terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Rebelião 100: Trilha Ancestral

ECOS DE PRAGA V

Mesmo à noite, os majestosos afrescos da Igreja de São Nicolau brilhavam, refletindo a luz mortiça que iluminava o interior. Uma pequena e quase despercebida janela lateral deixava passar um fino raio de luar que incidia diretamente sobre a silhueta encapuzada do homem esquálido que estava parado junto ao altar. Dois sacristãos passavam apressados, carregando vasilhames com apetrechos litúrgicos, enquanto uma faxineira de origem albanesa varria os corredores. O homem esguio apoiava-se em uma robusta bengala prateada, e seus olhos sempre fechados sugeriam que se tratava de um cego. Ele bateu duas vezes com o objeto no chão, deixando um leve estampido metálico ecoando pelos corredores da nave central. Sentou-se no banco mais próximo, e sem precisar se virar, disse com uma voz fina e estridente:

— Duas horas de atraso. Já estava pensando que minha proposta não fora levada em consideração — o tom exprimia uma certa irritação. Por trás, um visitante acabara de chegar furtivamente, protegido pelas sombras projetadas na parede lateral.

— Problemas corriqueiros de trânsito. Estou aqui conforme o nosso trato, mas antes, preciso conferir o objeto.

— Paciência, meu caro Magnus! Se você fez tudo conforme eu orientei, o presente será seu... fique tranquilo — havia uma leve ironia na voz aguda. Mas não duvide de minha honestidade. Sinto-me ofendido.

— Eu segui todas as instruções, inclusive fornecendo as informações que os monges precisavam. Gastei duas porções de elixir salamândrico para capturar os meri’im, e meus braços ainda estão doloridos pela luta. Minha rótula direita também está seriamente prejudicada, e acho que vou precisar desta bengala mais do que você.
— Este histrionismo infantil não cai bem em você, um descendente do notório Conde Ferdinand. Não estou aqui para ouvir gracejos, sinta-se feliz por suas rótulas ainda estarem no lugar. Janus Wagenher extirpou os próprios rins na esperança de obter um simples fluido de levitação. Eu vi com meus próprios olhos as chagas malcheirosas de Massimiana di Parma, que morreu leprosa no Monte Carmelo buscando por relíquias
que nem eram verdadeiras.

— Massimiana? Você a conheceu? Quantos anos você tem?

— Muitos. Mas não estou preocupado com números, estou aqui para fechar um negócio.

A luz crepuscular incidiu no rosto do velho, revelando uma pele pálida e de aparência oleosa. Pêlos pontudos e prateados emolduravam o queixo com uma barba comprida. À medida que falava. os fios tremulavam como se tivessem vida própria.
Magnus Mladota de Solopysky era um longínquo descendente do Conde Ferdinand de Solopysky, aquele quem as lendas familiares atribuíam ter sido arrebatado pelo Demônio após um pacto malsucedido, e dedicara sua vida inteira a um resgate das supostas tradições sobrenaturais da família. Ao contrário da maioria dos bruxos quiméricos, que dedicam-se com afinco na compreensão do sobrenatural, acumulando conhecimentos e instrumentos de toda origem, seja ela celeste, infernal ou outra qualquer, Magnus tornou-se fascinado pela manipulação de poderes demoníacos. Sem qualquer pudor ou freio moral, conseguiu invocar as mais diversas espécies de demônios e através delas aumentar seus recursos místicos. De tanto buscar novos contatos, o descendente do conde acabou por descobrir aquele misterioso ancião num beco em Malá Strana. Prometendo uma dádiva há muito procurada, o Amuleto Kelley, o velho pediu em troca apenas sete espécimes de demônios capturados. Para isso, Magnus precisava encontrar-se com o negociante em sete igrejas diferentes, e em cada uma delas entregar um frasco contendo uma mistura de vinho, azeite, água benta e seu próprio sangue. Dois encontros anteriores já haviam ocorrido nas igrejas de São João Nepomuceno e de São Clemente, sempre seguindo o mesmo estranho ritual.

Magnus sentiu-se um pouco zonzo. “Consequência da perda de sangue”, pensou ele, enquanto revirava os bolsos do casaco pesado de lã. Puxou um pequeno cilindro de vidro fosco, envolvido por anéis metálicos de cobre. A tampa, também de cobre, trazia marcas azuladas de oxidação, e tinha entalhada quatro letras hebraicas entalhadas. Quando ele balançou o frasco, ouviu-se um silvo bem agudo, e um som estranho demais para ser definido. O velho arrebatou o frasco com impaciência e olhou-o contra a luz, tomando cuidado para não chamara a atenção das poucas pessoas que circulavam pela Igreja.

