domingo, 9 de dezembro de 2007

Rebelião 8: Evidências


14 de julho, 19:00 - O detetive Johnson trabalha incessantemente em seu escritório. Papéis, fotos e anotações por todo lado. Um copo de café esfria na mesinha.

15 de julho, 2:00 - O detetive Johnson dá o último toque no teclado do computador com ar de triunfo. Chama seu colega Likowsky.

- O que foi, Johnson? Você passou o dia inteiro aí!

- Likowsky, olha esta foto...

- Sim, uma foto preto e branco antiga, deve anos 40 ou 50. Uma garota japonesa. E daí?

- Olha esta certidão de batismo... consegui com meus contatos no Japão.

-Bem, deve ser muito interessante, mas, infelizmente, eu não leio japonês...

- Como eu ia dizendo, é a certidão da garota da foto. Mayumi Nagamoto.

- Sim...mas onde você quer chegar?

- Olha esta outra foto...

- Bem, uma foto atual, e daí...

- Como, e daí? Não tá vendo a garota?

- Sim, uma garota parecida com ela. Ela não me é estranha...

- Parecida? Sabe o nome dela? Mayumi Nagamoto!

- E daí? Pode ser parente, mãe,...

- Caramba, Likowsky! Não tá vendo a foto? Ela é idêntica! Não parentes, são a mesma pessoa!

- Mas, cara, tem uns quarenta anos de diferença! A moça da foto antiga já deve ser velha hoje em dia!

- E esse o problema! De alguma forma, ela continua viva e jovem... Não tá lembrado o caso do Hersch?

- Puxa, é mesmo, o caso do Hersch! Agora eu reconheço a garota, foi quem matou o Hersch.

- O Hersch e mais cinco policais. Fraturas múltiplas, esmagamento de crânios, mandíbulas partidas ao meio, e cortes profundos e milimetricamente perfeitos com arma branca.

- É, foi um caso estranho...

-Estranho? Você viu como estava o rosto do Hersch no necrotério? Parecia que sido atropelado por uma jamanta?

- O que você está sugerindo, que uma garota imortal com a força de um cavalo está rondando por aí matando policiais?

- E o que me diz disso? (Ele entrega uma espada dentro de uma saco plástico etiquetado)

- Bem, uma espada de madeira..., belo exemplar...

_ Belo exemplar? Você viu o que o perito disse? Madeira prensada, feita com uma técnica que nem os melhores samurais seriam capazes. Você viu estrago que ela fez com uma simples espada de madeira contra cinco policiais armados?

_ Bem, a garota é boa de luta...

- E os tiros? O Oliver jurou que acertou pelo menos três tiros nela. A garota fugiu aparentemente intacta. Nenhum sinal de corpo nas redondezas. Além disso a trilha de sangue que ela deixou estancou em poucos metros.

- Cara, deixa isso aí e vai dormir...

- Likowsky, você não entende o que estamos perto de descobrir. Eu estou há meses nesta pesquisa. Estou com um banco de dados mais espantoso que o do Charles Fort.

- Tá, tá bom...

15 de julho, 4:31 - O escritório arde em chamas. Fotos viram cinzas, fios derretem e monitores explodem. Quando a luz do sol entrar pela janela, muito pouca coisa restará no recinto.

30 de outubro, 12:00 - Os peritos ainda não sabem explicar o que causou o incêndio...

EVIDÊNCIAS foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 7: Conversa entre Cavaleiros


O assassino estava posicionado e tudo estava pronto. O cobertor estava estendido na laje, protegendo seu corpo deitado do calor que emanava do prédio. O rifle pronto e em posição. Binóculos à mão. E, finalmente, uma garrafa térmica com um suco de laranja bem gelado ao seu lado. O cliente era um artista plástico, que costumava fazer uma corrida no parque abaixo todas as manhãs. Um lugar perfeito para a emboscada, em especial o ponto de contato escolhido, que dificulta a percepção da direção de onde viria o disparo. Isto facilita a fuga e complica a investigação.

O cliente chegou cerca de 10 minutos após o assassino se posicionar. Sozinho, aquecia o corpo para a corrida com pequenos pulinhos e alguns alongamentos. O assassino se permitiu um breve momento de satisfação. O cliente não tinha seguranças que o acompanhavam e não mudava sua rotina. Chegava a ser tão fácil que quase não valia os honorários.

Mas então, ele retornou à sua concentração. O cliente começara sua corrida. Em cerca de 70 a 80 segundos, ele estaria no ponto de contato. O parque estava bastante vazio neste ponto, o corpo do cliente poderia levar até 10 minutos para ser encontrado. Era um tiro fácil.

O pequeno sibilo do projétil sendo cuspido pelo rifle, foi imediatamente acompanhado da visão de sangue espichando por trás da cabeça do cliente e de sua queda para trás. Só o violento movimento da cabeça ao receber o tiro, já poderia ter partido seu pescoço. O projétil vazou seu olho direito e saiu um pouco acima da nuca. Tudo continuou normal no parque. Ninguém percebeu o que aconteceu.

O assassino arrumou tudo rapidamente e saiu do local. Parou em um café e relaxou. Foi para casa e avisou via e-mail ao contratante que o serviço estava feito. Tomou um bom banho e descansou.
Ao acordar, a primeira coisa que pensou foi em ver uma televisão. Hoje, ele poderia assistir ao seriado que gostava tanto. Antes, uma verificação da caixa de mensagens e a confirmação do valor depositado em sua conta, pelo serviço da manhã. Mas as coisas não aconteceram como ele esperava.

