sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 64: Distopia

Welcome to Distopia. Faça o que quiser, acreditamos apenas em nós mesmos. A nossa moeda é nossa alma. Soul-Cent.

Já passava das quatro horas da manhã, e Marlon deixou a pista de dança completamente bêbado. Alícia ajudou-o a chegar até a salinha que ficava quase escondida nos fundos da danceteria.

Alicia deu sete batidas na porta — Marlon, tão fora de si, não se deu conta do número, é claro — e entrou.

Um homem vestindo uma camiseta verde-limão esperava pelos dois refastelado num sofá moldável de plástico. Seus cabelos eram compridos e platinados, e sua dentadura mostrava vários dentes do que parecia ser ouro maciço.

— Meu nome é James. James Corn. Mas você pode me chamar de Bittertongue.

Marlon Sena respirou fundo. Já vinha tentando falar com Bittertongue há pelo menos duas semanas. Alícia, sua colega de raves, despertou seu interesse quando falou-lhe sobre a Distopia após uma noite de sexo desenfreado.

— Marlon, nós aqui na Distopia não temos protocolos e vamos direto ao assunto. Junte-se a nós e verá todos os seus sonhos realizados. Quer dinheiro? Mulheres? Homens? Drogas? Violência? Adrenalina? Você vai ter tudo o que pedir.

— Apenas peça — insistiu Bittertongue.

O rapaz de cabelos castanhos e ralos coçou a cabeça, pensativo. Sua vida não era nada fácil, e ele andava com vontade de “chutar tudo para o alto”. Família, emprego, dívidas, tudo.

— Não seja tímido, gatinho. Você pode — era Alicia quem pedia agora, com lábios carnudos num ar profundamente sensual — ser um de nós.

— Eu... eu... — Marlon parecia hesitante. As palavras vinham com dificuldade, sua garganta queimava, sua barriga doía. — Vocês... vo...

As palavras foram interrompidas por uma violenta contração em suas entranhas. Ele ajoelhou-se, trêmulo, e vomitou no tapete de cerdas douradas.

Bittertongue levantou-se e lançou um olhar de nojo para Alícia. — Sweet Venom, você é responsável por quem você traz aqui, sabia? — seu olhar para querer fulminar o rosto moreno de Alícia, conhecida na Distopia pelo apelido — ou nick, como os Distópicos ou Dystopians gostavam de falar — de Sweet Venom, “Veneno Doce”. O homem de cabelos descoloridos parecia agora bem mais alto pelo tom ameaçador.

Alícia passou a mão pelos cabelos de seu amigo, e forçou-o a levantar-se. Usva uma peruca de fios prateados, e sua maquiagem era pesada, com grandes pingos de glitter espalhados pelo rosto e braços. Puxou um cigarro do bolso e deu uma tragada profunda. Estava ligeiramente trêmula, e aparentava muito nervosismo.

— Eu sei o que faço, Bittertongue. Se trouxe ele até aqui, é porque ele vai ser um dos nossos!

James Corn segurou o braço fino da garota com força, e deu-lhe um beijo forte no pescoço, com tanta força que deixou uma mancha rocha na pele macia.

Sweet, me dê um motivo para não matá-lo aqui e agora! Você não pode ficar trazendo qualquer raverzinho pra me conhecer. O poder da Distopia não está à disposição de qualquer um!!!

O tapa veio tão rápido que Alícia não conseguiu evitar.

Bitch!

O sujeito parecia cada vez mais transtornado, e puxou um canivete, apontando-o na direção de Marlon, que ainda parecia meio trôpego.

— Eu mato ele agora, se for necessário! — a lâmina fincou no pescoço do coitado.

Alícia ficou muda.

— James Corn soltou Marlon por um instante, deixando-o cair sobre o próprio vômito. Com um rápido movimento para trás, pegou um controle remoto e ligou o CD Player. As batidas possantes de techno ecoaram pelo recinto como bombas aéreas.

— Agora sim — disse ele, enquanto voltava a ameaçar o rapaz do mesmo jeito.

— Vamos, fracote. Me dê um motivo para não matá-lo... — sussurrou ao ouvido de Marlon. O rapaz tossiu.

— EU QUERO SER DA DISTOPIA — gritou Marlon, com toda a força que conseguiu reunir.

— Não ouvi...

— EU QUERO SER DA DISTOPIA!!!

— Resposta certa, my friend. Mas tudo tem um preço...

— Eu faço qualquer coisa... — Marlon agora estava de pé, limpando as manchas da camiseta.

— Você quer dinheiro?

— Quero...

Alícia soltou um sorriso, e já não parecia ter esquecido das agressões que sofrera. Passou os dedos pela mesinha de vidro no centro da sala de Bittertongue, e encontrou uma pílulas azuis e amarelas, engolindo-as com sofreguidão. O efeito narcótico não demorou a surtir efeito. Soltou um gemido de alegria.

— Você quer diversão? — o homem de cabelos esmaecidos continuou a estanha sabatina.

— Quero... — a convicção de Marlon parecia crescer com o tempo. Ele pensou na infância pobre, na morte precoce do pai, nas brigas da mãe com o padrasto. Lembrou-se do ódio que sentia pelo seu patrão, e na vontade de ter uma moto.

— Você quer ser o mais forte?

— Sim... me dá... — ele pensou mais uma vez no empreguinho que desprezava, na ex-namorada que trocou-lhe pelo vizinho irmão de traficante. Sua vida não valia nada, e ele queria mudar. Para o quê não sabia, mas tinha certeza que não queria continuar como era.

— Você daria um soco em sua amiga? Seria capaz disso? — os dentes de ouros ficaram expostos num sorriso diabólico.

Alícia tentou protestar contra a sugestão, mas não teve nem como reagir. Marlon jogou o punho fechado para trás assim que ouviu a ordem, e a moça só pode soltar um grito de dor, antes de cair por sobre o sofá, com um filete grosso de sangue escorrendo dos lábios sensuais. O homem da Distopia não disse nada, mas seu sorriso denunciava seu contentamento. Ele abriu uma gaveta e pegou algo.

— Olhe para esta moeda — falou James Corn com tanta tranqüilidade que parecia outra pessoa. Era uma moeda dourada que brilhava muito, refletindo as luzes estroboscópicas que atravessavam as persianas do “camarote” de James Corn. Não tinha nenhuma figura em ambas as faces, e era tão polida, que Marlon pode ver sua própria face refletida nela.

— Tudo o que você tem que fazer é apenas pegá-la e trazê-la para mim. A estranha proposta não pareceu muito clara para Marlon, que fez um olhar de confuso. Bittertongue abriu a portinhola que havia na parte escura de sua sala.

— Pegue-a. Agora!

O arremesso foi rápido e certeiro. A moeda atravessou o espaço apertado do cômodo e foi cair no vaso sanitário que ficava atrás da portinhola. Marlon ainda tentou agarrá-la em pleno ar, mas a velocidade do lançamento foi maior e ela desapareceu no líquido fétido da privada.

Marlon ainda parou por um momento como se estivesse analisando a situação em que se metera. O vaso estava quase transbordando, e odor por perto era completamente insuportável. A imundície não estava restrita à água, e formava uma crosta asquerosa que parecia revestir a porcelana rachada da privada.

— O que foi... sujo demais...não vale a pena, não é? Você não seria capaz de ir tão fundo, não é mesmo?

Marlon coçou a bochecha com um ar desanimado.

— O preço é muito alto, não? O poder não vale isso tudo...

Marlon continuou olhando fixamente as águas turvas e fétidas. Apesar de toda sujeira boiando no líquido verde-amarronzado, era possível ver-se um pouco da moeda, bem lá embaixo.

— Pense na moeda como a sua alma. Você não tem força para ir atrás da sua alma e tirá-la da podridão. Shit.

O rapaz ajoelhou-se sem o menor pudor, e enfiou a mão até a altura dos cotovelos na privada imunda. Revirou, tateou, e buscou a pequena peça dourada.

Levantou a mão toda suja, exibindo a moeda como um troféu. Bittertongue e até Sweet Venom aplaudiram. James mais uma remexeu nas gavetas e puxou um cartão de plástico.

