sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Rebelião 76: Resplandecente Serenidade


A mulher de porte elegante e membros delicados polia delicadamente uma vasilha de acrílico, enquanto atendia os clientes que mexiam na prateleira de remédios analgésicos. Margarida era seu nome, e os cabelos castanhos emolduravam um rosto moreno com feições levemente orientais. Trazendo em seu sangue várias gerações de miscigenação entre portugueses, italianos, índios, japoneses e africanos, Margarida Acácio das Neves crescera numa família simples de seis irmãos, sustentados a muito custo por um casal de lavradores.

A pequena farmácia de subúrbio de que era proprietária era conhecida nas redondezas pelo eclético estoque composto por remédios alopáticos, homeopáticos, acessórios para cromoterapia, ervas para benzedeiras, florais de Bach e as mais diversas imagens de santos e orixás. Era difícil imaginar algo que não pudesse ser encontrado no Boticário Oriental, nome que a própria Margarida fizera questão de dar à sua loja. Mesmo passados vários anos da abertura da dita farmácia, o nome ainda era motivo de perplexidade para muitos dos vizinhos, que não entendiam o porquê de um nome tão “fora de moda” para um estabelecimento comercial.

Margarida gostava do nome, e assim tocava sua vida. O sustento era garantido, ainda que sem luxos, e sua vida de solteirona parecia toda devotada à sua família de gatos siameses e suas idas freqüentes à pequena Capela de São Lucas, onde passava horas rezando.

— Quanto custa essa pastilha? — perguntou um senhor idoso de fartos bigodes.

— A da caixinha azul ou da caixinha com desenho verde? — disse Margarida, tentando entender o pedido.

Enquanto registrava mais uma venda, Margarida aproveitava para vigiar o garoto de cabelos oxigenados que parecia demorar demais na seção de cosméticos. Ele agachou-se diversas vezes atrás da prateleira, e ela não conseguia perceber o que ele estava fazendo. Ele já havia causado problemas outras vezes, e Margarida estava atenta.

Um frasco de perfume não tão caro estava sendo empurrado para dentro do bolso do casaco com relativa habilidade, e seria relativamente fácil surrupiar mais um dois. O pequeno surrupiador estava tão confiante em sua destreza que não se importou com a chegada de um gato bem gordo de pêlos cor de creme. As extremidades negras comprovavam a raça siamesa do bichano, um dos muitos “queridinhos” da coleção da dona do Boticário Oriental.

Assim que rapaz magricelo deslizou mais alguns objetos para dentro dos bolsos, sentiu as garras miúdas porém afiadíssimas do gato acertarem-lhe a coxa. Conteve o grito, mais preocupado em manter consigo os prêmios surrupiados. Mal tentou sair na direção da porta e levou uma mordida violenta no calcanhar.

O grito foi ouvido por Margarida, e um dos fracos espatifou-se no chão de cimento, espalhando um odor forte de lavanda. Lucinho, um dos empregados da farmácia, dominou com facilidade o ladrão, retomando os outros frascos, e expulsando o menino com um leve safanão. Um PM que passava na calçada chegou para entender a confusão que começava a se formar e Margarida começou a explicar o que acontecera, com uma tranqüilidade fora do comum. A serenidade daquela moça era conhecida por todo o bairro, nada parecia jamais surpreendê-la ou tirá-la do equilíbrio. Costumavam dizer que ela parecia resplandecer com a irresistível tranqüilidade que parecia preencher sua alma.

Enquanto Margarida explicava o acontecido para o policial, seu telefone celular tocou, num som tão baixo que somente sua dona percebeu.

Ela atendeu e limitou-se a ouvir o que era dito.

Desligou o telefone.

Seu semblante estava alterado.

Chamou seus três empregados, Lucinho, Kléber e Marília, e deixou-lhes encarregados de resolver o problema. Dirigiu-se para os fundos da loja, sempre seguida de perto pelos três gatos que deixava circular pela farmácia, e após uns dez minutos de sumiço, reapareceu de roupa trocada e com ar apressado.

Disse que um irmão havia sofrido um acidente e que necessitava de auxílio.

Ninguém seria capaz de adivinhar o real motivo de sua partida.

A conversa telefônica não era um pedido por ajuda

Era uma convocação.

A partir daquele momento, Margarida Acácio das Neves deixava de existir para tornar-se Margarida de Antioquia, Cavaleira da Cruz Resplandecente.

Ela entrou em seu carro velho e partiu imediatamente. Não precisava de nada além do que carregava consigo. Enquanto dirigia para o destino indicado pelo telefonema, ciente da missão que estava fadada a cumprir, pronunciava uma oração quase silenciosa intermitente.

As pedrinhas azuis que furavam suas orelhas como pequenos brincos começaram a emitir um brilho cada vez mais intenso.

Ela saltou do carro, e correu por dentro de uma viela deserta. Um muro de tijolos separava aquele lugar de uma encosta coberta de mato. No alto do morro, uma casa de três andares equilibrava-se na borda de uma pedreira íngreme. Margarida de Antioquia sabia muito bem como chegar até lá.

Certificou-se que ninguém estava por perto, e esfregou a orelha com força, os brincos começaram a soltar faíscas azuladas, e à medida que a luz ficava mais intensa, ela ia puxando os pequenos cristais um a um. Recolhendo-os na palma da mão, ela pronunciou uma palavra solene em algum idioma estranho, e sentiu as gemas fundindo-se em meio ao clarão em um só objeto, uma magnífica gema de cristal azul-claro.