O cliente - vivo e ileso - estava em sua sala de estar.
Mantinha um sorriso de Mona Lisa em seu rosto. Apesar da aparente demonstração de tranquilidade, o assassino percebeu com seu treinamento que ele estava perfeitamente posicionado para o combate. O choque de perceber que ele estava vivo e bem quase fez com que passasse despercebido a katana que este trazia na mão.

- Como me achou aqui? (o assassino fez um certo esforço para manter a voz impassível)

- Tenho meus meios e meus contatos... (sua voz era fria e impessoal, nem lembrava o estereótipo de um artista plástico sensível)

- Você deveria estar morto... (ele não acreditava que estava falando daquela maneira. Mas, ainda assim conseguiu manter a voz fria a impessoal).

- É verdade... um excelente tiro... (o sorriso do cliente o deixou um pouco desconcertado, parecia algo demoníaco e divino ao mesmo tempo).

- Esta é a minha arte...

- Arte... (pensativo) Sim, imagino que seja e gosto disso... (mas, de repente, seu olhar ficou duro como pedra) Quem contratou você?

- Não posso dizer... seria anti-ético... feriria minha honra profissional. (o assassino procura com suas mãos uma arma que ele mantinha à mão atrás do sofá de que ele se encontrava próximo)

- Honra... (seus olhos se estreitam, divertidos) Gosto cada vez mais de você...

O movimento seguinte foi rápido. O assassino sabia que o cliente nunca poderia atingi-lo antes que ele disparasse sua arma. Mas não foi isso que aconteceu.

Tudo o que o assassino percebeu foi que ele ouviu o estampido do disparo, mas o tiro acertou um quadro que ele gostava muito à sua esquerda e mais acima. Ele se perguntou como poderia ter errado tanto o alvo á sua frente quando começou a sentir um estranho calor em seu punho. Parecia que algo molhava o seu braço. Foi então que ele percebeu que o cliente se encontrava bem na sua frente numa pose de guerreiro, com as pernas arqueadas e suas mãos segurando a katana que apontava para o teto, encostada à altura do ombro de seu adversário.

"Rápido demais, rápido demais". Foi o que ele pensou enquanto tentava levantar a arma e apontar para o cliente. Então ele percebeu. Não havia arma. Não havia mão. O que molhava seu braço era seu próprio sangue que esguichava de seu punho. Ossos, músculos, nervos e artérias expostas com um único movimento. A mão ainda segurava a arma no chão.

A percepção do que aconteceu veio acompanhada da dor que viria acompanhada de um grito, se este não fosse abruptamente interrompido pela espada oriental, que atravessou com uma força impressionante a sua garganta e cravou na parede atrás dele.

CONVERSA ENTRE CAVALEIROS foi escrito por Danilo Faria

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Rebelião 6: Cobiça


Ela avança correndo, seus pés mal tocando o terraço, seu corpo delgado castigado pela forte chuva. Ela tem uma perfeita noção do abismo que se aproxima, não graças a sua visão, mas por sentidos místicos inerentes a sua raça. Ela salta sobre o vazio, se deslocando a uma velocidade alucinante, sentindo seu alvo se aproximar. Quando chegar ao seu destino, ela precisará lutar como jamais fez... mas não são assim todos os seus dias?


Os sentinelas estão postados frente à entrada do templo, concentrados e imóveis. Repentinamente, sentem uma suave modificação na atmosfera, uma espécie de interferência - como se alguém em algum lugar tivesse ligado uma televisão. No segundo seguinte, a janela no final do corredor se rompe com estrépito e uma mulher entra voando por ela. É tarde demais, porém - eles já estão preparados e prontos para combater.


Em meio ao seu vôo ela atinge um dos guardiões com tanta força que o arremessa cerca de dois metros em direção a parede, com um ruído seco de cerâmica quebrando-se. Parada em meio aos seus antagonistas, ela grita suas ordens aos shedim que rodopiam fora do prédio. Vidraças voltam a se quebrar, mas agora em todas as partes, arremessando vidro para dentro do prédio, enquanto água e ventos cortantes vem ao encontro de sua se-nhora. Feridos pelo vidro, ofuscados pela chuva e castigados pelos ventos frios, eles avançam contra a invasora, como é seu dever. Cinco são eles e não se importam com suas vidas, contanto que os Mestres da Ordem consi-gam clamar pelo Prior da Voz.