— Aqui está seu cartão de crédito. Use-o no que bem entender. Ah, e dia 14 tem uma festa na Devil’s Advocate. Passa lá! Be my guest, badboy!

Marlon fez um gesto de estender-lhe a mão, mas o outro fez um ar de nojo.

— Não, assim não. Primeiro vá se limpar! Sweet Venom,mostre a ele o banheiro do segundo andar. Primeiro lave essas mãos porcas, e depois venha buscar seu prêmio. Fique tranqüilo, ele vai estar aqui quando você retornar. Bittertongue passou a mão com carinho no rosto de Alícia, enxugando com uma surpreendente delicadeza as feridas que ele mesmo ajudara a provocar.

— Sem ressentimentos, my love? — sua outra mão já estava enfiada por debaixo da blusa da garota, que acabara de tragar mais duas pílulas.

— Se liga, Bittertongue, na Distopia é tipo assim, living la vida loca.

— Isso aí, gatinha... — James percebeu que Marlon já estava saindo e chamou-lhe a atenção:

— Ah, e antes que eu esqueça, Marlon, como quer ser chamado de agora em diante? Qual seu nick?

O rapaz de cabelos ralos pensou alguns segundos, e respondeu:

— Rei da Festa.

— Não entendi...

Party King.

— Ah, ficou melhor, welcome to Dystopia, Party King.

Assim que Bittertongue ficou sozinho, apagou todas as luzes de seu “camarote”. Ele mais uma vez puxou seu canivete, e fez um leve corte em sua própria garganta. À medida que o sangue escorria pela lâmina de aço, o fluido avermelhado ia tornando-se um visco esverdeado que transformava a pequena faca numa horrenda arma de aspecto alienígena. Sulcos, espinhos e nós formavam-se na superfície metálica.

— Oh Mammon dos Mil Amigos, mais uma alma conquistada! — entoava o cântico soturno.

Alheio a isso tudo, lá se foi Marlon, sem saber que em vez de resgatar sua alma de uma latrina, ele na verdade estava atirando-a numa. Quando ele passou correndo pelo corredor, quase tropeçando num casal que se beijava no chão, não percebeu que alguém o observava.

Num dos cantos da pista de dança, uma japonesa de cabelos tingidos de rosa bebia calmamente uma mistura de suco de laranja e vodka. Ela sentia-se inteiramente sóbria, e seguia o rapaz com discrição.

“Então é aqui que mora o figurão da Distopia, o palpite de Ânderson estava correto. Tenho que avisar os outros...”, pensava consigo mesma, Algodão-Doce, dos Acólitos. Acabara de descobrir o esconderijo de Bittertongue, líder de um seita demoníaca, que em troca de riquezas e poder, arregimentava almas humanas pelo preço de uma simples moeda, chamavam-na de soul-cent, “centavo da alma”.

Uma simples moeda.

Perder tanto por tão pouco.

Algodão-Doce sentiu muita pena. Olhou à sua volta, e teve a sensação de que dúzias de Marlons em potencial estavam circulavam à sua volta.

Por toda a parte, a Distopia não pára de crescer.

DISTOPIA foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 63: Renegados

O jovem escalava as pedras cobertas de limo com atenção redobrada. Escorregadias e com muitas saliências soltas, margeavam um minúsculo córrego quase oculto, que descia rápido do alto do morro. Mais adiante, protegida por uma muralha de árvores de casca negra e apodrecida, uma pequena cabana de alvenaria indicava que as instruções do velho marinheiro do cais estavam absolutamente corretas.

Passando com dificuldade da trilha pedregosa que cobria o traiçoeiro chão de barro vermelho, Juliano tentava equilibrar seu corpo elegante. O visual sofisticado e as roupas pretas de veludo faziam um contraste chocante com o aspecto bolorento do casebre. Com um ar de nojo, ele bateu na porta sem muita convicção.

Uma vez.

Duas Vezes.

Muitas Vezes.

Nenhuma resposta.

A floresta de árvores raquíticas e troncos cobertos de limo era de um silêncio sepulcral. O rapaz não ouvia nenhum som, era como se nada vivo estivesse ali. Nenhum animal movia-se naquele território, tampouco ouvia-se o canto de algum pássaro. Desapontado e sentindo um crescente desconforto, tirou um minúsculo vidro de remédios de um dos bolsos e engoliu avidamente dois comprimidos de um verde esmaecido. Já estava planejando o longo caminho de volta, quando a porta se abriu subitamente, com um ruído desagradavelmente irritante.

Um velho de longos bigodes cinzentos com manchas de um amarelo forte, explicados pelo cigarro fedorento que ainda rolava preguiçosamente entre seus dedos, cumprimentou-lhe com um sorriso banguela.

— Boa noite, Senhor Juliano Pires, sinta-se em sua própria casa! O que um rico corretor de imóveis tão jovem e bem-sucedido deseja com um ex-marujo caquético e quase esclerosado? Não me parece que as histórias de marinheiros e pescadores sejam tão populares de onde o senhor vem...

— Como você sabe que eu... — tentou explicar-se, com um tom gaguejante e um indisfarçável medo.

— Bem... — os dentes amarelos abriram-se num debochado sorriso — ...pela sua aparência, vejo que não tem o hábito de freqüentar barracos imundos como o meu humilde lar. Assim, imagino que o senhor deve saber muito bem que eu sou um sujeito igualmente bem informado — a voz monótona era pontuada por um pigarro constante, mas que não o impedia de continuar falando. — E conheço também sua “outra” vida, e imagino que o motivo que o trouxe aqui relacione-se a ela. Desculpe se falo demais... — pigarreou duas vezes, com força — ...mas não tenha medo, não sou um sujeito indiscreto. Sei guardar segredo.

A atmosfera quente e úmida e o cheiro de mofo eram insuportáveis. O velho marujo, com os olhos sonolentos, continuava com a sua conversa arrastada, alheio às intempéries. Juliano, ao contrário, suava muito, e passava o lenço branco continuamente na testa e rosto.

— Filho, permita-me chamar-lhe assim, já que tenho idade para ser seu pai, quiçá avô, sinto que você tem muito ainda o que aprender. Em todos meus anos naquela maldita seita, e acredite, não foram poucos, aprendi muitas e muitas verdades. Algumas deram-me a ilusão de ser sábio, outras a de ser forte, mas agora o que eu mais desejo é simplesmente esquecer tudo isso.

O rapaz finalmente criou coragem para interromper o velho:

— Anotações que estão em meu poder mencionam uma “Segunda Rebelião”. Uma conhecida nossa em comum orientou-me a procurar o senhor — disse Juliano, enquanto enxugava o suor que empapava a camisa.

— Amiga? Hmm... — o velho fechou os olhos, como se tentasse lembrar de quem era.

— Eu não gostaria...

— Não se preocupe,meu filho. Já sei quem foi a nossa “amiga”, é uma pena que ela tenha falecido. Minha memória não está tão ruim assim. Prossiga!

— Há meses que estudo referência à tal Segunda Rebelião. Gostaria que o senhor viesse comigo para analisar alguns fragmentos...

O velho sentou-se num sofá de aparência centenária levantando uma nuvem de poeira. Gritou um palavrão, e cuspiu nas tábuas de madeira que formavam o chão da cabana. Começou a falar baixo consigo mesmo, como se travasse um ácida discussão interior. Lançou um olhar repreensivo para Juliano.

— Você não entende que existe uma razão para eu me esconder? Ah, jovens! — o marujo calou-se então, coçando a cabeça, e deu mais uma tragada no cigarro. Jogou a guimba no chão, e ponderou por mais uns instantes, que para o rapaz pareceram durar horas.

— Está certo, vou tirar algumas de suas dúvidas, mas não todas. O porquê de uma rebelião no Inferno? — o velho encarou o jovem com um ar de superioridade. — Sempre existem aqueles que mandam e aqueles são mandados. Sempre foi assim e sempre será! Isto se chama Hierarquia! — as mãos do velho ficavam cada vez mais trêmulas à medida que ele prosseguia no assunto.

Juliano Pires, continuava calado, prestando atenção.