Ele sorriu pela primeira vez, expondo os dentes grandes e enegrecidos. Fixou os olhos no vidro escuro, como se pudesse enxergar através das paredes opacas.

— Perfeito — disse ele, satisfeito com o presente. Só restam mais quatro encontros, até lá.

— Espere. Não quero sair daqui de mãos vazias — Magnus reforçou sua frase retomando o frasco com violência. E se você não cumprir sua parte?

O velho franziu o cenho, e pela primeira vez abriu um dos olhos, inteiramente negro, como se fosse uma gema de ônix. Magnus sentiu um arrepio incontrolável de frio. Uma névoa gélida parecia emanar dos lábios do estranho homem, à medida que ele falava:

— Eu cumprirei minha parte, e tudo o que você tem é a minha palavra. Nada mais. Espere até o fim do ritual, e quando eu tiver meu sétimo demônio, na sétima igreja, você terá as respostas sobre o amuleto.

O frio tornou-se tão intenso que Magnus teve dificuldade em controlar os braços. O vidro escorregou de suas mãos, tão gelado que parecia queimar ao toque. O velho pegou o frasco com os dedos longos, e fez um leve afago nos ombro do bruxo.

— Nos vemos daqui a sete dias, no mesmo horário, na Capela de Belém.

Ele ergueu-se, batendo a pesada bengala contra o chão. Aproximando-se do ouvido de Magnus, que ainda tremia de frio, disse com um tom estranhamente cordial:

— Não sinta-se mal, meu amigo. Como sinal de minha gratidão, deixe-me pronunciar meu nome: MEFISTÓFELES — sussurrou, e Magnus sentiu a sensação glacial estancar subitamente. — Aceite isso como uma espécie de brinde, já que não são muitos os que conhecem meu nome.

Enquanto Mefistófeles, o ancião misterioso, desaparecia pela porta principal da Igreja de São Nicolau, Magnus de Solopysky, tentava se recompor. Tinha que se preparar para o próximo encontro, e o tempo era curto. Esfregou o dedo mínimo, revelando uma tatuagem minúscula na polpa do dedo. As linhas marcadas em vermelho-arroxeado formavam uma espiral de traços delicados, conhecida nos compêndios quiméricos como Espiral de Noviomagus. Estes mesmos compêndios, que acusavam a origem pré-céltica do glifo, ensinavam a sua utilização na detecção de forças do Outro Mundo. O bruxo olhou com atenção para o dedo, e viu que as pontas da espiral carmim estavam agora com um tom levemente amarelado. A mudança de cor comprovada a essência inumana de Mefistófeles, e Magnus sentiu-se tomado por uma vaidade indescritível, orgulhoso em seguir os passos de seu ancestral de séculos atrás. Fez o sinal da cruz, num sinal de devoção que os paroquianos jamais saberiam que era inteiramente falso, e deixou a igreja em passos rápidos. Cada vez mais ele aprofundava-se em seus conhecimentos arcanos, e ampliava seu controle sobre fontes de poderes infernais. Precisava voltar o mais rápido possível para casa, a fim de preparar mais armadilhas alquímicas para diabretes do Limbo. O próximo meri’im capturado precisava ser ainda mais poderoso que os anteriores. O Príncipe das Trevas era exigente.

Enquanto isso, longe de qualquer presença humana, o sinistro Mefistófeles esgueirava-se por uma viela escura e abandonada, às beiras de um barranco íngreme, onde jaziam as ruínas enterradas de um antigo templo, há muito destruído. O velho passou as unhas nas tiras de cobre velho, fazendo-as brilhar num clarão azulado intenso e rápido, dissolvendo-as à medida que pronunciava frases que nenhum ouvido humano seria capaz de traduzir. Com um golpe seco contra o muro, o frasco foi quebrado, revelando uma criaturinha abjeta que se contorcia e deixava uma gosma borbulhante nos líquido que escorria do vidro. Cinco olhos reptilianos vasculharam rapidamente todas as direções, no topo de pendúculos carnosos que ligavam-se a uma cabeça peluda, vagamente assemelhada à de um macaco em miniatura. Tentáculos rosados cercavam um corpo de lagosta, e quatro asas prateadas batiam sofregamente, ainda pegajosas com a mistura alquímica de vinho, sangue e azeite. Como se sentisse a presença de Mefistófeles, ela tentou um salto para longe, mas o velho agarrou-a em plena tentativa de vôo. Apertando o demônio com as mãos ossudas, ele olhou aquela massa disforme, e bafejou uma fumaça gélida nas asas membranosas.