Segurando-a com força na mão, Margarida agachou-se para observar um grupo de ratazanas que passavam correndo por dentro de uma poça de lama. No alto, uma pequena garça voou emitindo um grito triste. Os dons inumanos conferidos pela gema misteriosa aos membros da Ordem da Cruz Resplandecente transformavam sutis sinais e ruídos em verdadeiros mananciais de informação. A Cavaleira fechou os olhos, concentrando-se, e repassou mentalmente seu plano de ação.

A guerreira podia agora interpretar melhor o que a ave tinha visto, e a partir das mensagens olfativas compartilhadas com as ratazanas, podia traçar um quadro do terreno desconhecido que se escondia por trás da parede de tijolos.

A gema brilhou, emitindo um clarão azulado, fazendo os olhos da mulher brilharem em sintonia. Ela ergueu-se do chão sem produzir som algum, levitando de maneira sobrenatural.

Uma forma humana agora subia a encosta do morro em alta velocidade, flutuando como um pássaro, uma dádiva de todos os cavaleiros detentores da Gema Azul-Clara da Águia Celeste.

A casa ficava cada vez mais próxima, e ela podia compreender que aquela era uma mansão luxuosa, e que com certeza escondia inimigos perigosos. Nenhum vigia ou segurança era visível, e nenhuma luz estava acesa na residência. Para um espectador comum, a mansão parecia deserta.

Mas aquela mulher não era uma espectadora comum, e sabia como pouco ler os sinais preciosos que os animais, o vento e a terra carregam. Seus sentidos estavam mais aguçados, e ela podia sentir que energias arcanas estavam em ação lá dentro.

Margarida preferiu voar diretamente para o último andar, pousando numa varanda estreita que decorava a sacada. Uma piscina pequena, cavada na própria laje, estava coberta de musgo, e o chão era escorregadio. O cheiro de bolor empestava a atmosfera noturna. Assim que ela tocou o chão, um cachorro começou a latir. Era um cocker spaniel atarracado, de pêlos dourados, e aspecto inofensivo.

A mulher fez com que o brilho de sua jóia diminuísse, e tentou um contato empático com o cão. Procurou por mensagens sensoriais que lhe permitissem entender melhor quem estava lá dentro. Não conseguiu nada.

Sentiu apenas um vazio gélido.

Aquele cachorro não era inofensivo.

Tampouco podia ser chamado de “cão”.

O animal soltou um rugido rouco e profundo, como se um trovão ecoasse por dentro de suas entranhas. Uma brisa gelada circulou pela varanda, fazendo com que o musgo na piscina mudasse levemente de coloração. Com um espasmo muscular, ele fez com que sua carne inchasse. Grandes tufos negros de pêlo despontaram de seu corpo, tão grossos que mais pareciam espinhos. Uma baba fétida escorria de sua boca, enquanto a metamorfose completava-se. Em poucos segundos o Damnatus, um demônio canino do Inferno, estava barrando a passagem de Margarida de Antioquia, a enviada da Ordem da Cruz Resplandecente.

As mandíbulas do bicho, enormemente distorcidas pela transformação exibiram ferozes presas que buscaram com avidez a coxa carnuda da Resplandecente. A jóia de cristal brilhou mais uma vez, jorrando um feixe luminoso que ao apagar-se tornou-se sólido.

O simulacro de cão não foi capaz de deter seus movimentos com a velocidade necessária, e antes que pudesse emitir mais um rugido, uma espada de metal azulado estava cravada em sua garganta, com a ponta atravessada em seu crânio.

Margarida sorriu, e com um rápido movimento, ergueu sua espada, partindo a cabeçorra da besta em duas metades. Com a arma ainda em punho, deu um salto para dentro do salão que ocupava o último andar da casa. Um grupo de homens esperava por ela.

Eles estavam em maior número. Riram com deboche, confiantes de sua superioridade. Um deles tinha pupilas vermelhas que pareciam queimar em chamas. Um outro, um ancião de cabelos compridos, mostrou os dentes amarelados e gritou algo numa língua morta. Margarida percebeu que enormes vermes esverdeados enrodilhavam-se na cabeleira do velho. As paredes do salão estavam cobertas de pinturas abstratas, que pareciam ganhar vida. Uma substância viscosa e escura escorreu de um dos quadros descendo pela parede. Os pingos que caíam no chão davam origem a tentáculos. Pequenas criaturas inumanas entraram rastejando pelo chão de mármore.

A silhueta heróica da morena erguendo uma espada azul atraiu a atenção daquela dantesca corja. Eles cercaram lentamente a sua inimiga, confiantes em seu poder.

Ela estava sozinha. Eles eram muitos.

Ela brandiu sua espada e entoou um cântico.

Um homem de cabelos loiros e olhos ardentes criou chamas com a ponta dos dedos ossudos. No fundo do recinto, a Resplandecente podia notar a presença de um enorme livro de capa branca com vários séculos de idade. Duas figuras sem traços definidos tomavam conta da Cândida Bíblia de Salomé.

Foi para isso que Ordem mandara Margarida de Antioquia vir até este lugar blasfemos. Ela devia resgatar o tomo sagrado, ou morrer tentando.