— Mesmo no Inferno, este princípio universal (chamemos assim) criou uma espécie de casta superior, um grupo de anjos caídos que detinha o poder, e conseqüentemente seus privilégios. Opressores e oprimidos, luta de classes, chame como quiser, mas isto gerou uma espécie de atrito que cresceu até níveis colossais. Um grande potencial começou a se acumular vagarosamente.

O velho parou por um momento, como se estivesse querendo uma pausa dramática. Acendeu mais um cigarro num fogareiro a álcool que estava no chão. Densas nuvens de fumaça branca evolaram pelo cômodo. Juliano sentiu vontade de tossir, mas se conteve. O velho então continuou a “aula”.

— Preste atenção, meu jovem, isto prova que até nos abismos mais sombrios do Sheol o anseio por transformação existe. E assim tivemos a dita Segunda Rebelião, precocemente encerrada por eventos imprevistos, ainda inexplicáveis. Graças a isso, hoje estes rebeldes estão caminhando pela Terra e fazendo filhos.

O rapaz pensou bem no que acabara de ouvir. Foi só neste momento que ele percebeu que faltava ao velho dois dedos na mão esquerda.

— Estes “filhos de anjos” são a chave para muitos planos traçados pelas mais diversas seitas e organizações arcanas. Você não imagina como estes planos me causaram problemas... Sua falecida amiga que o diga. Vá embora.

— Como ? — Juliano mostrou-se surpreso pela última frase.

— Vá embora — repetiu.

— Mas, senhor... — o rapaz continuava insistente.

— Vá embora! — o grito saiu num tom quase explosivo. — Eu já lhe disse tudo!

Juliano estava inconformado. O velho tentou empurrá-lo para fora da cabana.

— Que planos são esses? Preciso saber!!! — gritou também, quase derrubando o idoso homem do mar.

— Ora, eu expliquei tudo para nossa amiga, se quer saber mais, pergunte a ela!

O rapaz sentia-se cada vez mais furioso: — Ela... está... morta!

— Ah... eh... desculpe — o marujo reagiu com falsidade.

— Esqueci que ela está morta. É uma pena. Vá embora, já disse tudo!

— Está bem, velho, eu já estou indo. Mas eu garanto — olhou bem nos olhos do seu interlocutor — que em breve nos veremos de novo!

— Ah, com certeza — a gargalhada que saiu dos lábios do velho deu-lhe um ar quase mefistofélico — Isto não acontecerá, rapaz. Pode ter certeza.Quando você retornar, esta cabana estará vazia — completou sua frase com leve safanão no rapaz.

Juliano agarrou o velho pela alça da camiseta.

— Você tem que me dizer mais! Também estou envolvido nisso, e minha cabeça está a prêmio! Preciso de mais informações! Preciso!

O marujo sentia agora o aço frio de uma arma apontada contra sua têmpora.

— Vai dizer tudo o que sabe, velho, agora! — seus dentes estavam trincados, e rosto pálido de Juliano parecia mais pálido ainda. As veias azuladas em sua testa estavam salientes. — Meus antigos aliados querem me ver morto agora, e você é a minha ponte para a salvação!

O marujo — Samir Crispino era seu nome — não demonstrou a menor preocupação.

— O que está esperando? Atire!

Juliano ficou mudo.

— Vá em frente, atire! Não temo a morte, já que sei meu destino é sombrio...

— Apenas diga... — as lágrimas começaram a rolar pelo rosto do jovem.

— O que está acontecendo contigo, aconteceu comigo há muitos anos atrás. Eu sei muito bem que o preço por tanta sabedoria não é nada barato. Atire logo, não seja covarde.

Juliano Pires largou a arma e saiu da cabana. Samir Crispino não fez nada para impedi-lo ou consolá-lo. Sabia muito bem o fardo que é ser um renegado, e a mácula eterna que carregam aqueles que ousaram perambular por caminhos proibidos.

O rapaz era muito novo ainda. Teria que aprender por si mesmo.

O barulho de um tiro ecoou forte pela mata.

Suicídio.

O velho marujo recostou-se na cadeira e acendeu mais um cigarro.

“Ah, rapaz, esperava mais de você. Desistir tão rápido assim...”, pensou Samir consigo mesmo, consciente do fardo que carregaria até o fim de seus dias.

RENEGADOS foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 62: O Quarto Reich

Caído no chão, com fraturas expostas em ambos os braços, vejo alguns dos meus dentes numa poça de sangue. Minha mão esquerda está quase carbonizada, mas pelo menos não sinto mais dor. Meu nome é Nathan Bromsk, e fui contratado por Bernat Barpadom para localizar os assassinos de sua família. Enquanto a hemorragia interna nubla meus pensamentos, sinto minha mente sendo tomada por um estranho estado delirante, onde lembranças mesclam-se como num caleidoscópio imaterial.

A imagem de Barpadom ressurge de forma quase translúcida. Um velho de longos cabelos brancos desgrenhados, com uma brilhante dentadura de ouro. Sentado numa cadeira de rodas, sua voz tinha um tom robótico devido à traqueostomia. O ancião, nascido em Berlim de uma família de ourives judeus, foi preso quando tinha vinte e dois anos de idade e mandado com toda sua família para um campo de concentração na distante Polônia. Pais, tios, irmãos, primos, foram todos mortos após uma vida de escravização e tortura. Na última vez que o vi, Bernat tinha mais de oitenta anos, mas o sofrimento e a sede de vingança o faziam parecer ainda mais velho. Ele jamais desistira de procurar pelos culpados do genocídio que vitimara sua família, e gastou boa parte de seu dinheiro em investigações particulares que levaram ao nome de Hilarius Schwägel, médico nazista responsável por realizar experiências científicas de atrocidade sem par. Hilarius — segundo as fontes de Barpadom — estava vivo, com mais de cem anos de idade, e levava uma vida tranqüila e impune em um xalé nos Alpes Austriacos. Todas as tentativas de Bernat em levar Hilarius aos tribunais haviam sido em vão. O nazista foragido devia possuir amigos influentes e uma grande número de informantes, pois sempre escapava incólume das tentativas frustradas de captura.

O exaurido Barpadom me confessara uma vez que não esperava mais nada da Justiça dos homens, com seus caminhos tortuosos, seus corruptos togados e suas ações seletivas. Caberia a mim — em troca de um considerável pagamento — levar as investigações adiante e dar cabo da vida do odioso nazista.

Minha missão não foi nada fácil, e somente após muitos anos de persistente procura, acabei por localizar o tal xalé, já inteiramente abandonado. Parecia que tinha retornado à estaca zero, mas quando não imaginava mais o que fazer, um misterioso personagem me contatou em Viena.

As lembranças perdem-se em mais um devaneio, quando um novo acesso de tosse me traz de volta ao presente. Cuspo mais um jorro de sangue, e minha cabeça lateja com muito força. As memórias tornam-se confusas. Era Paul o nome do informante misterioso? Ou Paulus? Não... o nome Rivet me vem à cabeça, mas não consigo recordar a ligação entre ambos os nomes. Tão difícil lembrar...

Profanzeichen. Este é único nome que nada me fará esquecer. “Símbolo Profano” ou “Marca Profana” seria o significado em alemão, e isto subitamente me faz lembrar de um salão grande, com grandes paredes revestidas de mármore, e um horrível símbolo vermelho pintado na parede.

Uma garra de três dedos, formando um arremedo de suástica. Um velho vestindo um casaco escuro, com um cachecol castanho. A pele pálida deixava transparecer veias de tom azulado na calva saliente. Tusso mais um pouco. Percebo que há um enorme arranhão em minha perna.

O velho de casaco era Hilarius? Sim... não... sim! Sim ! Era ele, mas ele usava o nome de Doktor H. Por que este nome? O que aconteceu comigo?

Ouso passos atrás de mim, mas não posso me virar. Sinto o frio aumentar ainda mais quando alguma janela ou porta abre-se para exalar uma ventania gélida. A dureza do chão de pedra faz meus tornozelos doerem quando tento me arrastar.