Os cânticos entoados dentro do templo não são perturbados pelo ruído de vidro se quebrando ou pelos brados de luta da mulher (guardiões da ordem lutam em silêncio, como lhes ensinam os sacerdotes). O cheiro adocicado e suave do incenso causa um leve estado de torpor no coro, realçado pelo som suave e calmante de seus hinos. Dentro do templo a arquitetura é extemporânea - quem visualiza as colunas altas, sustentando um teto octogonal, ornado de anjos barrocos não diz que este é o topo de um freqüentado edifício comercial; quem olha para os raros quadros, exibindo imagens canônicas, não acredita que sejam parte importante de uma ritualís-tica; aqueles que convivem com os sacerdotes do coro jamais imaginariam homens de negócios, ricos e podero-sos, vestidos como monges da idade média; e por fim, aqueles que ouvissem as possantes vozes dos Mestres jamais acreditariam que eles são humanos. Dispostos em cinco eles estão, sobre uma grande cruz formada por azulejos com incrustações em ouro - quatro deles nos quatro braços da cruz, e um em seu centro. Este está trajado com mais fausto que seus companheiros e parece mais imponente. O sacerdote do braço norte ergue uma lança, e grita altissonante:


- Em nome do Pai clamo Seu Mensageiro, e ofereço-Lhe a vida de meu coração! - A ponta da lança, de prata bela e reluzente, começa a brilhar fantasmagoricamente.
O sacerdote do braço sul ergue um prego, grande, polido e brilhante, e brada:


- Em nome do Filho imploro A Presença, e ofereço-Lhe o caminho que até aqui já trilhei! - o prego começa a brilhar, rubra e assustadoramente como uma brasa, tingindo de tons sinistros o rosto do sacerdote.
Os sacerdotes dos braços leste e oeste erguem também pregos argênteos, e clamam em uníssono:


- E Em nome do Espírito Santo rogamos Teus conselhos, oferendo-Lhe as realizações de nossos bra-ços fortes!


- simultaneamente, os pregos brilham, e é a vez do quinto sacerdote, ao centro da cruz, invocar:


- Ofereço-me como a Copa da União, pronta para receber o Sangue do Divino Sacrifício. Toma meu corpo para realizar teus prodígios, Tu, que te sentas à direita da Voz de Deus! - No mesmo instante raios par-tem da lança e dos pregos, o atingindo e fazendo brilhar. De entre duas colunas na cabeceira da cruz emerge um ancião, com um brilho de adoração extrema nos olhos. Porém, antes que ele possa dizer qualquer coisa, as fortes portas de carvalho do templo se rompem, e um corpo é jogado com força, atravessando o templo, descrevendo um arco acima dos sacerdotes postados sobre a cruz, acertando o pobre velho em cheio.


- Eu interrogo aquele que temo, e que tuas palavras tragam-me a divina verdade, Ave, SANDALFON! - grita a mulher, quase sem fôlego. Finas gotículas d'água adentram a nave trazidas por uma brisa gélida. O coro emu-dece. O velho cai em pranto mudo, o sangue de sua própria ferida e do cadáver sobre seu corpo tingindo suas vestes. Os sacerdotes sobre a cruz mudam sua expressão de esforço para dor, e o oráculo de Sandalfon fala:


- BENDITO TODO AQUELE QUE BEBER DE MEUS LÁBIOS AS PALAVRAS. OUSASTE DEMAIS, FILHA DE MEU IRMÃO.


- Estou ciente das conseqüências de meus atos, e não temo o ódio da Ordem, meu tio.


- CONSPURCASTE O TEMPLO DE MINHA ADORAÇÃO, E FERISTE HIEROFANTES DE MINHA ORDEM. ACHAS QUE JAMAIS TE PUNIREI?


- Nem mesmo eu sou tão ingênua, oh Mensageiro da Voz do Criador... mas o que quer que façais co-migo, deverá esperar o fim das predições.
Os sacerdotes cobrem seus rostos com vergonha e temor. Uma mestiça desafiou um Divino Prior de Mitatron! Mas, por fim, ela está certa - qualquer mal que lhe sobrevenha só terá lugar depois do fim do ritual. O oráculo fica em silêncio por intermináveis segundos, e fala em seguida:


- A VERDADE TE LIBERTARÁ, FILHA DE ALIEL. FAÇA-ME TUA PERGUNTA.
Por um átimo de segundo ela hesita, assustada com o quanto arriscou, com tudo que pôs em jogo para chegar a este momento... mas só por um segundo.


- Vós que enxergais o mundo atemporal, de que lado estará vosso irmão, meu pai, no dia do Juízo?
O rosto do oráculo se distorce numa assustadora expressão de fúria... o brilho ao seu redor torna-se mais intenso, e ninguém na sala, a não ser a Visionária, pode vislumbrar seu rosto flamejante. A cabeça do sacerdote pende abaixada por alguns segundos, mas levanta-se lentamente, movendo-se com pesaroso vagar, de um lado para o outro.


- Oh, pai... você não sabe... - a fúria estampada no rosto não tem mais limites mensuráveis, a carne começa a queimar sobre ossos incandescentes - toda esta guerra maldita... tanto sangue... tanta dor... E VOCÊ NÂO SABE?!!


- NÃO! - a reverberação do brado explode o invólucro carnal do Mensageiro, e as ondas místicas de energia se espalham matando todos os mortais presentes. A derradeira expressão de horror em seus rostos revela a dor de sua partida repentina. Os órgãos internos da Visionária explodem, seu sangue imortal é espalhado pelo chão, seus tímpanos se rompem e sua carne é esmagada por partes do teto e das colunas que desabam sobre seu corpo...


Mas ela sobrevive. Alquebrada e consumida por chamas, ergue-se da ruína recompondo-se até a integri-dade. Cada parte de si volta ao seu lugar, montando o mosaico preternatural de seu corpo - menos é claro, uma parte...


Sanidade.


O castigo de Sandalfon foi deixar à sua sobrinha a dor que uma mente onisciente sente frente ao que não pode conhecer... o ultraje, a marca ígnea da ignorância... o medo do desconhecido... do futuro...


