sábado, 10 de janeiro de 2009

Conto Rebelião 84: Zênite

A floresta amazônica espalha-se em toda as direções, para onde quer que eu olhe. Eu, Matias Orígenes, estou isolado do mundo exterior por uma muralha vegetal intransponível. Aos poucos, minha memória vai retornando, e começo a entender o que aconteceu.
Sempre fui anti-social e introvertido; por isso mesmo, acho que a vocação religiosa veio-me como uma tendência natural em minha vida. Tornei-me seminarista já aos quinze anos de idade, e hoje, aos dezenove, sou o mais resignado dos frades dominicanos. Vivi por muito tempo em um mosteiro pequeno nos arredores de Manaus, livre das pressões mundanas. Esperava viver assim até o final dos tempos, se não fosse o Abade Carlos, um homem irrequieto demais para um idoso, que decidiu-me mandar em missão humanitária junto a índios da fronteira.
Quis recusar a jornada - lutei desesperadamente para convencê-lo - mas minhas preces não foram ouvidas, e naquela madrugada nevoenta de domingo, fui enfiado dentro de um monomotor e "despachado" para os confins da Amazônia.
Uma dor pungente chama a minha atenção neste momento: eu abro os olhos com dificuldade, e vejo que minha mão esquerda está esmagada. Mancando de uma perna, noto cacos de vidro espetados em minha perna, e só agora percebo uma ferida profunda em meu abdômen, da qual escorre um manancial de sangue escuro.
O avião - só agora meus pensamentos clareiam o suficiente para concatenar as idéias - sofreu um acidente e despencou.
Houve uma explosão - não estou bem certo.
Sim, houve uma explosão - a imagem surge em minha mente, do avião partindo-se contra as árvores gigantescas, e bolas de fogo zunindo à minha volta.
Depois, só senti a escuridão me tragar.
Senti o abraço da Morte envolvendo-me.
Mas agora estou de pé, cambaleante como um morto-vivo, errando por um labirinto de árvores e raízes. Meu sangue mistura-se à terra enquanto arrasto meu corpo com dificuldade.
A hemorragia exaure minhas forças e eu caio desfalecido mais uma vez. Quando recobro minha consciência, noto os pedaços mutilados do cadáver do piloto boiando num charco de lama. O cheiro de sangue e de carne queimada emporcalha a atmosfera, e sinto a presença de animais rondando o corpo.
Fico de joelhos, esperando pela morte.
Então eu percebo...
Minhas feridas estão cicatrizando-se, como se uma força sobrenatural regenerasse meu corpo. O processo é lento, porém real.
A dor ainda é intensa, e ela parece atravessar meu cérebro como se fosse um punhal em chamas. Eu grito. Eu choro. Eu berro como um recém-nascido.
Meus dedos cravam-se no chão úmido, cavando um sulco profundo.
Eu continuo berrando.
Uma dor pungente em minha boca faz com que eu perceba que dois dentes novos estavam nascendo - em substituição ao que quebraram no acidente.
Um assovio intermitente emana da trilha de lama, e noto que do sulco começam a brotar algumas figuras, como se fossem homúnculos terrosos.
A curiosidade permite-me esquecer por um longo instante a dor que castiga minhas entranhas, e escuto uma vozinha áspera ecoar dentro de minha mente.
- Filho das Hostes, afasta-te! Teu lugar não é aqui, na Mãe de Amplas Vias!
Os simulacros movimentavam-se como se tentasse imitar feições inteligentes. Eu conseguia notar um arremedo de face naqueles pilares de terra macia.
- Não és benvindo, Criatura Intermediária!
Um pequeno terremoto pareceu empurrar meu corpo para longe das criaturas. Aquela sensação de hostilidade provocou-me uma onda de ódio. Repugnado, concentrei minha fúria na direção dos "gnomos", explodindo-os com meu pensamento.
Senti minhas pernas já fortes o bastante para correr, e lancei em louca correria.
Saltei raízes.
Desviei de cipós.
Parti galhos que me barravam o caminho.
Sentia-me preso em um inferno verde, vigiado por demônios-vegetais onipresentes. A sensação de clausura foi lentamente dando lugar a uma sensação de renascimento, quanto mais eu sentia que forças estranhas pulsavam em meu corpo. Minha velocidade tornava-se cada mais maior; sentia que meus reflexos aprimoravam-se; meus músculos pulsavam com um vigor cada vez mais sobre-humano.
Comecei a captar uma teia de energias invisíveis que fluíam pelas árvores, formando uma espécie de aura sutil que permeava a tudo, inclusive a mim. Senti que ali havia uma energia misteriosa, e que eu podia sorvê-la, numa estranha simbiose. Meus sentidos aguçaram-se ainda mais.
Um raio de luz parecia cortar a escuridão da mata, e saltei em sua direção. Deixando-me banhar na luminosidade revigorante da pequena clareira, olhei para o Sol do meio-dia, em seu zênite, espalhando seu calor pelos castelos de folhagens.
Percebi que as dores que martirizaram meu corpo não eram o abraço gélido da morte, mas o beijo luminoso de um espantoso renascimento.
Olhei para o Sol mais uma vez, e sorri.

ZÊNITE foi escrito por Simões Lopes


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