As imagens de um passado não tão distante voltam mais uma vez. Tive acesso a documentos antigos. Não, não eram antigos, embora escritos em um idioma morto. Um caderno de anotações escrito em Alto-Alemão Antigo colocou-me novamente na pista do impune assassino de inocentes. Descobri que gente da alta cúpula do Nazismo estava envolvida em ocultismo e satanismo. Aprendi sobre rituais horrendos, criaturas cuja existência a Biologia nega e tive um pálido relance dos bastidores de uma organização secreta de demonistas conhecida como Profanzeichen. Os objetivos...

Ouço algumas palavras ditas em alemão, com tom ríspido. O estado de torpor nubla minha percepção e não consigo entender o que está sendo dito.

Conquistar e dominar o Mundo, talvez. Instalar o Quarto Reich com todos os meios possíveis, mesmo os mais abomináveis. Preparar o terreno para a chegada da Raça Superior que vai governar este planeta. A Raça Ariana.

Agora, bem no apogeu de minha agonia, consigo recordar que estive cara a cara com o nefasto Doktor H, e suas palavras ainda ecoam em meus ouvidos: “No passado, quisemos construir um império eterno e invencível desfraldando os estandartes de Deus. E falhamos terrivelmente. Mais tarde tentamos o poderio bélico da Ciência e da Tecnologia. Falhamos mais uma vez. Resta agora usar o que nos restou: o poder flamejante do Diabo!”

Uma sombra cobre o chão onde estou deitado. Meu olho esquerdo está inchado e não consigo ver as coisas com clareza.

“O Homem é fraco e débil demais para ter a coragem de fazer um pacto com as hostes infernais!”, foi Hilarius quem disse isso, ou eu li em algum lugar?

“Nós criamos os Ubermenschen!!!”

“Nós criamos os Ubermenschen!!!”, ouço a frase ser repetida mais uma vez, outra, e depois uma infinidade de muitas repetições, bombardeando meus ouvidos com um eco interminável. Ubermenschen, sim, os “Super-Homens”, em alemão.

Nathan Bromsk descobriu o paradeiro de Hilarius Schwäbel, o membro vivo mais idoso do Profanzeichen, organização secreta conhecida de tão poucos. Foi através do próprio Doktor H — o codinome do assassino impune dentro da organização — que o caçador de nazistas acabou aprendendo um pouco mais sobre o maldito culto.

Doktor H não escondeu nada de seu caçador, porque sabia que este não viveria para contar a ninguém. Neste momento, o debilitado Nathan está caído em meio a uma poça de sangue. Alguém o levanta do chão com incrível facilidade. Ele abre os olhos sofregamente e vê um homem enorme com mais de dois metros de altura, olhos azuis como o céu e cabelos claros como palha sorrir para ele.

Um sorriso de pura arrogância. Um sorriso de maldade suprema. Em total silêncio, o gigante nórdico abre a boca, e de sua garganta jorram chamas avermelhadas que engolfam a pobre vítima em uma fração de segundo.

O homem desfaz-se do cadáver calcinado com um ar de profundo nojo e começa a levitar, deixando a sala.

Quando finalmente desfazem-se as nuvens que cobriam a Lua Cheia, a luz do luar penetra pelas frestas da ampla janela. Na parede iluminada, é possível ver pintado o demoníaco símbolo de uma garra vermelha. O símbolo da Mão de Satã.

O símbolo do Profanzeichen.

O QUARTO REICH foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 61: Carlos Miguel, Bastardo

Ivan aproveitou que nenhum dos três homens estava olhando para puxar o frasco de comprimidos do bolso. Engoliu três de uma vez, rezando para que o bate-estaca em seu peito diminuísse e ninguém percebesse as grossas gotas de suor que desciam pela fronte.

Nunca teria imaginado que o dia terminaria desse jeito. Estava na facção há dois anos e nunca... O dia era para ser de glória. Haviam finalmente pego Azulão, traficante que ousou intervir nos negócios de seu chefe – o simples pensar nele provocava arrepios em sua espinha.

O patrão queria cuidar pessoalmente de Azulão. Por isso eles estavam aqui, em frente a um dos prédios mais luxuosos da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ivan nunca havia encontrado o líder da facção e, sinceramente, esperava nunca encontrar. Somente as histórias sobre o homem — se é que era um homem — já eram mais que suficientes para se manter à distância.

Diziam que para chegar à posição atual, havia matado todos os outros traficantes locais — até aí, nada demais. Essa gente vive se matando mesmo. O estranho era a forma como os corpos apareciam: alguns com os tórax abertos, destroçados, como se algo houvesse forçado a saída, ou mumificados, com a pele ressecada e esticada nos ossos, mesmo poucas horas após a morte. Invariavelmente, os cadáveres não possuíam globos oculares.

Ademais, os poucos que o viram costumam se referir à sombra — ninguém com quem conversou podia descrevê-la. Todos, porém, relataram ter perdido uma parcela de sua sanidade ao ver o contorno negro que acompanhava o chefe. “Chefe”, “patrão”, só se dirigiam a ele assim — ninguém sabia seu nome, nem ele parecia se preocupar com um. Por isso os membros do grupo costumavam chamá-lo de “inominado”.

Por essas e outras, Ivan não estava nem um pouco ansioso em encontrá-lo.

Cinco homens saltaram da limusine negra: Ele, Roberto, braço direito do patrão, dois integrantes antigos da facção, e Azulão, algemado e meio que carregado pelos outros. Sua vista estava opaca e seu corpo molenga. Sintomas da droga que haviam lhe injetado.

Ivan não se surpreendeu quando as portas de vidro esverdeado foram abertas sem qualquer resistência. O prédio todo pertencia à organização criminosa, assim como várias outras propriedades espalhadas pelo país e até no exterior. Atravessaram o luxuoso saguão e entraram no impecável elevador. O brilho da insígnia referente ao 33º. andar, último do edifício, lembravam ao homem as labaredas infernais que esperava encontrar quando chegasse lá.

Mas não. Naquele andar havia apenas uma sala de estar recheada de obras de arte e uma solitária porta entreaberta. Talvez fosse imaginação, mas Ivan achou estar vendo uma espessa fumaça negra escapar pelas frestas da porta.

Teve que ser empurrado por Roberto, que se adiantou e atravessou o portal, permitindo a visão de um aposento na penumbra. Podia ver que se tratava de um escritório, com estantes e mesas rigorosamente arrumadas. As paredes, com exceção da entrada, haviam sido substituídas por janelas panorâmicas, brindando a todos com a visão esplêndida do negro oceano atlântico e das luzes das residências litorâneas.

Roberto empurrou o traficante para o assoalho de fina madeira. Puxou do bolso um estojo e dele uma seringa, espetando-o no braço do homem. Imediatamente os olhos dele perderam a apatia; levantou xingando e cuspindo, com as mãos ainda algemadas. Teria partido para a briga assim mesmo, mas o som de passos o conteve, assim como paralisou Ivan.

Saindo literalmente das sombras — o capanga não tinha uma expressão melhor — um homem moreno, talvez um resquício do negrume de onde saiu, vestindo um impecável terno italiano, se aproximou do grupo.

Ivan imediatamente sentiu-se decepcionado; tratava-se de um garoto! Não tinha mais de 25 anos. Ainda assim, atraía a atenção de todos.

— Aí está o traficante que nos causou tantos problemas, senhor — disse Roberto. — Está ao aguardo de sua punição...

O chefe não respondeu. Limitou-se a se aproximar do traficante, que balbuciava palavras sem nexo, uma sombra das injúrias de segundos atrás. Passou a sujar com baba a blusa de malha que usava. Antes que o inominado o tocasse, já havia urinado, criando uma grande mancha na calça jeans.

Foi tocado na testa pelo patrão, tendo o mesmo efeito se fosse ligado a uma tomada: seu corpo todo entrou em convulsões contidas, e as pupilas se esconderam dentro da cabeça, deixando à mostra apenas o branco entremeado de sangue da parte anterior dos olhos.