— ASPEKALNAKES — disse ele com o tom professoral de um cientista estudando uma espécie de animal desconhecida. — Um meri’im de pequena grandeza, mas ainda assim com qualidades intrinsecamente únicas.

O velho abriu a bocarra, expondo os dentes negros e pontudos, e arrancou uma das asas com um puxão rápido. Aspekalnakes, o demônio, soltou um ruído estridente, parecendo ora como o borbulhar de uma panela de água fervente, ora como o miado de um filhote de gato. A boca simiesca cuspiu um jato avermelhado de ácido, que congelou em contato com a aura fria que emanava de Mefistófeles, adquirindo o formato bizarro de um galho ramificado, fino e de brilho oleoso, logo se pulverizando. O monstrinho pareceu inchar, crescendo até aparentar o tamanho de uma ratazana. Soltou mais um grito, uma horrenda mistura de mugido e gargalhada, antes de sentir seu ventre perfurado pela unha comprida do velho, que num movimento rápido demais para ser entendido, devorou a cabeça do meri’im, e envolveu-o mais uma vez com um bafo congelante, para impedir que a mutilação do corpo físico provocasse o seu desaparecimento. Com os dentes afiados, arrancava grandes nacos de ectoplasma carnoso, sempre recitando a sua estranha ladainha. Em poucos segundos, o demônio estava devorado, e os grandes olhos negros de Mefistófeles se abriram, mostrando pontos de luz que reluziam como estrelas no fundo negro que parecia preencher o âmago daquela estranha entidade inumana.

A atmosfera do beco ficou subitamente ainda mais fria, e Mefistófeles sentiu que as linhas energéticas invisíveis que atravessavam o éter ficaram subitamente supersaturadas. Reconhecendo o sinal característico de sua espécie, ele fixou os olhos num trecho do muro onde um filete de gelo parecia começar a se acumular. A umidade congelava-se rapidamente em uma reação em cadeia que acabou por delinear uma silhueta vagamente humana. No meio da bruma, materializou-se outro ser parecido com Mefistófeles, mas de traços nitidamente distintos. Era mais baixo, bem mais magro, com o andar bem curvado. Sua barba acabava em um ponta dupla.

Irmão Mothardis, que Ratsiel esteja conosco— saudou Mefistófeles o seu parente.

Irmão Mefistófeles, que assim seja — respondeu o assim denominado Mothardus, em um idioma inaudível para ouvidos humanos. — Desejo sucesso a teus planos.

Com a graça do Bom Ratsiel, o Adamita prossegue cada vez mais enredado em minhas urdiduras.

Sinto impurezas em tua aura, Irmão­ – disse em tom de alerta. Mefistófeles não se demonstrou abalado: — O descendente do Conde Ferdinand é engenhoso, e tentou surpreender-me com simulacros de magia noviomagiana. Um desconforto facilmente reversível. Ele sabe meu nome, mas não sabe que em EU SOU.

É fundamental que nossa trama prossiga incógnita, Irmão Mefistófeles­ ­— Mothardus alertou. À medida que a conversa prosseguia, as duas criaturas começaram a se dissolver nas sombras que cobriam o caminho abandonado.

Ela pensa estar negociando com um dos príncipes caídos do Sheol — a palavra foi realçada com um tom de asco pungente — e nem desconfia ser um títere nas mãos de um Celícola. Neste momento, um gato preto arisco atravessava o muro com pressa, na ânsia de perseguir uma gorda ratazana. Mothardus e Mefistófeles continuavam ali, mas num estado fantasmagórico, sua presença indetectável para qualquer mortal. Uma coruja sobrevoou a viela, não sentindo nada além de uma pontada quase imperceptível de frio.Quando o sol nascesse, dentro de um par de horas, os dois nadais não estariam mais ali.


ECOS DE PRAGA V: TRILHA ANCESTRAL foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.