Sentada em silêncio, embalada pelos ventos frios, a Visionária contempla o vazio do futuro.


COBIÇA foi escrito por Renato Simões


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Rebelião 5: Inveja



Estávamos em 1946 quando vi minha irmã como um simples cristão pela última vez. Eu servia num destacamento do Corpo de Bombeiros, tinha 22 anos, e nosso pai era um homem de princípios rígidos. Às 22h em ponto ele trancava a porta de casa para que eu, mesmo sendo um adulto, chegasse em casa antes que ele fosse dormir.



Minha irmã de doze anos ficava acordada (escondida, obviamente) e destrancava a porta para que eu pudesse entrar em casa. Costumava chamá-la de "corujinha" quando estávamos a sós. Em 15 de novembro da-quele ano, minha irmãzinha não precisou mais importar-se com a porta - durante um incêndio, uma das vigas do prédio despencou, matando dois bombeiros em ação. Um deles era eu. Claro que me levantei cerca de dez horas depois, mas já havia sido resgatado pelos meus irmãos Veneráveis e estava, para todos os efeitos, morto para minha antiga família.



A vida continuou...



Em nome de nossa Obra, rodei por muitos países, conheci muitas pessoas - e coisas - e embora continue fisicamente o mesmo rapaz magro de pele morena e olhos muito grandes, pode-se dizer que sou outra pes-soa desde meu segundo nascimento. Há dezoito anos atrás voltei ao Brasil, e vivia numa metrópole movimenta-da, onde cumpria os desígnios da Mãe. Aconteceu-me algo tão folhetinesco que a princípio pareceu-me mentira. Reencontrei minha irmã, agora uma senhora, com dois belos netos - o menor, com minha pele e meus olhos. Não sei o que ela achou que eu fosse, mas o fato é que não fugiu e não se enganou. Fiquei fascinado com aquela reação - os homens de barro normalmente tentam negar a todo custo o impossível, mas ela não tentou raciona-lizar a coisa em momento algum.



"Eu o esperei naquela noite... você sabe... para abrir a porta". Essa simples declaração me jogou com tanta força contra o passado que perdi o fôlego por um momento. Tudo o que vivi desde aquele dia passou por mim numa enorme velocidade, e me senti então muito velho e cansado. Ela pareceu de algum modo perceber isso. "Casei-me com Mauro... lembra-se dele"? Eu poderia ter feito de tudo naquele momento - poderia esva-necer e fazê-la pensar que era um fantasma, poderia remover suas lembranças a meu respeito, ou mesmo con-vencê-la com uma simples Sugestão do absurdo de suas constatações de que eu era seu irmão mais velho, morto há trinta e nove anos. "Sim, me lembro. Eh, sempre achei que aquele moleque tinha uma queda por você". O moleque tinha então cinqüenta e três anos. Falamos amenidades, eu afaguei a cabeça do menino mais novo, e parti com um sorriso, sem dizer adeus ou me despedir. Lembro que não dormi naquela noite.



Hoje, o menino que se parecia comigo é um homem, e traz seu próprio filho no colo - que parentesco tenho com o filho de meu sobrinho-neto? Outros membros do clã estão reunidos numa bela igreja suburbana, ouvindo as monótonas arengas de um padre enfadado balbuciando o Eclesiastes. Minha irmã morreu há sete dias. No último banco da nave, estou sozinho e pronto a partir, quando alguém senta-se ao meu lado. É ela.



Seu sorriso de súbita compreensão novamente me deixa sem palavras. "Gostaria de me despedir. Nunca dissemos adeus um para o outro, e você... bem, você era meu favorito". Esta declaração tão nua e inesperada faz com que lágrimas me venham aos olhos, e numa atitude maternal para mim tão descabida, ela me beija a testa. "Não chore. Você sabe que estou bem. Eu te amo, adeus". Ela se levanta e passa por uma legião de espectros famintos que parecem não percebê-la. Fico sentado, o rosto ainda úmido por duas lágrimas (não sou dado a ex-plosões expansivas de sentimentalismo). Sim, eu sei que está tudo bem, e este é o problema. Uma mulher subur-bana sem nenhum conhecimento ou importância vai para Deus agora, com sua alma imortal. A paz que a vi desfrutando está além dos limites de meu poder ou de meu conhecimento, e enquanto ela ruma para a luz e para os pais de seus pais, eu devo continuar aqui, cercado pelos mortos, manipulando cinzas amargas como se fossem algo de grande importância. Está tudo bem e não haverá jamais paz para mim.

A vertente mortal de meu sangue retira-se da igreja em pequenos grupos, conversando familiarmente em voz baixa, abraçados, intimamente conscientes de que tudo está bem.
Em nenhum momento olharam em minha direção.
As luzes se apagam, e estou só de novo.



INVEJA foi escrito por Renato Simões

Rebelião 4: Preguiça




Eles olharam sonolentos para o teto, que saia e entrava em foco conforme abriam e fechavam os olhos. Qualquer esforço para mover-se era infinitamente doloroso, como se cada um de seus membros pesasse tonela-das infindáveis. Às vezes, o roçar das vestes de couro de um deles era ouvido, mas tão suave que mais parecia causado pela respiração que por uma tentativa deliberada de movimentação. Num ambiente vazio de sons, passos ecoam altos como batidas de marreta - o ranger da porta penetra pelos sentidos semi-intorpecidos dos jovens espalhados pelo chão do quarto. Um deles emite um grunhido de desagrado, como uma criança incomodada no melhor de seu sono.

