segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 33: Escravizando


Fui eu mesmo quem batizou esta região de Selva Sépia, devido à tonalidade característica de suas frondosas árvores de aspecto alienígena. Nakamura e Schuster indicaram-se pela primeira vez sua localização num subsetor inexplorado da chamada Área 15 dos reinos astrais. Há exatos dois anos iniciei sua exploração e catalogação, primeiro com a ajuda de Schuster, e depois sozinho. Meu colega austríaco resolveu dedicar-se a batalhas místicas por egrégoras perdidas na América Latina, enquanto eu persisti em minha incessante exploração das maravilhas da Selva Sépia.

As diversas regiões que compõem os planos sutis não comunicam-se de forma geográfica, tampouco encaixam-se em nossa pobre geometria bidimensional de mapas e cartografias. Entretanto, combinando um pouco de matemática avançada e os princípios alquímicos do Mestre Albashir, consigo deslocar-me com razoável desenvoltura por seus recantos, e elaborei um engenhoso modelo matemático para mapeá-la. Uma fauna exuberante de criaturas exóticas povoa os recantos misteriosos da Selva, e de tanto coletar dados, decidi seguir uma sugestão de Nakamura e adaptar o Systema Naturae da Carl von Linné para classificar os animais destas paragens supradimensionais. Linné, ou Linnaeus, desenvolveu um sistema binomial que até hoje é usado para classificar animais e plantas, erigindo uma hierarquia crescente de várias categorias taxionômicas.

Nakamura, o velho Tecnólogo japonês, brincava comigo dizendo que meu interesse naquilo era apenas poder utilizar meus vastos conhecimentos em latim e grego, e que eu não tinha nenhuma vocação para a Parabiologia, um neologismo que ele mesmo cunhou para descrever o estudo das criaturas dos outros Planos .

A Selva Sépia é habitada por uma criatura de pêlo basto e de tom vermelho-mogno, que assemelha-se a um misto de babuíno e orangotango, grande como um urso cinzento, cujos dentes caninos são pontiagudos e desproporcionalmente hipertrofiados. Batizei esta "espécie" de Macropapio rufissimus, isto é, “babuíno grande, muito vermelho”. Uma espécie de mamífero voador parece ser um dos animais mais numerosos nestas paragens. Sua semelhança a uma lebre com asas de libélula, me fez dar-lhe o nome de Libelullagus minutus, ou seja, “Libélula-lebre pequena”. Suas asas não eram finas membranas transparentes com nervuras, como as dos insetos, mas grandes superfícies de pele grossa, mas como as de um morcego. Outra forma de enorme inseto que lembra um cruzamento bizarro de escaravelho e rinoceronte ganhou o nome de Rhinocerotellus nanus, “rinocerontezinho anão”, enquanto que no extremo oposto de tamanho, os gigantescos animais com pescoços eretos de mais de 30m de altura, bicos grandes como os de tucanos, múltiplas patas em forma de colunas, e uma cor variegada que mistura tons berrantes de azul, vermelho e amarelo, mereceu o nome engenhosamente rebuscado de Uranocephala multicolor, “cabeça-no-céu, multicolorida”.

Minha maior descoberta foi quando achei uma nova espécie que demonstrava um nível muito rudimentar de inteligência. Assemelhando-se a sapos bípedes, com uma cor que variava entre o cinzento e o azul, deviam viver num estágio evolutivo próximo da Idade da Pedra, e carregavam grandes armas de pedra. Chamei-os de Phrynanthropus bellicus, “homem-sapo guerreiro”, e comecei a estudar sua sociedade rudimentar. Eram muito violentos e sua força física era tamanha. Caçavam a bizarra fauna do lugar com suas temíveis armas de pedra. Com golpes poderosos, estilhaçavam até mesmo o crânio dos titânicos Uranocephala, e os carnívoros Macropapio fugiam à menor aproximação daquelas hordas de caçadores semibatráquios.

Comecei a observar tanta força concentrada em formas tão simples de vida, que me ocorreu a possibilidade de controlá-los e usá-los como animais de estimação. Seria muito útil em nossas lutas contar com tamanha força. Jagamantra já havia provado a possibilidade de conjurar criaturas dos outros planos, e mantê-las numa espécie de domesticação, e eu dediquei-me por meses a fio a conseguir contato com aquelas mentes bestiais.

