eu to falando da Danação.”

O olhar incrédulo do jovem disse tudo.

“Você não sabe o que é Danação?” O garoto nega com a cabeça “Mas que saco de Congregação safada que não faz nada!”

Ele passa o braço pelo ombro do jovem.

“Certo. Eu vou te explicar; o que – tenho certeza – vai te apavorar mais ainda. Mas vamos fazer isso enquanto comemos... esse papo todo de magia negra dá uma fome danada.”

Ele dá uma piscadela para o jovem.

“Mas você é quem paga, certo?”

CONSULTA foi escrito por Danilo Faria

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