"Seis jovens idiotas". Anderson caminha displicente pelo quarto, e pisa acidentalmente na mão esquerda de uma menina magra e abatida, parecendo ter uns dezenove anos - ao contrário dos outros protagonistas da cena, estava morta. Ele olha com certo desinteresse o corpo ferido e mutilado, cheio de inscrições profanas ta-lhadas na carne rosada. Repentinamente, uma coisa chama sua atenção: encima de um exemplar velho de O Livro da Lei e do Tarô de Crowley está aberto um volume de páginas amarelecidas e puídas, cujas inscrições mostram uma rebuscada caligrafia em latim. Com cuidado o Acólito vira a capa, onde se lê Grimorium Stelaræ. Ele dá um sorriso maroto, e arrancando a capa do Livro da Lei para marcar a página em que o Stelaræ estava aberto. Uma sutil mudança na atmosfera do quarto chama sua atenção por um momento, e um hálito frio e pesti-lento, como que exalado de um túmulo recém-exumado, dirige-se a ele: "Descanse… hmm… fique conosco… não está cansado?"

Anderson olha em volta, franzindo o cenho como se avaliasse a proposta de seu interlocutor invisível.
"Essa bobagem não vai funcionar comigo, chefe. Mas você poderia ter a gentileza de me dizer seu no-me". Um silêncio cauteloso se faz, enquanto o Acólito se sente avaliado por olhos lânguidos, cansados de enxer-gar.
"Hmm... não é bom brincar... comigo...mestiço. Ofensas… hmm… pessoais me darão … direitos… sobre você…", é a resposta que o nefilim recebe. "Ah! Eu estaria fora daqui antes que você decidisse o que fazer comigo. Mas fique tranqüilo chefe - minha boa e velha mãe não criou idiotas". Um novo silêncio se segue, mas Anderson sabe que o velho demônio já entrou em seu jogo.
"Nah… glar… conheci seu… pai…"
"Tenho certeza de que passaram divertidíssimos momentos na sauna, Nahglar. Qual dos pequenos im-becis fez isso?"
"O… rapaz… mais velho. Ele… tem uma boa… pronúncia reconstituída…"
"Palmas para ele. Normalmente estes satanistas de meio-período preferem a pronúncia romana... você sabe, parodiando o latim eclesiástico."
"Você… não…não vai… tirá-los… de mim?", pergunta o demônio, com a cautela de uma criança que tenta esconder um doce. O nefilim olha em volta, avaliando a cena. Ele temia que isso acontecesse - sabia que se o Stelaræ não estivesse nas mãos de um simples colecionador de antigüidades, tinha grandes chances de estar sendo usado, e só idiotas conjurariam algo descrito num livro que era manuseado com cuidado até pelo mais experiente dos bruxos. Se Nahglar estava neste livro, isso quer dizer que ele não era nenhum meiri'im fracote.
"… Então?"
"Eu?" - e olha de esguelha para a menina morta. Certamente ela tinha uma família… amigos, talvez um namorado que sentisse sua falta (sinceramente, Anderson não estava nem aí para nada disso, desgraças acon-tecem o tempo todo. Mas ele precisava de uma desculpa para largar cinco garotos com um demônio). Além do mais, o mundo seria melhor sem alguns lunáticos por perto, e estes moleques só tiveram o que queriam - "Não vamos desperdiçar o enorme trabalho deles, estudando gramáticas latinas para estar algum tempo com você… ou com qualquer dos horrores desta enciclopédia" - ele acrescenta em tom casual. "Estou aqui pelo livro."

O Acólito caminha resolutamente até a porta, convencido de estar fazendo a coisa certa (Anderson a-prendeu a muito tempo que enganar a si mesmo é a melhor forma de manter sob controle este demônio maldito e suicida que os outros chamam de consciência).
A porta do quarto encosta-se novamente, e uns poucos gemidos (de dor? De desespero?) elevam-se sem muita convicção.
"Vamos… continuar?"

Repentinamente a porta é aberta de novo. Os olhos baços dos garotos se voltam, num esforço lento e doloroso, para Anderson. Ele os encara por um curto momento, e sorrindo, desliga o interruptor da luz, deixando o quarto numa penumbra confortável, quase aconchegante.
"Para não atrapalhar seu sono".
A porta se fecha, e seus passos novamente se distanciam, até se tornarem um eco silencioso reverberan-do no ar.
Cinco crianças ressonam juntas, embaladas no sono do demônio.
PREGUIÇA foi escrito por Renato Simões

Maytréia 5: Conseqüências Infantis


Engraçado como nossa memória brinca com a gente. Aqui estou eu, numa destas bancas de jornal que você entra e fica meio perdido, procurando entender onde ficam as revistas de que gosta lembrando de uma coisa que me aconteceu na infância. Na verdade, eu nunca esqueci o que aconteceu – principalmente pela forma com que me faz lembrar – mas hoje, especialmente depois do triste acontecimento de que tomei conhecimento, me vi lembrando de detalhes que normalmente teriam ido embora, mergulhando naquele profundo esquecimento de névoas espessas chamado “passado”.