Eles chegaram mais perto, bloqueando a passagem da guerreira.

Eles eram muitos. Ela estava sozinha.

Margarida segurou sua espada com força.

Havia muitos inimigos.

Mas não o bastante para detê-la.

Ela canta mais uma vez, com o semblante sereno, como sempre.

A espada baila no ar, deixando um rastro de luz azul-celeste.

O primeiro inimigo cai a seus pés, sem um dos braços.

Agora só faltam mais alguns.

RESPLANDECENTE SERENIDADE foi escrito por Simões Lopes

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Rebelião 75: Caridade


"Quando Ismália enlouqueceu

Pôs-se na torre a sonhar...

Viu uma lua no céu.

Viu outra lua no mar." (Alphonsus de Guimaraens)

— Eu ainda não posso acreditar que isso aconteceu com ela…

Observo o pêndulo nas mãos de Clow — um penduricalho de vidro, como um cristal, preso em um cordão de prata — movimentar-se suavemente a cada soluço contido. Seu apartamento está uma grande bagunça, mas diferente da desorganização habitual. Com ele, o caos costumava lembrar simplesmente os turbilhões dinâmicos da vida: repentinos, vertiginosos, mas sempre interessantes. Hoje, todo ele tem uma aparência lúgubre, triste (os livros de Ismália estão espalhados pelo chão, porque Clow os deixou cair ao tentar empacotá-los. Vejo Oração aos moços perto de meu pé direito). Acabamos de voltar da missa de um mês de Ismália, sua amante de barro. Clow, como todos os Acólitos, sofre de uma terrível maldição: um elo inquebrável com os mortais. Sua última companheira sofria de psicose maníaco-depressiva, e suicidou-se jogando-se ao mar durante a ausência de meu amigo, quando tivemos aquele probleminha com a R.A.M. Ele ficou arrasado. Toda a sua exuberante alegria parece ter murchado, e uma melancolia e letargia imensas parecem ter tomado seu lugar. Não gosto dessa mudança. Não gosto de sua tristeza.

— Sabe, às vezes eu usava meus poderes para influenciar seu humor. Na hora, eu me sentia um verme por manipulá-la assim, mas quando a via feliz… puxa, era tão bom! Você consegue me entender?

Não, não consigo. Viver entre esses bonecos perecíveis já é extremamente desagradável, imagino conviver com eles. Clow olha para mim esperando uma resposta (sempre gostei disso nele — nenhuma de suas perguntas era retórica, seu objetivo era sempre o de se comunicar).

— Sim, querido, eu consigo.

Ele me devolve um sorriso triste e volta a olhar para o pêndulo.

— Não, não entende. E não é justo que eu pergunte isso a você. Sei como se sente em relação a eles…

— Por favor, Clow, não me entenda mal. Sei que tudo que fez foi para fazê-la sentir-se melhor, e é admirável seu senso de compaixão…

— Não, Gilda, você não entendeu mesmo. Nunca fiz nada a Ismália por compaixão. Eu a amava. Queria vê-la feliz porque a amava e me preocupava com ela. Não posso cobrar de você um entendimento disso porque sei que você é incapaz de amá-los — quando muito, pode tratá-los com condescendência.

— Você é que está sendo injusto comigo agora! Você…

Mas ele faz algo que me surpreende. Ele começa a chorar, baixinho, como uma criança magoada. Eu fico por uns momentos sem saber o que fazer, e ele desliza da cama, onde estava sentado, e fica de joelhos na minha frente, sua cabeça pouco acima de minha cintura. Quase naturalmente, eu o abraço e sinto o calor de suas lágrimas em meu ventre nu.

— Ah, dói tanto… por mais que eu tente controlar... ou esquecer… é uma dor… não, um vazio, que está em toda parte… tudo agora é um vazio dela…

Minha vontade real é estapear seu rosto e trazê-lo para a realidade. Existem Evas como ela em toda parte, e todas irão voltar ao pó, mais hora, menos hora. Será tão difícil assim para esse tolo entender isso? Mas quando olho para ele, é impossível não me comover. Ele é um tolo, um amante de mortais, mas eu o amo. E não posso deixá-lo sofrendo.

Ergo Clow e o levo de volta para a cama. Ele contém um pouco de seu choro e eu caminho pelo quarto, tocando as coisas a esmo. Pego um livro à cabeceira de sua cama (Lira dos Vinte Anos) e deixo o maná fluir...

… eles acabaram de fazer amor, e ela lê Amo a Voz da Tempestade enquanto ele brinca com os dedos de seu pé. Ela ainda tem o gosto salgado de seu suor nos lábios, e a languidez que a toma depois de se amarem a faz sentir-se feliz…

seguro essas reminiscências em minhas mãos como quem captura um vaga-lume. Meus olhos vagam pelo quarto, e eu instintivamente sei o que procuro. Na mesa de cabeceira vejo uma ampulheta, e quando a toco…

as areias escorrem lentamente de um compartimento a outro do dispositivo. Ela está passando por uma crise e Clow está com ela. Essa é a quarta vez que as areias mudam de lugar, mas ele continua calado e abraçado a ela na penumbra do quarto. O ritmo das batidas do coração dele são fortes e constantes como o movimento do tempo, aprisionado neste brinquedo de madeira e vidro…

