segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 37: Degredo

DEGREDO

Aleixo do Souto estava parado no cais há pelo menos umas duas horas, com o ar ansioso. As águas do mar estavam escuras, e grandes nuvens negras cobriam o céu tempestuoso. Alguns raios cortavam a escuridão de vez em quando, e a neblina cobria as ilhotas mais próximas. Apesar disso, o vento continuava quente, e Aleixo, nascido nas regiões frias e montanhosas do interior de Portugal, praguejava constantemente contra o "maldito" calor tropical.

Depois de mais algum tempo de incômoda e persistente espera, finalmente ele viu um bote aproximando-se do litoral. Uma luz tremeluzente, quase imperceptível inicialmente, indicava uma lamparina de óleo trazida a bordo da pequena embarcação. Quando essa finalmente desembarcou, ele pôde reconhecer seu amigo e cunhado, Sebastião Pacheco.

Sebastião estava muito magro, como demonstravam os ossos do rosto já bem salientes, e a barba loura e rala cobria-lhe boa parte do rosto e uma grande área do pescoço.

— Sebastião, finalmente estais aqui! — gritou Aleixo, recepcionando seu conhecido de longa data.

Sebastião continuou calado.

— Eu já sei o que aconteceu com minha irmã, amigo. Eles a levaram... — a declaração de Aleixo foi seguida por um abraço forte.

O recém-chegado explodiu em lágrimas: — Eu não pude fazer nada, Aleixo.... eles aproveitaram-se de um lamentável descuido... e capturaram minha amada Apolônia bem diante de meus olhos...

Apolônia Antunes era a única irmã de Aleixo do Souto, ambos filhos do casal Antão do Souto e Brites Antunes. Formavam uma das primeiras Lojas a agir em Portugal, e durante muito tempo viveram na cidade do Porto, ensinando e doutrinando todos aqueles que vinham em busca de sua sabedoria e orientação. Um destes muitos alunos foi justamente o mesmo Sebastião Pacheco, que acabou vindo a casar-se com a filha de seus honoráveis mentores.

Infelizmente, os Inimigos da Iluminação sempre estão à espreita, e as atividades da Loja acabaram descobertas, com todos tendo sua prisão decretada, sob as mais diversas acusações: de “serem judeus falsamente convertidos”, de “terem pacto com o demônio”, de “ensinarem heresias e divulgarem blasfêmias”. Um grupo de Centriarcas, disfarçados de Familiares do Santo Ofício, ocuparam-se em realizar as denúncias, dando um falso verniz jurídico às calúnias, e decretaram a perseguição. Antão do Souto foi encurralado e capturado, mas na luta que se seguiu, acabou morto; Brites e um pequeno séquito de discípulos simplesmente desapareceram; Sebastião refugiou-se em Cabo Verde com a esposa, que acabou sendo presa após um ataque fulminante dos Centriários. Aleixo já estava no Brasil quando tiveram início estas perseguições, vivendo incógnito na falsa identidade do padre jesuíta Estêvão Marinho.

Agora, finalmente Sebastião conseguira um jeito de fugir em segurança para o Brasil. O ex-soldado, nascido na vila de Viana do Castelo, tivera que recorrer à plenitude de seus shiddis para derrotar um grupo inteiro de inimigos, e através de contatos importantes na Ilha da Madeira, veio ter ciência do real paradeiro de seu colega e cunhado Aleixo do Souto.

O ardor do combate ainda podia ser sentido no semblante do combalido Sebastião. Seu mestre Antão sempre tivera problemas em ensinar-lhe a utilização de seus dons de manipulação da maya em combates, pois o ex-soldado Pacheco odiava lutar. Em seu passado como militar presenciara dezenas de mortes, sendo ele mesmo um dos mais aguerridos soldados lusitanos nas guerras do além-mar. Mas a partir do momento que ele descobriu como o mundo realmente era, jurou que jamais combateria de novo. Quando seu professor Antão começou suas aulas de combate, o ex-soldado resistiu renitentemente a engajar-se em novas pelejas: a violência o enojava. De nada adiantava explicar-lhe que mesmo despertando para a verdadeira Realidade, ele não teria como evitar o confronto. Aleixo ainda se lembrava dos dias de treinamento quando o pobre Pacheco levava “surras” constantes, e pensou no quanto deve ter sido duro para ele lutar com os Centriarcas.

