segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Rebelião 34: Lágrimas de Constantina


Tudo aconteceu quando eu ainda morava na França, onde fui um conhecido “rato” de sebos parisienses. Enquanto chafurdava na poeira de uma passagem estreita, dei de cara com o símbolo vermelho gravado na capa escura de um livrinho antigo. Folheei rapidamente, percebendo algumas linhas manuscritas em latim, e resolvi comprar. O dono do sebo se surpreendeu pelo meu interesse e me vendeu por um preço baratíssimo. Levei-o para casa, largando-o numa pilha de livros no criado-mudo. Dias depois resolvi dar uma olhada no livro, e tive a desagradável surpresa de descobrir que ele estava totalmente em branco. Fiquei perplexo: tinha certeza absoluta de ter visto os manuscritos. Além disso, o símbolo na capa estava quase apagado, e as folhas pareciam ter se deteriorado rapidamente. Voltei ao sebo para devolver o livro (talvez tivesse havido uma troca na hora da compra) mas o sebo não estava mais lá. As portas estavam fechadas e lacradas, e não havia nenhum sinal nem do livreiro nem dos livros.

Voltei para casa desanimado, atirei o livreto no sofá e fui tomar banho. Ao sair do banho, reparei que a figura na capa estava de novo com um tom vermelho-vivo. Abri-o devagar, e lá estavam os escritos! (nota: devo usar exclamação nesta frase?) Levei-o à minha escrivaninha e comecei a traduzir. Traduzo textos em latim, clássico ou vulgar, grego antigo e gótico. E agora estou aprendendo hebraico (aqueles que precisarem de traduções sabem onde me encontrar).

O manuscrito tinha como título Lachrymae Constantinae, isto é, “as lágrimas de Constantina”. Sua autora era uma misteriosa freira italiana do século XIII, de nome Constantina (obviamente). Um rápido parênteses: há poucos meses, chegou a minhas mãos o resultado de uma pesquisa minuciosa feita pela minha querida e curvilínea tutora, a Polaca Voadora, na qual ficou elucidado que a dita freira foi acusada de bruxaria, relações demoníacas, o de sempre. Voltando ao livro: grudei nele e passei a noite inteira lendo e fazendo anotações.

No dia seguinte, acordei de “ressaca literária”, e o livro estava novamente em branco. Resolvi ser paciente (todos sabem como eu cultivo uma forma quase mórbida de paciência) e esperar, esperar, esperar (repetição enfática). Numa espera que durou nove dias, o texto “reapareceu”, mas aí já tinha pela sua frente um acólito devidamente preparado e pronto para a labuta: comecei a traduzir, página por página. Infelizmente quando o sol nasceu as linhas sumiram de novo, e tive de recomeçar a minha espera. Resumindo: os escritos apenas se tornam visíveis “quando querem” (alguém que bole uma explicação melhor), numa periodicidade que não consegui prever. Só compreendi que os aparecimentos se dão sempre durante a noite. As folhas que transcrevi estão em anexo.

A dita freira conta que foi seduzida por um homem chamado Galfaredde (numa das citações, por cima há uma anotação em caligrafia diferente como o nome Galphared). Ele era um Aishim, um homem a quem os anjos delegam poderes celestiais. Os manuscritos trazem uma detalhada descrição deles.

Segundo ela, “seus olhos brilhavam como fogo, seus cabelos eram brancos e brilhantes”. Os Aishim atendem às ordens do anjo Sandalfon (o termo que ela usa é serafim, designação católica dos Haioth Haqodesh). Não entendi direito todos os poderes que ela descreve, mas incluem invisibilidade, intangibilidade, força e agilidade sobre-humanas.

Constantina explica que Sandalfon tem muitos seguidores espalhados pelo mundo, e vivem como monges ou frades, divididos em quatro funções: Semeadores, Pescadores, Pastores e Ceifadores. Eles cuidam dos Aishim ao longo de sua vida, que parece ser geralmente bastante longa. A vida deles é dividida em quatro “Idades”.

1) Idade do Trigo – as crianças pequenas (de ambos os sexos) são procuradas pelos Semeadores, que transmitem a estas uma partícula do poder de Sandalfon. A vida da criança prossegue normalmente.

2) Idade do Peixe – Os Pescadores recrutam os que começam a manifestar os poderes.

3) Idade do Cordeiro – os Aishim são ensinados pelos Pastores a usar seus poderes de forma correta. Recebem um nome inspirado pelo próprio Sandalfon (Os nomes aparentemente são em alguma língua angelical, não consegui decifrar seus significados).

4) Idade do Joio - Caso uma das três etapas não se conclua, ou o tal humano se corrompa no processo, surgem os Ceifadores, que retiram o poder do Aishim. O humano permanece vivo, mas a extinção do poder causa um enlouquecimento progressivo.

Acho que o amor entre a freira e o Aishim foi a origem das acusações de bruxaria, e segundo ela própria conta, os Ceifadores foram atrás de Galphared por considerá-lo corrompido pelo pecado. Acho que para os Ceifadores foi a moçoila que seduziu o rapaz. Na continuação há várias páginas de poemas de amor da freirinha para seu amado desaparecido, alguns dos quais bem “picantes” por sinal (estão em anexo também, divirtam-se).

Estou esperando que as letras reapareçam para que eu traduza o restante e entenda o final da história. O Acólito Mosquito me confidenciou que enfrentou um destes seres na década de 60. Aconselho sermos cautelosos no contato com estas criaturas. Podem ser uma ameaça.

Uma Tripla Saudação ao Glorioso Velhinho! Que seu faraônico nariz tenha sempre dedos para coçá-lo!

Alegria/Conhecimento/Amizade.

Ass: ACÓLITO GARGÂNTUA

LÁGRIMAS DE CONSTANTINA foi escrito por Simoes Lopes

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