Ivan fez força para virar a cabeça, mas alguma energia o tolhia qualquer movimento. Foi assim, como uma estátua viva, que assistiu à pele de Azulão esticar sobre os ossos e seus globos oculares pularem para dentro. A visão dos dois buracos negros, insólitos na face já pontuada pela dor, o faria vomitar, se isso fosse possível. Finalmente, após uma década ou um minuto, o inominado cortou a cabeça do homem com uma faca.

Foi então que se virou, e Ivan sentiu — mais do que viu — os contornos negros que o seguiam, indiscutivelmente formada por chifres e o prenúncio de uma fina e bifurcada cauda... Foi então que sentiu a dor no peito. Durou apenas alguns segundos, tempo em que o ar da sala tornou-se espesso demais para descer por suas narinas. Caiu no assoalho, ao lado e na mesma situação da cabeça grotesca do traficante.

— Eu sabia — falou Roberto — que ele era fraco. Por isso o trouxe.

O chefe mal olhou para os corpos. Apenas distribuiu algumas ordens e garantiu recompensas para todos. Rapidamente atravessou o aposento e entrou numa porta parcialmente encoberta por uma estante, disfarçada ainda pelos entalhes da parede. Só existia uma chave para aquela fechadura, e o homem nunca a retirava do cordão que trazia no pescoço.

O quarto não era nem sombra do luxuoso escritório. Poderia ser um closet, a julgar pelo tamanho. Havia apenas um repouso para um livro aberto — a Bíblia —, e, na parede em frente, a imagem de Cristo crucificado. Diante do altar improvisado, no chão, estavam caroços de milho espalhados. O patrão puxou a calça do terno para cima, deixando a mostra a pele fina do joelho. Ajoelhou-se com ferocidade sobre o milho, rezando em voz alta para estancar o sangue que descia por sua canela..

Longe dali, em algum lugar, um rádio tocava o refrão de uma famosa música de anos atrás:

There must be an angel
Playing with my heart.

CARLOS MIGUEL, BASTARDO foi escrito por Andre Esteves

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Rebelião 60: Tanatológicas

Na porta de Rita de Almeida Campos, na cobertura de um luxuoso prédio de apartamentos no Leblon:

"O calor desta selva evoca lembranças de Barcelona.

Estou na cidade, procure-me.

P."

***

A campainha toca. Nem preciso ligar para a recepção e perguntar porque minha visita subiu sem ser anunciada. Abro a porta.

— Olá, Rita.

Um tapa sonoro me acerta o rosto. Vestido preto justo, sem ser vulgar. Cabelos anelados, longos.

— Galego imundo...

Limpo o filete de sangue no canto de minha boca.

— Posso perdoar você por isso. Minha mãe sempre me disse que as mulheres batem por amor. Acho que aprendeu isto com a sua, também.

Ela ensaia um segundo tapa. Seguro sua mão e a jogo para dentro do quarto.

— Só não posso perdoá-la por me chamar de "galego".

Ela cospe em mim. Mulher voluntariosa. Dá uns tapas sem propósito. Recebo todos. Ela pára arfando, os lindos dentes, brancos, brancos, atrás dos lábios escuros. Meus olhos a percorrem de cima a baixo. Arranco seu vestido com as mãos e puxo o sutiã sem cuidado. Uma presilha abre um corte pouco baixo de sua axila. Ela me beija, a língua quente, ávida, girando em minha boca. Termino de rasgar suas roupas. Ela arranca as minhas.

Um cavalheiro jamais comentaria o que se passou em seguida.

Mas, ao fim de tudo, satisfeito como um cão, sinto um nojo de minha humanidade que me dá ganas de surrá-la por me fazer sentir assim. Ela percebe isso. Sempre percebeu.

— É meu modo de puni-lo, Precursor.

O olhar petulante e desafiador. A língua levemente colocada entre os dentes, lábios carnudos, generosos... mas que diabos...

Novamente, como um cavalheiro, devo me calar.

***

Sob uma rosa-chá, na cabeceira o lado da cama onde repousa a Venerável Rita de Almeida Campos:

"Rosa-chá, porque a paixão já foi satisfeita. Fica a ternura de nossa amizade e um pedido: Konstantin Efremov. Preciso falar com ele, e só você pode trazê-lo.

Na minha casa ou na sua?

P."

***

Restaurante do Copacabana Palace, às 12h30. O garçom aproxima-se do conhecido hóspede com um envelope em mãos:

— Com licença, Sr. Paulo.

O hóspede recebe o envelope sem perguntas e despede o garçom.

"Paulo,

Assim como os ladrões, você chega sem ser anunciado e parte na calada da noite. Mas não me recinto por isso. Embora não haja qualquer ternura no relacionamento doentio que existe entre nós (e que você preferiu chamar de "amizade") estou curiosa para saber qual a nova diatribe que está aprontando.

Venha à minha casa amanhã, ao entardecer. Creio que a gerência de hotéis internacionais ainda não seja tolerante com ocultismo e tanatomancia.

Aguardando a festinha,

R."

O hóspede guarda o envelope no bolso de seu paletó, termina sua comedida refeição e bebe um cálice de vinho do Porto. E Sai satisfeito para o calor ardente do meio-dia.

***

O carro era negro, com vidros escuros. Parou em frente ao velho prédio, onde se lia na fachada: "Sebo". O Precursor subiu a escada estreita, ouvindo a madeira dos degraus ranger sob seu peso. A livraria ficava no andar de cima do sobrado. Um gato preguiçoso sacudia o rabo, devagar, deitado sobre uma pilha de livros bolorentos. Num mural de cortiça, anúncios de cursos de Gnose, Teosofia e Espiritismo. Um homem de meia-idade, cabelos grisalhos, desalinhados, e grossos óculos fazia palavras-cruzadas atrás de um balcão de madeira.

— Tenho um bilhete para o dono.

O homem levanta seus olhos da revista, sem interesse, mas estranhando as finas vestes de seu visitante.

— Sou eu mesmo.

— Não, não é — responde tranqüilamente o nefilim. Ele tira uma moeda de ouro de seu bolso, gravada com o emblema da coroa portuguesa, e a joga sobre o balcão — Eis o óbulo de Caronte.

O homem observa a moeda e levanta a portinhola do balcão que o separa do visitante,o convidando a entrar. Uma porta de madeira velha, coberta de pintura descascada, é aberta e ambos seguem por um corredor úmido e escuro. No fim, através de uma cortina de contas, um brilho bruxuleante lançava fantasmagorias rubras nas paredes.

Era uma sala pequena e abafada, apenas com um pequeno basculante, um altar de madeira roída, frente ao qual estava um velho, uma escrivaninha e uma mesinha com velas acesas. Um velho, de costas para a entrada, com as mãos espalmadas sobre o altar perguntou à sua entrada:

— O que quer, Paulus?

— Preciso de um favor de seu patrono, simoníaco.

— Seus favores são caros...

— Já deixei alguma dívida aberta?

Sem se virar, o velho aponta com a mão esquerda a escrivaninha. Há duas gavetas: de uma delas, Paulus tira uma folha de papel almaço e uma caneta esferográfica. De outra, uma vela de cera ocre. E põe-se a escrever:

"Ahasverus,

Vós, que jamais encontrais descanso sobre esta terra, e cujos olhos viram demais, e cujos ouvidos ouviram o indizível, dignai-vos a atender meu apelo: devo mover-me neste orbe como fazes, dos espectros o vetusto fantasma; que nem mesmo o Genitor meu, pelo sangue plenipotente que tem, me possa encontrar neste mundo."

A carta é entregue ao velho e colocada aberta sobre o altar. Nada é dito, o ancião sequer olha a folha à sua frente. Alguns segundos e passam sob o crepitar lento das velas, a respiração regular do homem, e o clima de modorra da sala é bruscamente rompido com a queima espontânea da carta. O fulgor repentino exibe caracteres de uma língua esquecida na parede frente ao altar. A vela nas mãos do Precursor se acende, e o velho fala, extático:

— Terás tua dádiva por seis dias.

O Precursor coloca a vela sobre a mesinha e retira um diminuto aparelho celular de seu bolso.

"Sem sinal".

Paulus sorri e recoloca o aparelho no bolso. Deus criou o mundo em seis dias. Ele tinha este tempo para saber como começou o seu.

Aqui começam os Atos de Pavlvs.