Não gosto do automatismo de minhas ações, da precisão de meus movimentos procurando as coisas que eram dela, mas continuo. Agora pego uma escova de cabelos, perdida entre vidros de perfume e cremes para maquilagem. Vejo com clareza…

… eles estão em frente do espelho, enquanto ele penteia seus cabelos. Ele os escova bem devagar, ouvindo suas queixas sobre o trabalho novo. Ela se interrompe às vezes para ver se ele está prestando atenção. Como sempre, ele estava…

Ah, é perigoso fazer isso — recolher todas estas impressões tão vivas do amor que ela sentia por ele. Tem um sabor difuso, mistura de urgência, necessidade e gratidão. Há ainda outras coisas, mas em doses tão sutis, e tão fortemente misturadas, que me parecem indistintas. Não imaginava que eles pudessem sentir assim, com tanta intensidade, tão complexamente. Um porta-incensos me diz…

… como eram breves os momentos que ela passava apreciando seu corpo, com mãos e lábios. Não era luxúria, ela só queria sentir, de olhos fechados, cada milímetro da pele de seu amante. Era um hábito estranho, e todos os homens antes dele se impacientavam com isso… mas ele apenas retribuía as carícias, com paciência e afeto…

Os vaga-lumes debatem-se entre meus dedos, tentando escapar. Os prendo firmemente em uma das mãos e caminho até Clow, tirando o pêndulo de seus dedos. Minha intenção era infundir a essência das lembranças dela no cristal, para que ele as pudesse levar por onde fosse. Mas não consegui. O pêndulo cai de minha mão, lentamente, como se pesasse muito, e antes de ouvir o ruído cristalino de mil fragmentos espalhando-se pelo chão, colho um beijo dos lábios úmidos de pranto de Clow.

***

Estamos deitados, os corpos suados e satisfeitos. Sua cabeça repousa sobre meu ventre, e ele está chorando sem fazer ruído. Quando se levanta, olha para mim de forma indecifrável o que me deixa perplexa e arrependida.

— Querido, me perdoe, não era isso que eu tinha em mente...

— Obrigado, Gilda.

Ele se aproxima e beija minha testa de modo fraternal, abraçando-me com tanto carinho, tanta ternura que é impossível não retribuir.

— Você queria me dar uma jóia do coração de Ismália. Mas seu coração não era de pedra; era de feito de um material mais frágil, perecível... e caloroso. Seu amor por mim fez com que penetrasse a essência de algo que despreza, só para me fazer feliz. Obrigado, prima. Obrigado por me dar uma chance de me despedir de meu amor da maneira como éramos em nossos momentos mais felizes.

Ele se levanta e começa a se vestir com um sorriso brincalhão nos lábios, com uma intimidade a um tempo desconcertante e acolhedora. E as últimas brasas de Ismália ainda queimam em meu coração, mas apagam-se lentamente, dando-me tempo para me sentir satisfeita e feliz por ter trazido felicidade a outro alguém.

Obrigada, Ismália. Obrigada por ter me emprestado seu coração e seu amor. Olho Clow se movimentando pelo seu apartamento, com um novo sorriso cheio de nostalgia, e infantilmente começo a imaginar que estou tendo uma epifania: que só conseguimos realmente ser felizes quando doamos felicidade...


CARIDADE foi escrito por Renato Simões

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Rebelião 73: Tabula Lupercalis

Há muito tempo que Roma não tinha um inverno tão rigoroso, e aquela noite era a mais fria do ano. Leopoldo Carpone e Annabella Saverio ainda estavam acordados, debruçados sobre a enorme escrivaninha de madeira antiga, com uma série de pergaminhos antigos em frangalhos cuidadosamente dispostos sob uma proteção transparente. Os outros arqueólogos, Elia e Gioconda, já tinham sido vencidos pelo sono e estavam em seus quartos dormindo.

Desde o início nas escavações na catacumba, Annabella jamais se sentira tão perto de decifrar os documentos como agora. O dia fora marcado por uma sucessão de descobertas, e o que parecia ser um indecifrável quebra-cabeças agora começava a fazer sentido. Leopoldo conferia alguns caracteres alfabéticos num velho glossário, enquanto Annabella repetia suas mais novas conclusões, com um orgulho indisfarçá-vel.

— Estávamos seguindo o caminho errado. Ontem, eu finalmente consegui desvendar aquelas incongruências do nosso modelo inicial. Não estamos lidando com um só alfabeto, mas com vários. Baseando-me em certos detalhes de estilo e outras sutilezas, consegui decompor os textos cuneiformes em duas diferentes séries. A primeira realmente está em sumério, como desconfiávamos, e a segunda num alfabeto similar, mas que seguramente não é o mesmo.

— Uma derivação mais recente do cuneiforme sumério? — perguntou Leopoldo.

— Não. Pelo meu estudo, acredito que seja uma forma mais arcaica ainda — completou a frase com um sorriso.

— Impossível! Um alfabeto mais antigo? Isto seria das maiores descobertas da Arqueologia atual!

— Pois é, acho que estamos nesse caminho...

— Mas os sumérios não usavam pergaminhos, somente tabuletas de argila. Além disso, como isso foi parar numa catacumba romana?

— Eu sei que estamos diante de enormes paradoxos. Mas eu e Elia descobrimos hoje mais pergaminhos numa câmara secreta na ala sul. E com eles achamos algumas tabuletas em pedaços. Os pedaços conferem com o texto manuscrito.