Éramos crianças há 20 anos atrás. Esta afirmação parece óbvia, mas na verdade desejo dizer que éramos psicologicamente infantis. Tínhamos aquelas brincadeiras cruéis que somente crianças conseguem brincar com tanta persistência e satisfação. Éramos, na verdade, crianças terríveis. Jogávamos pedras em telhados e em pedaços de vidro que eram colocados sobre os muros para que ninguém os pulasse, batíamos em crianças mais novas, fazíamos guerra de pedras e ovos, torturávamos as meninas puxando o seu cabelo ou jogando chicletes nele... chicletes que também serviam para colocar em lugares onde os incautos sentavam em cima.


Mas éramos crianças. Não entendíamos o que estávamos fazendo. Achávamos divertido, fazendo as experiências que as crianças fazem ao descobrirem a manipulação das emoções alheias; geralmente com um toque de maldade. Se isso serve de desculpa – o que pessoalmente não acho – não tínhamos a menor noção dos danos que causávamos à vida de outras pessoas. Mesmo quando apanhávamos, parecia injusto. Afinal de contas, pensávamos naquilo apenas como uma diversão “inocente”.


Com exceção de Ronaldo e Mixirica.


Eles eram os mais velhos da turma e os que tinham a maioria das idéias terríveis que colocávamos em prática (ou pelo menos assim eu me lembro...) e pareciam saber o que provocavam. Tinham uma espécie de cruel expectativa em satisfazer algum instinto ruim que alimentavam. Mesmo como crianças, nós percebíamos que eles eram... diferentes. Se existiam líderes e mentores de nossas pequenas atividades marginais estes eram Ronaldo e Mixirica. E eles se orgulhavam disso.


Uma de nossas vítimas favoritas num determinado verão era o homem que conhecíamos como “O Velho”. Simples assim.


Não sabíamos e – pelo que entendo – nunca viemos a saber o seu verdadeiro nome. Era apenas “O Velho”. E como perseguimos O Velho naquelas férias: xingávamos, tacávamos coisas nele, ficávamos cantando musiquinhas ofensivas enquanto dançávamos a sua volta. Ele parecia nos ignorar, mas – com aquele instinto infantil – nós percebemos que ele ficava magoado... e isso só nos incentivava mais. Como eu já disse; éramos crianças terríveis...


Ronaldo e Mixirica eram os que mais atormentavam o pobre senhor. Estavam sempre a espreita do momento em que ele apareceria na rua para começar a tortura e davam gritos de verdadeiro êxtase enquanto pulávamos a sua volta com nossas brincadeiras cruéis.


Mas um dia eles passaram dos limites. Eu já comentei que nós atirávamos coisas no Velho, mas eram sempre coisas com pequena possibilidade de machucar. Quero dizer, machucar de verdade... sei que estou me justificando, mas tínhamos mesmo esta consciência. Atirávamos bolinhas de papel, giz ou pedacinhos de plástico mole – sem força e sem direção – mais como forma de atormentar mesmo. Mas neste dia Ronaldo e Mixirica resolveram atirar pedras. Para aliviar um pouco o lado de meus ex-colegas de infância, percebemos que eles não queriam acertar o Velho. Queriam assustar, mas apenas isso.


Mas algo estranho aconteceu.


Claramente, o Mixirica atirou uma pedra para que esta acertasse bem acima do velho, mas ela simplesmente mudou sua trajetória em pleno ar e acertou o rosto do pobre homem. É claro que minha imaginação infantil pode ter pensado isto; é claro também que esta pode ser uma desculpa que pensei – e penso – para a maldade de Mixirica, mas diante do que soube há poucos minutos não consigo deixar de pensar se isso não foi exatamente assim como estou lembrando agora...


Nós ficamos apavorados, é claro. O Velho deu um grito e cobriu seu rosto que começou a sangrar imediatamente. Nós saímos em disparada. Cada um foi para a sua casa esperando a hora de alguém contar tudo aos nossos pais e mais uma surra começar. Mas isso não aconteceu. Vi, pela janela do meu quarto (enquanto minha mãe comentava que se eu estava quieto em casa àquela hora, era por eu ter aprontado mais alguma e que eu me arrependeria, etc...) um homem de uns 30 anos chegar até a casa do Velho. Nunca vimos ele receber nenhuma visita, o que me provocou estranheza.


A noite chegou. E como não fomos delatados em mais uma de nossas maldades, reunimos coragem para ficarmos na rua.


A maioria de nós não queria mais perturbar o Velho, apenas Ronaldo e Mixirica continuavam em sua defesa com argumentos de pouca valia como o fato de Velho ter sido “burro por não desviar da pedra” ou “que velhos estranhos tinham mais é que se ferrar mesmo”. Contei sobre o misterioso visitante. Enquanto conversávamos, volta e meia olhávamos para a luz acesa na sala da casa dele, numa expectativa tensa e mal disfarçada. Um de nós propôs uma ida até a casa dele para pedir desculpas, mas foi prontamente rechaçado pelos nossos “líderes”. Assim a conversa seguiu até a hora em que levamos um tremendo susto.


O homem que havia visitado o velho estava ao nosso lado.