CARTAS PAULINAS III: TANATOLÓGICAS
foi escrito por Renato Simões


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Rebelião 59: Marcelo Figueira, Paladino

O fogo chamuscava a pele já lacerada da mulher nua e acorrentada a um pilar de pedra natural. Dezenas de outros pilares semelhantes espalhavam-se pela enorme caverna onde ela estava. Rios de lava cortavam o chão, exalando uma fumaça que a sufocava e a impedia de abrir os olhos, rubros de irritação e choro. O cheiro de enxofre impregnava suas narinas a ponto de tonteá-la, caso já não estivesse no limiar dos sentidos.

É. Aqui é o inferno.

Criaturas disformes a molestavam sexualmente, com objetos e formas que aqui não podem ser descritos. Nesse meio tempo, sua pele, músculos e nervos eram castigados pelo chicote de ponta tripla manejado com habilidade pelo torturador. Somente agora ele era visível, seu dorso negro molhado ante o ímpeto aplicado no instrumento de dor. As correntes não agüentaram os espasmos de agonia e a mulher tombou de costas no chão pedregoso, oferecendo o glúteo avantajado e ainda intocado ao torturador. A visão combinada com os gritos dela o fizeram gemer.

Agora era possível ver seu rosto. É ele. Ele era o torturador.

Tudo gira e escurece ao mesmo tempo. Ele está nu e sente o vento machucar a pele. Está muito ferido, com quase todo o corpo em carne-viva. Dois pontos surgem na escuridão, como dois olhos de um ser poderoso. Ele vê que está numa estrada.

Tenta levantar e não consegue; a picape freia a ponto de inclinar para a esquerda, cortando o silêncio da noite com o contundente friccionar dos pneus com o asfalto. O veículo pára a centímetros de seu rosto. A luz forte dos faróis machuca sua vista.

Da picape descem duas mulheres jovens — uma magra e alta, de cabelos ruivos, e outra baixa, com o rosto de proporções imperfeitas. Elas tentaram levá-lo para o carro, mas a força retornava a seu corpo. Com mãos de ébano ele esmigalha o pescoço das duas, sujando de vermelho o tracejado branco da estrada.

Marcelo pula da cama. Outra vez o maldito pesadelo! Invariável, todas as noites do último ano. Ele levantou e abriu a janela, deixando o vento levar embora seus tormentos, como sempre.

As cenas de pesadelo, com exceção das passagens demoníacas e o assassinato das mulheres, haviam sido reais. Há um ano ele foi achado na estrada. O espelho às suas costas mostrava as cicatrizes dos ferimentos que apresentara naquela noite. Fabiana e Simone haviam-no levado para um local seguro e restabelecido sua saúde. Quando perceberam que ele não sabia por que estava na estrada e como havia se machucado, nem mesmo quem era ou onde morava, deram-lhe um nome: Marcelo. Deram, porém, muito mais que isso: com elas descobriu que era um Nefilim, filho de um anjo caído. Treinara poderes e descobrira habilidades. Seu apartamento era repleto de esculturas de madeira e gesso, consideradas soberbas por muitos críticos. Numa das paredes, uma longa espada japonesa emprestava um toque oriental ao ambiente. Mas, longe de ser apenas uma peça de decoração, tornava-se nas mãos de Marcelo um implacável instrumento de morte.

Tudo isso aprendera — ou reaprendera – no último ano. Devido a essas características, foi determinado que ele era um Paladino — uma linhagem que vê a batalha como uma forma de arte.

Tinha uma casa. Uma profissão. A amizade de Fabiana, líder, podia se disser, desta congregação de Nefilins no Rio de Janeiro, assim como a confiança da maioria dos congregados. Tudo que queria.

Ainda assim o mesmo pesadelo: as imagens demoníacas, a tortura, o assassinato de seus amigos. Por que tudo isso?

Ele não sabia — fechou devagar a janela, encostando a testa no frio alumínio, os olhos cerrados —, ou melhor, sabia.

MARCELO FIGUEIRA, PALADINO foi escrito por Andre Esteves

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Rebelião 58: Desequilíbrio

O som do fósforo sendo riscado foi seguido pelo despontar de uma chama amarelada, débil demais para permanecer acesa. A segunda tentativa foi mais eficiente, e o clarão foi forte o bastante para verificar como eram as marcas no portão de madeira.

Após observar aquilo com muito cuidado, a japonesa de estatura baixa e pernas grossas aproveitou a mesma chama para acender um cigarro. Seus cabelos estavam tingidos de um cor-de-rosa pastel, um traço peculiar que dera origem ao apelido pelo qual ficara conhecida, ou seja, “Algodão-Doce”. Tizuko Yamamura, nascida em 1945, aparentava ter pouco mais de 20 anos de idade, e vestia uma jaqueta sem mangas por cima de uma camiseta preta. Puxou um bloquinho encardido de um dos bolsos e começou a anotar alguns pensamentos. Segurava numa das mãos um pingente de cristal azulado, com caracteres hebraicos gravados nas faces do brilhante.

Os indícios eram fortes e incontestáveis: algo de sobrenatural estava ocorrendo naquele bairro, especialmente naquela casa abandonada. As inscrições no Cristal Azul de Zorobabel refulgiam com um leve brilho amarelado, indicando a presença de poderes infernais ativos nas redondezas. A madeira velha porém resistente tinha sido feita em pedaços por alguém de força muito acima do nível humano. Três pessoas já eram dadas como desaparecidas, e duas outras haviam sido encontradas mortas nesta rua. Um Acólito local — Lance Merman era seu nome — percebeu que havia algo muito estranho ocorrendo e mandou um e-mail para Gargântua, que imediatamente localizou Algodão-Doce, uma das melhores pesquisadores de toda a Linhagem. Especialista em investigar eventos paranormais e confrontar ameaças de todos os tipos, Tizuko tomou rapidamente um avião e seguiu de Tóquio para Saskatchewan, no Canadá. Com as indicações de Lance, a japonesa de cabelo rosa não teve nenhuma dificuldade em localizar a tal rua “maldita”.

Lance, aliás “Rastejante”, como era mais conhecido, insistiu em acompanhar a investigação de Algodão-Doce, mas Tizuko sempre preferiu agir por conta própria, e dispensou qualquer auxílio. Cá estava ela, parada em frente ao prédio abandonado, sem se importar com a geada cobria as ervas daninhas que persistiam em crescer no chão estéril.

Algodão-Doce decidiu acionar a sua Prontidão, a fim de detectar a presença de alguma entidade, mas o ataque inesperado foi tão rápido que ela nem precisou de seus sentidos místicos para entender o que acontecia. Uma escuridão absoluta envolveu-a por completo, mergulhando-a em trevas tão compactas que pareciam estar sólidas. Tal artifício não seria capaz de deter uma Acólita tão experiente quanto ela, e com a Centelha Ofuscante, ela conseguiu dissipar parte de seu negro envoltório. Quando voltou a enxergar, percebeu que duas baratas enormes caminhavam por sua perna.

O horror que sentia aos insetos fez com que acabasse tropeçando e caindo num buraco do assoalho. As baratas agora não eram duas, mais algumas dúzias, e cobriam seu corpo com uma avidez nojenta. A legião de insetos parecia estar multiplicando-se à uma velocidade impossível, o bastante para ela intuir a sua origem: Sussuro de Samael, um manifesto abissal característico dos Nefilim, da mesma forma que a Escuridão de Tehom.

Antes que Algodão-Doce conseguisse elaborar mais algum pensamento claro, uma nova onda de trevas invadiu o cômodo vazio, e junto com ela, algo rugindo e gritando. A japonesa foi arremessada com toda força contra a parede, e caiu no chão sem respirar. Sentiu algumas costelas quebradas, e tentou conjurar uma Espada de Gabriel, mas as baratas continuavam engolfando seu corpo num vagalhão de pernas e cascas mal-cheirosas. O medo tomou conta da corajosa Nefilim, que sentiu sua fobia a insetos crescer num rompante asqueroso. A conjuração da arma celeste vacilou, e sentiu garras monstruosas rasgando seu peito, e arrancando parte de seu braço.