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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Rebelião 99: Alpha Scorpii


ECOS DE PRAGA IV

Manfred von Burgund, o famoso magnata alemão, proprietário da Financeira Alpha Scorpii, está desaparecido há cerca de um mês, e nenhuma das polícias européias envolvidas no caso tem a menor pista sobre seu paradeiro. Wanda Kerlik, a top model polonesa que fora a última de extensa lista de namoradas do empresário, estava numa profunda crise de depressão, e dizia que achava que seu amado estava morto. Karl Wolfsgruber, o vice-presidente da Alpha Scorpii, quando perguntado sobre o futuro da financeira, garantiu que os negócios continuavam com o mesmo sucesso de sempre, e que não descansaria enquanto não descobrisse o que acontecera com o patrão. Ao contrário de Wanda, fazia questão de negar qualquer suspeita de assassinato.

Quando apareceu mais uma vez a chamada do telejornal para uma reportagem sobre o sumiço de Manfred após os comerciais, Bovidiska desligou o aparelho com raiva. Levantou-se de sua confortável cadeira forrada com veludo cor de vinho, e foi até o frigobar para pegar uma garrafinha de vodka. Não pôde deixar de sentir um certo desprezo pela ignorância de todos, ainda que a esquálida modelo polonesa não deixasse de ter razão em seu palpite.

Manfred estava morto. Assassinado. E jamais encontrariam seu cadáver.

Bovidiska Lenojvk, dono do Albergue U Raka, era um Nefilim, e como Manfred von Burgund, era um Precursor. Ele sabia que Manfred havia sido vítima de uma emboscada, e tinha sido eliminado. Assim que morrera, com certeza — como todo Híbrido — seu corpo-alma inumano deve ter se consumido numa labareda quintessencial de energia sutil, sem deixar nenhuma molécula sequer como vestígio. Malika Zaila, o Guerrilheiro moçambicano, tinha informações seguras sobre o ataque a Manfred, ainda que não soubesse precisar contra quem o Precursor lutara. Um grupo seleto de Guerrilheiros sensitivos tinha vasculhado o lugar onde ocorrera o confronto, e captara fragmentos pós-cognitivos que confirmaram o assassinato, mas que estranhamente não permitiram identificar os agressores. Malika confidenciara com seu amigo particular Lenojvk que também estranhava o fato de alguém intencionalmente buscar o extermínio de um Nefilim, já que tanto as hostes celestes como as infernais sempre buscavam evitar a destruição dos Filhos da Segunda Rebelião, dedicando-se mais a missões de captura, manipulação ou cooptação. O dono do albergue concordava com a análise do Guerrilheiro, e desconfiava de que os inimigos fossem humanos sem vínculos com o Sheol ou o Shamaim.

A Financeira Alpha Scorpii, uma poderosa instituição fundada por Von Burgund há doze anos atrás, movimentava bilhões de eurodólares através de uma rede de filiais espalhadas pelos quatro cantos do mundo, e além disso possuía tentáculos ocultos envolvidos com diversas atividades ilegais, o que provavelmente duplicava ou triplicava seu lucro “oficial”. Sem dúvida haveriam inimigos e rivais, mas Bovidiska duvidava que qualquer competidor humano fosse páreo para os dotes de alguém como Manfred. Não havia forma de banditismo, por mais cruel que fosse, que não pudesse ser repelida ou contra-atacada pela rede de comparsas subterrâneos da Alpha Scorpii. Seria preciso que os assassinos dos Precursores dispusessem de alguma arma “especial”.

Bovidiska estava temeroso que este misterioso inimigo tivesse acesso a outras informações privilegiadas sobre os Nefilim, e que o Albergue U Raka fosse um dos alvos. Era preciso identificar o mais rápido possível quem era o oponente, e de que armas dispunha. Foi até o quarto onde Malika ficava, mas este não estava no albergue. Pensou em contatar outros de seus amigos, mas foi interrompido pelo barulho da campainha. Quando desceu as escadas que levavam ao amplo salão de entrada, viu Anina, a recepcionista, recebendo um envelope de cor escura. Um jovem courier, de cabelos vermelhos arrepiados, estava guardando uma espécie de recibo, e voltando para sua moto estacionada na calçada. A chuva que castigara a cidade de Praga durante a manhã inteira alagara diversos pontos da rua, e as botas elameadas do motoqueiro deixaram grandes marcas no tapete da entrada.

— Carta para o senhor! — avisou Anina, uma imigrante russa que trabalhava no Albergue desde o ano passado. Ela era humana, e não sabia nada sobre a real natureza de seu patrão.