Estávamos tão tensos que nem percebemos a sua aproximação. Ele simplesmente nos encarava com um certo ar – não tenho outra palavra melhor – divertido. Pensamos na mesma hora que ele era um parente do Velho e começamos a balbuciar desculpas e coisas assim, Ronaldo imediatamente acusou Mixirica que respondeu com acusações idênticas. Mas tudo o que o homem nos disse foi:


Quero apenas contar uma coisa para vocês.”


Acredito que o sentimento de culpa misturado com a idéia de uma punição iminente simplesmente nos fez ficar quietos e ouvir o que ele tinha a dizer. E ele falou a última coisa que qualquer um de nós esperava:


“Vocês lêem quadrinhos? Conhecem o Super-Homem?”


Entre surpresos e acrabunhados, sacudimos a cabeça positivamente.


“Ele era um de meus heróis favoritos. Mas foi só depois de alguns anos lendo que me toquei de uma coisa: o Super-Homem nunca deixa de ser o Super-Homem. Nem quando ele se disfarça de Clark Kent. Vocês sabem o que pode acontecer se alguém como vocês soca o rosto do Super-Homem?”


Mixirica responde na mesma hora, meio empolgado:


“Quebra a mão, prá deixar de ser mané!”


“Exato! E se socar o Clark Kent?”


“Bem... acho que a mesma coisa...”


“Sei... percebem isso? O Clark Kent parece humano, mas não é humano. E ele tem que se fazer de idiota o tempo todo, evitar o tempo todo ter conflitos com os outros, pois isso pode revelar quem ele é realmente...”


“E daí?” Desafiou Mixirica. “Quem vai se meter com o Super-Homem? Se eu fosse ele mostrava prá todo mundo quem sou.. e arrebentava de porrada quem se metesse comigo! Para mim, esse papo de se disfarçar de gente comum é coisa de mané!”
A idéia nos empolgou, mas antes que nosso entusiasmo crescesse muito, o homem disse:


“É mesmo? E quem protegeria sua mãe quando você não estivesse por perto? E sua irmã? Você tem uma irmã não é? Mesmo o Super-Homem tem inimigos... e inimigos tão poderosos quanto ele... doidinhos para se vingar em quem puder.”
Silêncio total. Depois de alguns segundos, Ronaldo fala:


“Eu num gosto da minha irmã mesmo...”


“É mesmo? Você não gosta de ninguém?”


Outra vez, silêncio total. E desta vez o homem não nos deu tempo para pensar.


“Mas vamos mais longe. Imagine as pessoas sabendo que você é o Super-Homem. Elas teriam medo de você... você poderia matar todas elas com um espirro! E se você ficasse nervoso então... bastaria uma vez...”


Aquilo nos assustou. Em nossa imaginação infantil, vimos um ser completamente indestrutível resolvendo nos castigar...


“Por isso, o Clark Kent é tão importante. Ele lembra ao Super-Homem que existem pessoas comuns... frágeis... que podem ser destruídas com um sopro...”


Ele nos observou mais um pouco; e então arrematou:


“Eu li numa revista, certa vez, que ele ficou muito nervoso. Então fugiu para o Pólo Norte... na Fortaleza da Solidão... e extravasou sua raiva num grito para não ter que bater em ninguém...”


Já estávamos devidamente aterrorizados e hipnotizados pela narrativa. E o homem soube aproveitar bem a pausa dramática.


“Ele destruiu um iceberg com o grito.”


Na nossa imaginação, víamos blocos de gelo do tamanho de mundos (apesar de não saber exatamente o que era um iceberg, já tínhamos ouvido falar deles...) serem destruídos pelo simples grito de um deus encarnado. Contudo, o homem que nos conduzia com maestria até aquele momento, soube fechar a sua lição com chave de ouro. Ele nos encarou um-a-um (e, depois disso, nunca mais esqueci desta conversa...) e arrematou:


“E quer saber de uma coisa. Existem muitos Clark Kents por aí. Fingindo-se de fracos ou estúpidos. Todos capazes de destruir as pessoas comuns com extrema facilidade. Eles têm seus inimigos poderosos também. E sabem o que estes “Clark Kents” querem das pessoas comuns?”


Sacudimos as cabeças negativamente. Olhos arregalados.


“Que possam defender o mundo em paz. Que não sejam enfurecidos.”


O homem não disse mais nada. Simplesmente se virou e saiu. Ficamos olhando meio que aterrorizados para ele que se afastava e – de soslaio – para a casa do velho. Ele parecia estar na varanda e, na minha imaginação infantil, ele parecia sorrir diante da estranha lição que acabávamos de receber. É claro que estava longe demais para ele ouvir algo ou para que nós pudéssemos perceber seu sorriso. De qualquer forma, o homem conseguiu o que queria. Naquela noite, fomos todos para casa logo depois que ele partiu... em silêncio solene e assustado.


O Velho se mudou no dia seguinte. A maioria de nós continuou a fazer as traquinagens, mas a coisa foi ficando cada vez mais sem graça. Quando as aulas voltaram, já éramos diferentes. Nós simplesmente crescemos. Menos Ronaldo e Mixirica, estes continuaram os mesmos até minha família se mudar cerca de 1 ano depois.