— Você e Elia continuaram a escavação hoje? Por que não me avisaram de nada? — protestou Leopoldo, coçando os fartos bigodes castanhos.

— Você tinha viajado até Florença, pensamos em ligar para você, mas eu quis fazer uma “surpresa”... — os olhos castanhos da moça pareciam brilhar.

Leopoldo deu um beijo demorado na companheira, com quem mantinha um namoro há duas semanas, e viu que esta estava segurando um dos fragmentos na mão. Annabella chegou a esboçar um protesto quando Leopoldo arrancou apressadamente de suas mãos a pequena lasca de argila, mas deixou que ele visse por si mesmo.

— Cuidado, Leo, a placa é frágil.

Annabella podia compreender a empolgação de seu colega. Carpone era o mais jovem da equipe de arqueólogos, e também aquele que chegara há menos tempo no instituto.

— As descobertas de Elia revelaram ser diversos conjuntos de fragmentos, nos quais identifiquei preliminarmente textos em sumério, em etrusco e latim arcaico, além de três línguas desconhecidas. Achamos também mais pergaminhos, a maioria em latim. Leo? Está me escutando?

Leo estava de costas, examinando uma das placas de argila. Lançou um olhar envergonhado para sua namorada, e pediu que ela continuasse.

A cientista passou a mãos pelos cabelos negros e muito curtos, e esfregou o pingente brilhante que sempre usava.

— Minha teoria é que trata-se de uma espécie de Pedra de Rosetta, temos provavelmente o mesmo grupo de textos, traduzidos em diversas línguas. Parece-me que foram sendo traduzidos e copiados com o passar dos séculos. Graças aos conhecimentos de Gioconda em línguas itálicas, já conseguimos decifrar um dos fragmentos de pergaminho.

A afirmação da mulher fez com que seu companheiro deixasse a placa na mesa, e se aproximasse com o maior interesse.

— E o que dizem estes textos? Manuscritos proto-cristãos das catacumbas? Leopoldo apertou a mão de sua amante com força.

— Pode ser. Mas parecem ter sido de alguma seita gnóstica ou de algum culto judaico aberrante, talvez até adeptos de alguma religião híbrida. Gioconda compilou o que parece alguma espécie de narrativa mítica sobre criaturas lendárias — a moça puxou um caderno de capa alaranjada de dentro de uma gaveta, e começou a ler as anotações de sua colega. Leopoldo ouvia tudo em silêncio.

— O Rei... está pouco legível...parece ser Baiarsa, ou Baiarsag, de Gomorra, teve um reinado longo e era muito temido pelo seu poder. Graças às demônias que adorava, sacrificou o próprio filho, e cercou-se de uma legião invencível de homens-fera.

— Bersa — era Elia que estava de volta, não tinha conseguido dormir, e decidiu voltar aos estudos. — Bersa é o rei de Gomorra citado na Bíblia, cuja forma hebraica mais correta seria Birsha’, com um “ayin” no final. Elia Ubaldo Frizzo era gordo e usava óculos, e era muito baixo. Sua chegada não agradou muito a Leopoldo, que ficou mais sério.

— Sim, faz sentido — concordou prontamente a arqueóloga—, mas deixe-me continuar: Os anjos de Deus foram enviados para punir as cidades malditas de Sodoma e Gomorra. Seus nomes eram Surial, o Sherafim do Sol, Ragüel e Azrael. A cidade foi inteiramente destruída e seus habitantes mortos. A legião de lobisomens tentou refugiar-se no Templo de Hekath e Gomory, cujas colossais estátuas de prata foram derretidas pelo calor intenso do fogo celeste. Sete crianças foram as únicas sobreviventes, todas com a semente infernal dos demônios germinando em suas almas. Elas fugiram, espalhando-se pelas regiões mais frias do norte. Devido ao terror pelo qual passaram em sua fuga, passaram a desprezar o Sol, a Morte e a Prata.

Elia segurava agora uma caneca de vinho. Ouvia tudo com atenção, embora já soubesse de quase tudo, mas Annabella havia conseguido descobrir mais detalhes.

— Outro fragmento diz que os lobisomens quiseram reerguer Gomorra, e que com dois irmãos gêmeos, guiados por Akka, uma das primeiras mulheres-lobisomens, construíram uma grande cidade. Um irmão acabou matando o outro, e o sobrevivente depois desapareceu. Os planos de criar a Nova Gomorra falharam. A história não é muito clara. Há muitas lacunas. Fala de um lobisomem que migrou para o extremo norte da Europa, assumindo o nome de Bersarachis

— Um nome derivado de Bersa, sem dúvida — complementou Elia Frizzo.

— Gioconda acha que é a origem do nome “Berserkr”, que os vikings davam a homens possuídos por uma força animal devastadora — explicou Annabella.

Leopoldo ergueu-se, com ar de cansado. — Puxa, tantas descobertas na minha ausência! Estou exausto, vejo que não precisam mais de mim, vou dormir.

— É, vejo que Annabella progrediu muito hoje, nos vemos amanhã. Também estou indo dormir — era Elia que falava agora, meio “contaminado” pela preguiça de seu amigo.

Annabella continuou analisando as anotações de Gioconda, e resolveu trazer mais alguns pergaminhos para o escritório. Não consegui pensar em dormir, tinha que ir até o fim.