Três formas espectrais ergueram-se do chão, bruxuleando em horríveis semblantes disformes. Três pessoas mutiladas estavam à sua frente, gritando palavras de agourentas.

“Ele vai matá-lo como matou a nós!”, gritava um dos fantasmas, enquanto o outro segurava a própria cabeça decepada com uma das mãos esquálidas.

Fobia e Corporificar Fantasma. Tizuko detectou imediatamente mais dois poderes infernais. Quem seria esse Nefilim?

As trevas sumiram por um instante, e ela pôde ver claramente o seu oponente, o que provocou um grito de horror.

Um homem enorme e obeso, inteiramente nu, cambaleava com os ombros arqueados, e enormes braços terminando em mãos grosseiras com unhas desmesuradamente grandes. O corpo estava coberto por enormes feridas e por uma espessa camada de pêlos ruivos, que juntavam os cabelos e a barba numa formação tão compacta que quase recobria seus enormes olhos azuis.

— Não, você não! — gritou Tizuko, chorando. — Eminência?!!!

Aquele monstro disforme que estava li parado, babando e grunhindo como se fosse um animal irracional, já fora um Acólito no passado. Everett Walker era seu nome de batismo, e na Linhagem foi conhecido como Eminência devido à sua imponência e cultura. Era simpático, bem-humorado e caridoso. Junto com Algodão-Doce e Oedipus, fora tutelado pelo Pianista, na própria cidadela secreta de Heliópolis. Uma seqüência de acontecimentos infelizes levara o atormentado Everett aos limites de seu equilíbrio, e ele foi o primeiro Acólito a ceder às tentações do Sheol, tornando-se um diavolo, uma besta irracional mantendo os poderes de um Nefilim. Algodão-Doce já enfrentara os mais diversos tipos de inimigos em todas as partes do mundo, mas jamais tinha lidado com isso.

Nada era pior que enfrentar um próprio ex-amigo.

A criatura que já foi Eminência soltou um grito feroz e golpeou sua vítima, com força suficiente para partir as placas do assoalho. Quando preparava para saborear o próprio triunfo, percebeu que Algodão-Doce havia desaparecido por completo.

A decepção o fez guinchar mais uma vez, com a baba escorrendo pelos cantos da boca.

No segundo andar do prédio, um vulto começou a tomar forma em pleno vazio, solidificando-se rapidamente. Era a Nefilim que voltava à sua forma real. O manifesto celestial Dispersão do Silfo salvara a sua vida mais uma vez. Sua preocupação imediata era concentrar-se para acelerar a cicatrização dos ferimentos, e fez um torniquete para deter o sangramento do braço decepado. Sua situação tornava-se crítica. Foi quando lembrou-se do que estudara uma vez nas anotações da Polaca Voadora: os diavoli tornam-se seres tão caóticos e incontroláveis que não podem ser mandados sozinhos de volta a Adamah. Se havia um Nefilim abissal, devia haver algum humano responsável pela invocação servindo de guia para o demônio.

Ela podia ouvir seu ex-amigo gritando e esmurrando no andar de baixo, não podia mais perder tempo. Ativando sua Gnose — o que fez com certa dificuldade, pois os ferimentos prejudicavam sua concentração —, Algodão-Doce conseguiu detectar linhas de força mística brilhando de forma sinistra. Ela podia perceber um elo de energia infernal atravessando a casa, ligando o Diavolo a alguém — algum bruxo, sem dúvida — em outro cômodo. A ação estava clara em sua mente.

Mais uma vez vaporizou seu corpo e seguiu rapidamente até a direção de onde vinha a aura maligna. Materializando-se com cautela, ela percebeu o homem de feições esquálidas e cabelo cor de palha que sentava-se num sofá mofado. A Gnose tornava visível a silhueta espectral de uma criatura horrenda de chifres espiralados pairando e envolvendo o corpo do feiticeiro. Eminência estava agachado no chão, coberto de suor e sangue coagulado, como se fosse uma espécie de cão de guarda.

O Diavolo virou a cabeça rapidamente, e retesou os músculos, quando viu a moça oriental brandindo uma espada de luz em sua direção. O salto foi perfeito e ele usou seu próprio corpo como um aríete esmagando-a junto à parede com barulho abafado. A moça caiu com o crânio esmagado no chão, o que fez a fera humana urrar de júbilo.

— Eu aprendi com você, Eminência — o monstro foi surpreendido pela voz da mulher subitamente aparecendo na direção oposta. A seus pés a imagem do cadáver de Tizuko desvanecia-se no ar, e quando ele virou o rosto. Pôde ver o bruxo morto, caído com os olhos revirados aos pés da Acólita. Nos ombros da japonesa brilhavam duas enormes asas de luz, visíveis para os olhos inumanos do Diavolo.

O nefilim insano quis atacá-la, mas uma grande chama envolveu seus pés,e ele sentia seu corpo queimando em agonia. Os olhos de Algodão-Doce brilhavam, e ela percebia claramente o que estava acontecendo. Sem a “âncora” humana do feiticeiro, o Diavolo não podia permanecer na Terra, e estava retornando ao Sheol.

— Foi você quem me ensinou a usar o dom da Consciência Vazia, querido mestre — disse a mulher, aos prantos. Infelizmente eu não estou forte o bastante para matá-lo agora, mas acho que voltaremos a nos encontrar.

Nos pontos onde o Diavolo pisava, o chão parecia derreter e transformar-se num plasma efervescente que envolvia o seu corpo, removendo-o dolorosamente da dimensão terrestre.

— Como eu lutei para salvar sua alma, Eminência! O quanto eu batalhei para evitar que você sucumbisse à Queda!

Quando as chamas envolveram por completo a atormentada criatura bestial, ele pareceu balbuciar: — ULGDN...DUSSSSS

Tizuko Yamamura, vulgo Algodão-Doce, deixou a casa abandonada, satisfeita por ter derrotado mais um desafio. Estava exausta e ferida, e precisaria de muito tempo para regenerar o corpo enfermo.

Em sua mente um pequeno som, como o tinido de um minúsculo sino ressoou. Ela não deu importância.

Era doloroso confrontar um ente querido que seguira a trilha da Queda.

Mas sem perceber, ao descuidar-se do próprio equilíbrio para enfrentar tão difícil missão, ela dera o primeiro passo, ainda que na direção oposta.

A trilha da Ascensão.

DESEQUILÍBRIO foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 57: A Vítima

Mesmo à noite, o calor do verão continuava intenso. No grupo de homens que vigiavam a passagem para a boca de fumo, Zelito ainda palitava os dentes com uma lasca de palito de fósforo quando viu seu primo Zé Enoque chegar de mãos vazias do bar do Tonhão. Ele queria trazer algo para matar a sede, mas o bar já estava fechado.

Todos estavam bem armados, com exceção do próprio Zelito, sentado despreocupadamente no capô de um velho fusca verde-escuro contando o dinheiro que havia ganho ao fim da noite. Por perto não havia nenhuma casa com luzes acesas, pois o chefe dos traficantes havia ordenado que ninguém subisse o morro.

Zelito e seu bando estavam nervosos, preocupados com o boato de que a gangue do morro vizinho pretendia invadir o seu território. Quando ouviram passos vindos da parte de baixo da escadaria que levava até onde eles estavam, os ânimos ficaram muito, mas muito sobressaltados.

O barulho ritmado indicava serem passos femininos: o som do salto alto subindo os degraus era inconfundível. Zelito, com um gesto silencioso, mandou Rato e Jéverson cuidarem da “dona”.

Jéverson, com o coração batendo forte — tinha poucos meses no “ramo” — não acreditou no que via. Uma mulher jovem, miúda, muito atraente, vestindo um elegante vestido preto, com um colar vermelho de bijuteria e cabelos platinados, subia desajeitadamente a escada tendo ao colo um pequeno cãozinho poodle cor de canela.

Ele apontou a arma para o rosto da “madame”, sem o menor acanhamento. Esta limitou-se simplesmente a encará-lo com um olhar triste.

Rato olhou a mulher de cima a baixo, despindo-a com os olhos, e deu uma cutucada em seu parceiro, como se dissesse “ vendo o que eu vendo ?”