Minha primeira oportunidade veio quando localizei um indivíduo solitário e debilitado pelo cansaço, pernoitando numa grande planície coberta de rochas cristalinas vermelhas. Agucei meus sentidos e percepção, e penetrei na superfície daquela mente tacanha. Isolei sinapses, captei seus padrões oníricos, e procurei por uma brecha em sua proteção anímica. Perdi a noção de quanto tempo tentei uma conexão, mas acabei me dando por vencido. Uma manada de colossais uranocéfalos aproximou-se, o que infelizmente acabou por acordar o homem-sapo, mergulhando-o numa espécie de frenesi guerreiro. Brandiu sua clava e partiu aos saltos na direção de suas presas de couro multicolorido.

Tentei uma segunda, e uma terceira vez. Tudo em vão.

Ontem, finalmente consegui contato, e induzi um estado muito tênue de controle telepático, através de uma hipnose semiprofunda. O batráquio paleolítico executou uma série de movimentos toscos guiados sob meu comando. Senti-me como um titereiro iniciante, mas senti-me feliz em prever meu sucesso como algo inevitável. Amanhã farei nova viagem astral à Selva Sépia e conjurarei minha primeira tropa de lacaios extraplanares.

* * *

As anotações em seu diário foram os últimos vestígios deixados por Estéban Suarez de Maldonado. Nakamura e Schuster releram o caderno muitas e muitas vezes, mas sem achar nenhuma pista que os levassem ao paradeiro do jovem Estéban, Nakamura está planejando liderar uma expedição à Selva Sépia, a fim de procurar por seu aluno, e já convocou a ajuda de mais quatro Tecnólogos. Pode haver muito mais perigos naquela região do que suspeitava o jovem espanhol de cabelos crespos.

* * *

Nunca é noite na Selva Sépia, e um brilho mortiço banha as frondosas copas das árvores de folhagens castanhas. Um cortejo silencioso de homens-sapos prossegue vagarosamente pela trilha na floresta. As enormes bestas batizadas de Uranocephala pastam calmamente, abocanhando grandes cogumelos dourados que crescem na areia escura de um rio de fogo. Nenhum deles parece amedrontado com a presença daquela terrível espécie de caçadores primitivos. À frente do cortejo cadenciado, caminha um humano de cabelos negros, vestido em trapos. É Estéban Suárez, não resta a menor dúvida, e ele parece liderar a estranha procissão. Os caçadores primitivos não parecem desafiar seu guia, e o seguem com uma devoção canina.

Um dos animais com longos bicudos e pescoços de compridos como postes solta um tinido musical, no que parece ser respondido por outro de sua espécie. O som é incompreensível, mas se algum de nós compreende sua língua, ouviria o seguinte diálogo:

— CRIATURINHA-DE-OUTRO-MUNDO CONSEGUIU CONTROLAR MATADORES-COM-PEDRA.

— MATADORES-COM-PEDRA NÃO SÃO MAIS AMEAÇA PARA NOSSO POVO. ENTOAREI O CANTO DA FELICIDADE LONGA.

— COMO ISTO ACONTECEU?

— MINHA MÃE CONSEGUIU CONTROLAR CRIATURINHA-DE-OUTRO-MUNDO. JAMAIS NOSSO CONTROLE FUNCIONOU NOS MATADORES. MAS O SER EXTRA-FLORESTA CONSEGUIU ABRIR AS DEFESAS MENTAIS DELES.

— ELE AINDA OS CONTROLA?

— SIM. MAS AGORA MINHA MÃE CONTROLA CRIATURINHA-DE-OUTRO-MUNDO. SUAS DEFESAS SÃO BEM MAIS BAIXAS. NÃO ENTENDO PORQUE ELE NÃO QUIS FAZER CONTATO CONOSCO ANTES.

— DEVE VIR DE ALGUM MUNDO DEVERAS PRIMITIVO. NÃO CONSEGUIU DETECTAR NOSSA INTELIGÊNCIA. MINHA MÃE JÁ VIU ALGUNS DE SUA ESPÉCIE. ELA, JUNTO COM MINHA TIA, ESTUDARAM MUITO TAIS CRIATURAS, E COM ELAS CONSEGUIMOS AGORA A PAZ. OS MATADORES-COM-PEDRA NÃO VÃO MAIS IMPORTUNAR-NOS.

— VOU COMPOR UMA CANÇÃO EM HOMENAGEM A TUA MÃE.

Enquanto isso, alheio à conversa das criaturas, Esteban Suárez de Maldonado seguia em seu caminho silencioso. Sem perceber, o titereiro se fez títere.

ESCRAVIZANDO foi escrito por Simoes Lopes

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