— Não podemos ficar por aqui, Aleixo! Vamos sair logo! — incitava o exausto Sebastião.

— Nosso contato está por chegar, acalme-se, por favor.

Logo depois, em meio à névoa que cobria o cais, surgiu a figura imponente de uma mulher alta e jovem, com a cabeça coberta por um véu. Margarida Pinheiro, uma bela cabocla, neta de um cacique, e agora esposa do Capitão Anselmo do Vale, adentrou o cais, seguida de sua fiel escrava cabinda, Anastácia.

— Minhas terras estarão à vossa disposição, queridos amigos. Este é o grande Sebastião Pacheco? — perguntou a moça, com os grandes olhos negros parecendo brilhar.

— Sim, bela senhora.

— Pois saiba que sentimos muito pelo que aconteceu com tua esposa. Minha tutora falou-me muito da sabedoria e conhecimento de Apolônia.

Sebastião emudeceu-se. As lágrimas começaram a correr-lhe pelos ombros. Ele fraquejou e caiu de joelhos.

Margarida amparou o sofrido homem de barbas louras.

— Sabemos de teu amor por ela. Use-o para ganhar forças e não para perder-se em desânimo.

O homem explodiu em choro.

— Eles a levaram... eu-eu não... — soluçou — não pude fazer nada... ela está morta.

Nisso, a pequena escrava, uma senhora gorda e baixinha, com os cabelos brancos como neve, afagou os cabelos do homem com carinho, e sussurrou-lhe aos ouvidos:

— Ela não está morta, foi levada cativa para Lisboa.

O homem parou de chorar, surpreendido pela revelação bombástica.

— Desculpe minha falha — Margarida pousou a mão nos ombros da escrava africana enquanto falava. — Esta é Anastácia, a minha tutora. Obviamente, não existem escravos entre nós...

Aleixo ajudou o amigo a erguer-se. — Não estamos aqui para consolá-lo, cunhado. Estamos aqui para preparar o resgate de minha irmã. Sabemos que sua prisão é protegida por um grupo de treze centriários. Está conosco?

Sebastião Pacheco enxugou as lágrimas, e endireitou o corpo.

— O medo não é mais a minha prisão. Estou pronto para lutar. Vamos salvar Apolônia!

Aleixo então conduziu o grupo até outro ponto do mesmo cais, onde estava ancorado um barco de tamanho médio. Um homem velho, muito grande e corpulento, com longas barbas brancas, esperava junto ao convés.

Ele adiantou-se às apresentações de rotina, saltando para a beira da praia. Com a água salgada na altura do joelho, bateu no peito com força.

— Eu sou Bernabé Simões, todos são bem vindos a bordo do Tritão!

— Voltaremos a Portugal assim? — Sebastião não parecia muito confiante naquele meio de transporte.

— Duvido que haja barco no mundo tão veloz quanto o meu Tritão — disse o marinheiro com sua voz rouca. Ele viaja na água, no ar e se vocês forem resistentes o bastante, até em outros Planos... — o amplo sorriso desdentado demonstrava um enorme orgulho.

— Ah, as maravilhas da Escola Mecânica — cochichou Aleixo ao ouvido de Sebastião —, sempre tenha um de seus adeptos por perto...

— Amigo Bernabé, eu o seguiria até o Inferno! — gritou Sebastião. — E chega de conversa, temos alguém a resgatar!

O corpulento marujo limitou-se a sorrir, enquanto começou a preparar sua embarcação para a fantástica viagem que estava por ter início.


DEGREDO foi escrito Simoes Lopes

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