Os dois ainda estavam rindo, quando Zelito e Zé Enoque chegaram, com armas em riste — Zelito teve que buscar apressadamente uma arma —, mas perceberam que estavam preocupados à toa. Zé Enoque soltou um enorme sorriso quando viu a garota morena de olhos azul-claro.

— Ora, ora, uma patricinha tão bonitinha aqui, nessas hora, veio atrás de ... ou de macho? — O rapaz de cabeça raspada trazia uma tatuagem de dragão — pelo menos foi o que o tatuador parecia ter tentado desenhar — no ombro direito, e usava uma camiseta amarela fajuta de time de basquete americano. Cuspiu o chiclete que estava mascando, e sussurrou algo extremamente obsceno ao ouvido da moça.

Esta continuou calada, limitando-se a soltar o cachorro, que pulou alegremente para o chão de cimento e terra. Zé Enoque passou a mão lentamente pelos quadris da “invasora”, e deu-lhe um tapa bem forte no traseiro.

— É hoje! — gritou Rato, gargalhando, no que foi acompanhado por Jéverson. Os três cercaram a pequena mulher, que parecia um brinquedo perto dos enormes traficantes. O cachorro rodeava o grupo, e lambia os calcanhares dos bandidos, que afastavam-no com os pés a cada tentativa.

“É hoje sim, mas não pra você, Zé...”, interrompeu-o Zelito, flexionando os músculos hipertrofiados. Era o mais alto e mais forte do grupo, e usava um bigodinho que contrastava com a enorme cicatriz que tinha na bochecha.

Zelito não deu a mínima para a cara de decepção que seu primo fez, e com um gesto firme puxou a menina para junto de si. A mulher de tubinho preto continuava calada, mas sua fisionomia mudara um pouco. Lágrimas começavam escorrer de seus olhos, e o traficante viu que ela parecia desesperada e indefesa. Maravilhosamente indefesa.

— Vou te dar um chance, tchutchuca, se veio aqui prá comprar da gente, e tiver com muita grana, eu deixo você ir embora...

A garota chorava sem parar, de cabeça baixa, sem som nenhum.

— Tá com dinheiro, gatinha? — perguntou Zelito, sob o olhar cúmplice de seus colegas.

Ela continuou no mais absoluto silêncio.

— Tá...ou não tá? — seu riso era diabólico.

A mulher não respondeu, no que levou um tapa no rosto. Zé Enoque soltou uma enxurrada de palavrões. Zelito xingou a mulher e tentou forçar uma resposta, mas em vão.

— Não tem dinheiro pra , vai o resto! — puxou a moça com violência, agarrando-a e levando para um matagal que tomava conta da parte de trás da viela. O cachorro dela começou a latir e pular. “Eu sou uma cara de sorte”, pensava ele, nesse momento, insensível. O lugar ficava perto da borda de um paredão rochoso, de onde era possível ver as luzes dos prédios imponentes da Zona Sul carioca.

As lágrimas corriam em sua face, cada vez mais abundantes, e ela foi jogada no chão de forma brusca. O vestido foi rasgado de um golpe só, deixando à mostra os seios pequenos. O poodle seguiu a sua dona com seu latido estridente, e deu uma mordida no calcanhar de Zelito, que reagiu chutando o cãozinho com tanta força que o pobre animalzinho aterrizou ganindo numa moita de arbustos espinhosos.

— Tu veio até o inferno, vai ter que conhecer o capeta — disse, enquanto tentava tirar a própria calça da forma mais rápida possível.

Cobriu a boca dela com a mão pesada. — Não adianta gritar, não tem ninguém pra ouvir mesmo...

Ela mostrou então um sorriso — para surpresa de Zelito — e então abriu a boca a primeira e única vez, soltando uma palavra incompreensível.

O barulho irritante do cachorro foi ficando cada vez mais forte, transformando-se num misto de rugido e grito rouco. Zelito sentiu um rajada de vento frio e gelado na espinha, seguido de um cheiro putrefato. Quando olhou para a moita, viu o que parecia ter sido o poodle contorcendo-se num paroxismo frenético. Músculos inchavam como balões, os pêlos engrossavam, e a boca rasgava-se e crescia assustadoramente. Dezenas de dentes afiados pareciam brotar espontaneamente, decorando a bocarra feroz. O bichinho de estimação era agora assustador animal de pêlos negros compactos e olhos vermelhos como fogo. Zelito não se mexeu, como se paralisado pelo medo.

O cachorro saltando em sua direção foi a última imagem que conseguiu ver antes que os dedos da mulher penetrassem em seus olhos como duas garras afiadas velozes como um tiro.

À medida que a escuridão tomava conta de tudo, ele ouviu a moça gargalhando, acompanhada de um barulho pavoroso e indescritível de ossos estalando. Sentia que estava sendo erguido do chão como se não pesasse nada.

Algumas rajadas de metralhadoras foram ouvidas bem ao longe.

Zelito sempre se considerou um sujeito de sorte. E, de uma forma um tanto irônica, a sorte acompanhou-o até os últimos instantes. Os olhos vazados pouparam-no de testemunhar aquela bonita e delicada garota transformar-se numa criatura horrenda, com pêlos irregularmente espalhados pelo corpo, presas salientes na boca, e uma pequena cauda saliente. As lágrimas dela, que continuavam fluindo aos borbotões, condensavam-se na forma de filetes de sangue negro e fumegante.

Destas chagas abertas brotaram sombras infernais, que envolveram o seu corpo como se estivessem vivas, e seus grandes olhos injetados de sangue vasculhavam o ambiente agora com sobre-humana acuidade. Os poderes demoníacos mais uma vez tomavam posse do pequeno e delicado corpo de Fabrícia Migotto, transformando-o e deformando-o para que ali estivesse a alma de Aylambra, a Lacerante, uma Sheilim de 1.230 anos de idade.

Aylambra respirou fundo, sentindo-se embriagada pela sensação de caminhar mais uma vez no plano físico de Adamah. Enquanto durasse sua missão, sua alma estaria livre de seu cárcere gélido nas profundezas de Caïna, no Nono Círculo do Sheol.

O cachorro-demônio já estava ocupado em saciar-se avidamente da carne fresca do cadáver do traficante. Aylambra puxou um dos braços e arrancou um grande naco sangrento da mão esquerda do rapaz.

Os boatos acabaram se concretizando. Naquela noite a quadrilha rival, comandada por Dé Birinaite, invadiu o morro para liqüidar com a concorrência. Suas armas não eram melhores que as do grupo de Zelito, e nem tampouco estavam em maior número.

Mas o tio de Dé Birinaite tinha contatos importantes. Contatos sobrenaturais, com as potestades malignas além da compreensão humana.

Um pacto insano foi realizado, e os talentos de Aylambra foram requisitados mais uma vez. Atacando nas sombras, movendo-se pelas frestas invisíveis daquela guerra insana, a Sheilim mais uma vez pôde saborear o gosto doce da vitória.

Mais tarde, horas depois, o sol finalmente raiou, tingindo o céu com um vermelho cor-de-sangue. A praia já começava a receber alguns de seus freqüentadores. Um assunto dominava as conversas de beira de praia: o tiroteio que correu forte por toda a madrugada. As primeiras notícias da carnificina já chegavam ao calçadão. Senhores madrugadores faziam seu cooper matinal, enquanto conversavam sobre frivolidades. Surfistas já corriam pelas areias carregando suas pranchas, e no asfalto, aqueles que iniciavam mais dia de trabalho, esperavam sonolentos nos pontos de ônibus.

Uma garota frágil e de aparência tímida circulava desapercebida pelo calçadão, impassível, segurando no colo seu cãozinho cor de canela. O animalzinho abanava o rabo, e os latidos esganiçados renitentes mostravam sua satisfação. Fabrícia Migotto parou por um instante, enquanto observava a passagem de dois rabecões na pista contrária. A guerra do tráfico fizera muitas vítimas na noite passada.

A mulher sorriu, afagando a cabeça de seu poodle.

A VÍTIMA foi escrito por Simoes Lopes

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