Os ponteiros do relógios já indicavam as 3:34 da manhã quando Leopoldo retornou ao escritório.

— Acordado de novo? — perguntou a moça.

— Você não vem dormir? Estou sentindo sua falta — disse Leopoldo, lançando um olhar libidinoso para ela. Estava sem camisa, e havia uma enorme cicatriz em seu braço esquerdo.

— Você se machucou, querido? — ela perguntou, preocupada.

— Nada de mais, foram os arames perto da janela... só isso...o que você está escrevendo aí?

— Novidades! Novidades! Annabella soltou um belo sorriso, mas parecia sentir um pingo de sono. — Os textos não lhe soaram familiares?

— Não...eu...

— Ora, Leo, francamente! Não sei como não percebemos isto antes! Dois irmãos gêmeos, guiados por uma mulher-loba, construindo uma cidade... é a lenda da fundação de Roma! Rômulo e Remo, cuja ama tinha o nome de Acca Laurentia!

— Temas míticos recorrentes, querida. Isto se repete... — não chegou a completar a frase.

— E tem mais, veja o que eu descobri, pesquisando na Internet, bem agora: Gomorra em hebraico se escreve ‘Amora...

— Sim...e?

— Se escrevermos ‘AMORA ao contrário temos AROMA’...ROMA! Roma foi a Nova Gomorra para esta seita! E o nome latim dos lobisomens era versipellis, significa “pele trocada”, mas não poderia relacionar-se com um radical mais antigo vers-, bers-, ligado a Bersa? Em proto-itálico...

— Xiii.... — Leopoldo cobriu os lábios de Annabella com o dedo. — Hora de descansar este cerebrozinho maravilhoso. Ele começou a beijá-la, e a desabotoar sua blusa.

— Aqui...os outros...

“Todo mundo já está na cama”, cochichou Leopoldo, “é hora de nos deitarmos também”. As mãos dele já avançavam no sutiã, puxando com tanta força, que arrancou os fechos.

— Uau! Gostei disso! — falou ela ao ouvido do amante.

— Querida, pode tirar o pingente? As pontas são meio afiadas, pode machucar. Você não vai precisar dele agora — ele agora apertava as nádegas dela com força.

— Claro... — ela tirou o colar de prata e jogou para debaixo da mesinha.

Ela a jogou no chão com muita violência. Sua mão cobriu sua boca, apertando-a e comprimindo sua cabeça.

Sua voz tornou-se um rugido. Dentes amarelados e enormes brotaram da boca, enquanto uma juba de pêlos castanhos e ásperos envolvia seu corpo, que agora ganhava mais músculos.

Uma língua comprida e pegajosa lambeu o rosto e os seios pequenos de Annabella. — Você não sabe como foi difícil me conter para não matá-la antes!

— Vocês descobriram as Tábuas Lupercais, algo muito valioso para o meu povo. Não chore, seus amigos já estão mortos. Só falta você agora, minha deliciosa “ovelhinha”.

Annabella não arriscou a menor reação. Falou lentamente:

— Cuidado com a ovelha.

O monstro sentiu um golpe poderoso rasgando suas entranhas. Uma espada flamejante surgida do nada partiu o crânio da aberração ao meio. Enquanto ele sentia seu corpo ardendo, podia ver salamandras saltitando por entre as labaredas. Um segundo golpe da espada cortou suas pernas.

Annabella ergueu-se, e com um golpe preciso deu cabo da vida daquela monstruosidade.

Ela já havia percebido quem ele era, graças à ajuda de alguns amigos, e enquanto ele o tempo todo pensava estar enganando-a, na verdade era ele que estava sendo enganado.

Ela juntou todos os pergaminhos e tabletes numa caixa, pegou sua bagagem e fugiu pela manhã. Era hora de procurar pelo seu amigo Acólito e decifrar o restante.

Leopoldo Carpone não havia sido o primeiro, e provavelmente não seria o último versipellis a ser morto pela Bastarda Annabella.

A Tabula Lupercalis estava em boas mãos agora.

TABULA LUPERCALIS foi escrito por Simões Lopes

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Rebelião 72: Paraíso Perdido

Foi mais ou menos em 1909 que os quatro homens chegaram àquela região desértica no interior do Quênia. Os ingleses prosseguiam com sua dominação feroz, eufemisticamente chamada de “colonização”. Fome, peste, opressão e morte estavam por toda parte. Os quatro vestiam túnicas compridas com longos capuzes. Alguns os chamavam de monges; outros os viam como imãs muçulmanos; houve até aqueles que os consideraram como rabinos ou simples homens sábios. Pela sua cor, todos sabiam que eram africanos, mas eles jamais disseram de onde vinham.

O mais alto eles era muito magro e seu nariz bem comprido e adunco. Seus olhos eram grandes e de uma hipnótica coloração amarelo-ouro. Os africanos chamavam-no de Tai. Assad, que usava sempre um manto escuros, tinha barba e cabelos negros e volumosos, e sua voz era rouca e possante. Os ingleses chamavam de Matthew o mais baixo do grupo, que apesar da pequena estatura era grandioso em bondade e alegria, e cujos cabelos vermelhos chamavam a atenção. Completava o quarteto o enorme Lucas, um gigante cujo apetite era pantagruélico. Sua cabeça era raspada, tinha uma barba de alvura extrema, e seus olhos eram tão claros que também pareciam brancos.