Agora, 20 anos depois, seguro o jornal que comprei após ver a sua primeira página enquanto passava pela banca. É um destes jornais sensacionalistas, cujo principal teor de suas reportagens são a violência e o sexo. Eu normalmente não compro este tipo de jornal, mas não pude evitar fazê-lo, quando vi a notícia principal:


RONALDO CRUEL E MIXIRICA MORREM EM EMBOSCADA DA POLÍCIA


Meus “amigos” de infância parecem não ter aprendido a lição. Ver a foto deles cobertos de sangue e caídos no meio de uma estrada qualquer começou a me avivar a memória. Mas o que disparou tudo em seus mínimos detalhes foi que assim que peguei o jornal um velho ao meu lado disse:


“Esses não aprendem não é mesmo?”


Olhei e reparei um velho ao meu lado, se esticando para ler a manchete. Ele me pisca um olho e completa:


“Quando não se sabe com o que se está lidando, dá nisso!”


Com esta frase enigmática, vai embora. Esta frase me fez voltar o fluxo total da minha memória, daquilo que ocorreu 20 anos atrás.


Pensado bem, ele realmente lembra... não, não. É imaginação minha. A esta altura O Velho já deve estar bem morto. Mas admito que foi um encontro incomum, que me fez lembrar de outro encontro incomum. E que me deixou com um pensamento bastante irônico.


Seria o Super-Homem imortal? Se assim fosse, Clark Kent também seria...


CONSEQÜÊNCIAS INFANTIS foi escrito por Danilo Faria




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Maytréia 4: O fim do Universo para Charles Simões


E, finalmente, o universo acabaria.


Charles olhava para o nome escrito no pequeno pedaço de papel que tinha a sua frente. Não estava escrito em português. Para ser sincero, não estava escrito em qualquer língua que possamos conceber. Era um nome impronunciável; a simples presença no pedaço de papel sobre a mesa profanava terrivelmente o ambiente em que Charles se encontrava.

Mas ele não se importava, não fazia a menor diferença. Em breve, todas as coisas maculadas e imaculadas desapareceriam. O nome, aquele nome na sua frente, aquele simples nome impronunciável escrito numa língua que nem mesmo pode ser chamada de “morta” – pois nunca nasceu – tinha o poder de finalmente fazer tudo acontecer. Este nome poderia trazer afinal o fim do universo.

O nome no pedaço de papel era o verdadeiro nome a que Deus respondia neste universo. Estava escrito de forma a ser lido ao contrário. Foram meses de rituais solitários para que o nome pudesse ser pronunciado, sendo o alvo discreto da reprovação de colegas de facção mais experientes e de riso por parte dos mais novatos.

O entropista não podia deixar de sorrir ao pensar no que estava preste a fazer. Ele então se pergunta se seu sorriso não seria o último sorriso deste universo, se sua deliciosa antecipação não seria o último ato consciente de um ser humano antes do fim de tudo que existe.

Este pensamento lhe impulsionou a agir. Ele pega o papel e, lendo enquanto aponta o dedo para o chão, pensa por um segundo se o que estava fazendo não seria idiota. Afinal de contas, o mundo poderia simplesmente continuar como está e todos os seus anos de procura e dedicação se transformariam numa piada secreta, da qual somente ele e a Criação saberiam ter ocorrido.

Mas algo ocorreu.

O mundo começou a deslizar na sua frente. As trevas, tímidas no início, começaram a tomar conta de tudo. Charles, o exultante entropista, mergulha no esquecimento feliz e sabendo que somente ele entenderia o que ocorreu com a Existência. Seria seu legado para o universo: o fim do mesmo.

Foi então que ele percebeu algo de errado. Ele estava ainda cercado de trevas. Mas porque ele ainda estava consciente das trevas? Ele devir ter sumido junto, mergulhado na escuridão sem fim do prelúdio de uma nova Criação.
Mas ele não mergulhou. Ele não sentia o chão. Não sentia limites a sua volta. Não sentia o espaço acima. Ele não percebia o horizonte. Melhor, não havia horizonte.

Contudo, ele estava lá. Podia ver as próprias mãos (que não tinham o que pegar e que tateavam o escuro sem nada encontrar). Podia ver os próprios pés (que não se apoiavam em nada). Tentou tocar a si mesmo e não se sentiu: Charles havia se tornado um fantasma.

Então era isso? A Criação acabaria mas lhe deixaria como uma última maldição a marca de ficar eternamente flutuando no... nada? Talvez ele tenha errado algo na flexão do nome, talvez em quem lê o efeito seja mais demorado...

Mas, como um raio, a resposta veio.

Talvez o universo ainda existisse. Talvez, o nome de Deus lido ao contrário separasse quem o leu da Criação; desta forma o universo deixaria de existir só para quem invocasse o nome. Talvez o nome fosse algum truque de uma criatura extradimensional qualquer ou de algum Iniciado de outra facção, com o objetivo de capturar e isolar àqueles que desejassem o fim de tudo. E se quem leu fosse parar neste limbo, este alguém talvez tenha sido separado da Criação. E então o pior veio. A conclusão que levou o entropista a loucura definitiva e eterna.

Pois, se alguém é separado da Criação esse alguém não existe. E nunca deixará de existir. A condição atual de Charles seria eterna.

Em meio a percepção do pior preço a ser pago por sua presunção, o entropista grita enquanto sua mente mergulha numa insanidade sem fim.

Contudo, ele nunca mais ouvirá os próprios gritos. Ou mesmo qualquer outro som na sua agora eterna não-existência...

O FIM DO UNIVERSO PARA CHARLES SIMÕES foi escrito por Danilo Faria

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