Onde antes havia sofrimento, surgiu a fertilidade. Os quatro homens trabalhavam a terra com habilidade ímpar, e ao redor de si foram juntando os pobres famintos e desesperados. Em pouco anos, nas terras outrora estéreis e áridas, floresceu um verdadeiro jardim, batizado pelo habitantes de Dogo Ferdausi, “Pequeno Paraíso”. Os rebanhos cresciam, os animais eram fortes e pujantes. Abelhas reunidas em incríveis colméias davam um mel delicioso, e o leite das vacas era saboroso e revigorante. Ali todos trabalham juntos para a prosperidade comum, e não havia diferenças. Com o tempo, até europeus e indianos juntaram-se àquele pequeno pedaço do Éden.

Os quatro anciãos eram discretos e falavam pouco, mas estavam sempre dispostos a ajudar e resolver problemas, e vida seguia feliz.

Até que um dia, num riacho até então pouco notado, foram descobertos diamantes, e tudo começou a mudar. Atraídos pela riqueza, gente de todas as partes chegava, e com eles, a ganância, a vaidade e a violência. A beleza mineral atraiu os olhos da Coroa Britânica, e tropas foram destacadas para ocupar Dogo Ferdausi.

Lucas — a quem os imigrantes indianos chamavam de Vrishabha —, Assad, Matthew e Tai disseram aos soldados britânicos que aquele lugar era pacífico, e que eles não precisavam das gemas preciosas. Queriam apenas prosseguir em sua vida pacata, e que não desejavam ser importunados por garimpeiros e mercenários.

O Exército da Coroa não reconheceu os direitos daqueles “africanos insolentes”, e iniciou-se uma guerra, tanto com armas como com mentiras. Os religiosos viam os quatro guias de Dogo Ferdausi como hereges; para os governantes, eles eram rebeldes insurretos; para a elite britânica, eram como uma peste que podia alastrar-se.

Foi ordenada a evacuação do povoado, e a ocupação das terras diamantíferas pelo Exército Real. O povo pacífico era forte e saudável, e sua honra tamanha que não aceitaram as ordens do colonizador. Incapazes de dobrar seus oponentes, os ingleses decidiram quebrá-los.

Quando os soldados invadiram a aldeia com suas armas e bombas, até mesmo os animais nativos pareciam estar do lado dos indefesos habitantes. Manadas de búfalos e gnus investiam contra os homens, e leões enormes trucidavam os soldados atônitos. Aves de rapina descia dos céus como se fosse máquinas de guerra, visando olhos e outros pontos fracos. A própria Natureza parecia rebelar-se contra o jugo da tirania.

No alto de uma pequena colina, em sua humilde cabana, os quatro sábios a tudo assistiam, como se fossem comandantes daquela estranha rebelião. Quando os ingleses partiram em debandada, eles soltaram um grito de alegria. E eles desceram para ajudar aos seus “irmãos” feridos. Por toda parte, pessoas agonizavam, crianças chamavam pelas mães, e mães choravam pelos filhos mortos. Corpos mutilados estavam espalhados pelas hortas pisoteadas e destruídas. O sangue das reses fuziladas fluía como se fosse um rio escarlate.

A noite foi de dor e pranto, mas Tai, Lucas Vrishabha, Assad e Matthew estavam ali para acudir a todos os necessitados e confortar os combalidos.

O sol nasceu forte, e com ele um barulho estranho no horizonte. Zepelins aproximavam-se pelo lado leste da aldeia. Antes que qualquer reação pudesse acontecer, as máquinas voadoras começaram a despejar suas bombas.

As névoas amareladas de dicloroetilsulfeto — o hediondo gás mostarda — começaram a engolfar Dogo Ferdausi com eficiência genocida. As pessoas podiam sentir na pele grandes bolhas amareladas, olhos lacrimejavam, e pulmões ardiam. Até mesmo os animais tombavam mortos.

Em menos de um hora, todos estavam mortos. Dogo Ferdausi chegava a seu fim, no ano de 1915. Com equipamentos protetores, os soldados retornam mais uma vez, seus coturnos pisando em cadáveres e sua sede de vitória saciada. Eles confluem para a cabana no alto do pequeno morro, desejam encontrar os corpos dos quatro líderes daquela rebelião frustrada.

Os primeiros a chegar não acreditam no que vêem: o quarteto de homens encapuzados está vivo, à sua espera.

— Nós criamos um Paraíso aqui — o som parecia sair dos quatro ao mesmo tempo — e tudo nos foi tirado. Onde antes fluía o leite e o melo, apenas corre o sangue e a água envenenada.

Os soldados apontaram as armas para os seus inimigos. O comandante deu alguns passos à frente, também com a arma em riste.

Os quatro homens deram um passo para lado, deixando à mostra no chão uma colméia, aparentemente intacta.

— Foi tudo o que nos restou, bonecos de barro. O mel que alimentou aquele povo feliz. O mel doce como o maná dos Céus — enquanto isso, novos soldados iam chegando e cercando os mentores da insurreição derrotada.

— A doçura acabou, agora só restam as abelhas. E seus ferrões.

Um enxame começou a sair da colméia, formando uma espécie de nuvem cinzenta ao redor dos militares britânicos.

— FERRÕES AGUDOS COMO AS CHAMAS DO INFERNO.

As abelhas atacaram com um zumbido infernal. Os soldados gritavam, corriam e se debatiam.

O manto que cobria Matthew desmanchou-se como se feito de poeira, e suas formas cresceram. — A DOR SERÁ INSUPORTÁVEL — disse ele, com uma voz incrivelmente mais ressoante agora. Duas enormes asas negras mosqueadas cresceram em suas costas, e a escuridão das madeixas contrastando com os olhos brilhantes, que mantinham-se fixos no soldados que não sabiam para onde correr.

Tai fez uma espécie de careta horrenda, enquanto seu nariz adunco transformava-se dando origem a um bico de ave de rapina, e grande asas douradas brotavam de seus ombros. Garras afiadas e penas despontavam de seu novo corpo. — MAS VOCÊS NÃO MORRERÃO. NÃO AGORA — mais um espasmo muscular, e sua cabeça era agora com a de uma águia. Sua voz tornou-se um grito estridente que fez estourar os tímpanos de muitos dos homens.

Lucas Vrishabha bateu no chão com os pés, que agora inchavam, transformando-se em patas de boi, os dedos sofrendo uma metamorfose indescritível e convertendo-se em cascos fendidos. A cabeçorra deformava-se, ganhando dois enormes chifres em forma de crescente. — VOCÊS DEVEM VIVER, POIS SÓ OS RESPONSÁVEIS POR ESTE HEDIONDO MASSACRE DE INOCENTES É QUE SE LEMBRARÃO DISTO. POR TODO O RESTO DA SUA DESPREZÍVEL VIDA, VOCÊS SE RECORDARÃO DO CHORO E DA AGONIA — sua cabeça era agora era como a de um imponente touro ou búfalo, e seu corpo titânico estava coberto de pêlos curtos, brancos como a Lua Cheia. Seu brado de dor foi um mugido que fez a terra tremer.

Assad caminhou lentamente em meio as hordas de abelhas ferozes, sem nada sentir. À medida que caminhava, as pegadas gravadas na terra mole mudavam de formato, passando de pés humanos para enormes patas leoninas. Se cabelo tornava-se mais denso ainda, formando uma juba escarlate ao redor de sua cabeça. — NÓS TENTAMOS MOSTRAR-LHES O CAMINHO DO PARAÍSO, MAS VIMOS QUE A ESTIRPE DEGENERADA DE ADAM NÃO É DIGNA DE HERDAR ESTE MUNDO BELO — grandes asas cor de fogo cresciam em seu dorso arqueado, e grandes garras retráteis projetavam-se de seus dedos curtos. Caninos salientes estavam à mostra, e seu rugido ecoou pelos vales e montanhas como um trovão retumbante.

Enquanto os militares corriam enlouquecidos pelo terreno devastado, tropeçando em cadáveres, caindo em poças fétidas, com os insetos infernais atacando-lhes sem clemência, os quatro sábios revelavam-se agora em sua verdadeira forma: quatro anjos Beni Elohim, pairando sobre a paisagem nefasta — NÃO HAVERÁ PERDÃO PARA TAMANHA IGNOMÍNIA, CORJA ADAMITA. QUANDO CHEGAREM AO INFERNO, SAMAEL ESTARÁ À SUA ESPERA. As asas de penas reluzentes agora encarquilhavam-se e desfaziam-se, deixando como resultados enormes asas de couro escuro como as de um morcego colossal. A carne celestial parecia queimar e moldar-se sob o efeitos de chamas tartáreas. Os semblantes agora pareciam com os de hórridos símios disformes, batendo suas asas demoníacas contra o vento. — CRIAREMOS UMA NOVA RAÇA PRIMAL PARA REPOVOAR ADAMAH E SOBREPUJAR A RAÇA HUMANA. E QUANDO A DEGENERADA HUMANIDADE CHEGAR AO FIM... NOSSA PROLE REINARÁ, SUPREMA EM UM PARAÍSO RENASCIDO.

* * *

Manchester, Reino Unido, 12 de dezembro de 1956. Morre Ronald Creeks, aos 78 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Dallas, Estados Unidos, 2 de maio de 1966. Morre Herbert Brighte, aos 81 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Ottawa, Canadá, 11 de março de 1971. Morre James Alexius Bornsey, aos 71 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Londres, Reino Unido, 10 de julho de 1972. Morre Michael Aldous Forster, aos 87 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Pretória, África do Sul, 7 de junho de 1978. Morre William Anthony Well, aos 86 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Pretória, África do Sul, 18 de fevereiro de 1982. Morre Maximilian Peter Well, aos 94 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Em todas estas mortes, algo em comum: antes de dar o último suspiro, eles foram vítimas de um súbito frenesi. Em delírio, diziam estar ouvindo um barulho ensurdecedor — que só eles ouviam, no entanto — como de milhões de abelhas zumbindo. Todos confessaram ter cometido o mais hediondo dos crimes, e imploraram por perdão. “Eu participei do Massacre de Dogo Ferdausi”, assim eles gritaram, mas ninguém entendeu o que diziam. Os livros de História jamais mencionaram tal fato, ficando a breve existência daquele pequeno paraíso oculta de todos.

Mas a lembrança do Pequeno Paraíso ainda assim persistiu, confinada às atormentadas mentes de seus algozes.

PARAÍSO PERDIDO foi escrito por Simões Lopes

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