Bovidiska agradeceu à funcionária e levou o envelope contra a luz. Um timbre vistoso de cor dourada e vermelha trazia a logomarca da Alpha Scorpii Financeira. Imediatamente aguçou seus sentidos paranormais, como se buscasse por algum conteúdo perigoso naquele envelope. Rompendo o lacre, puxou uma folha de papel fino, com uma sequência de letras impressas por alguma máquina de fax:

FILHO DAS ESTRELAS VERTEU LÁGRIMAS DE SANGUE.

A expressão “Filho das Estrelas” apavorou Bovidiska, que percebeu que o remetente sabia que Manfred era o filho de um Anjo Ofanim. O restante da frase não era tão claro: podia indicar que o Precursor fora torturado ou morto. Qual seria a importância das lágrimas? Alguém de dentro da empresa teria enviado a carta?

O dono do albergue trancou-se no próprio escritório e pôs a analisar a carta. Seria possível captar algum fragmento sensorial em sua textura? Não identificava nenhum indício de alguma magia ofensiva nela, e pensou em submetê-la a um ritual de purificação a fim de expurgar qualquer ameaça. Sua intenção era rastrear o remetente através das impressões no papel. Já vira Alfeus Tumak, o Primal, seu antigo parceiro de Congregação, realizar algumas proezas memoráveis de rastreamento. Precisava encontrá-lo, mas como ele não tinha residência fixa, não seria uma tarefa fácil. Era hora de pôr todos os seus informantes em ação, e usar todas as ferramentas que dispunha.

Quando Anina bateu na porta de seu chefe para chamá-lo para o jantar, encontrou o escritório trancado, e com as luzes apagadas. Em cima da mesinha no corredor, um bilhete dizia:

VIAGEM DE NEGÓCIOS. NÃO DORMIREI EM CASA. ANINA, CUIDE DO ALBERGUE.

A funcionária russa praguejou em seu idioma natal, chateada por não ter sido avisada. Esperava visitar o namorado naquela noite, mas planos tinha ido por água abaixo. Atravessou o salão com cara de poucos amigos, enquanto que alguns dos hóspedes rumavam lentamente para o refeitório. Ao passar pela porta de entrada, lembrou-se que o entregador deixara marcas de lama no carpete, e viu-se obrigada a se deslocar até o terceiro andar para chamar Belko, o faxineiro. O Sr. Lenojvk exigia que todos os cômodos estivessem sempre impecavelmente limpos. O salário era baixo, mas era o único emprego que Anina Davduk havia conseguido, e ela só contava com ele para sustentar seu filhinho asmático de dois anos.

Com todos os hóspedes jantando, o salão mergulhou no mais profundo silêncio. Longe de qualquer olhar atento, as manchas de barro no tapete de cerdas começaram a borbulhar, como se ganhassem vida. Rastejando como uma criatura primordial, a massa disforme de lama dirigiu-se na direção do escritório, sorrateiramente. Literalmente, foi escorrendo para baixo da porta, mas teve que estancar imediatamente, como se topasse com um obstáculo invisível. Bovidiska Lenojvk jamais fora um homem incauto, e com certeza, tomara todas as precauções para se proteger de possíveis ameaças. Seus aposentos estavam selados misticamente por um ritual defensivo. A mancha amebóide de lodo sentiu-se repelida por uma força invisível, e tentou recuar para algum refúgio na escuridão. À medida que fugia da aura de proteção que cercava o escritório, sua estrutura foi se dissolvendo, ressecando até deixar um círculo empoeirado no chão do corredor. Quando deixara o albergue, Bovidiska nada sabia sobre seus inimigos misteriosos. Mas quando retornasse, seu sistema de defesas etéreas iria acusar a presença dos restos do minúsculo invasor. E com isso, o manto de invisibilidade que ocultava seus inimigos começaria a se desmanchar.

Manfred seria vingado.

ECOS DE PRAGA IV: ALPHA SCORPII foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.


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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Rebelião 98: Cinza e Azul


ECOS DE PRAGA III

Quando entrou na LAN House Khaos 99, Václava chegou a pensar que o sistema de calefação estava desligado, tamanho o frio que ali fazia. A luz mortiça envolvia tudo em uma penumbra ligeiramente azulada. Num salão que parecia vazio, dois adolescentes obesos com aspecto nerd pareciam mergulhados em um transe hipnótico. Se não fosse o nervoso piscar de olhos, ela podia jurar que os garotos estavam congelados. A silhueta esguia de Vladmir Palovek, o único funcionário da loja, podia ser vista por detrás do grosso vidro fumê que escondia o mezzanino. A altura, a magreza e a postura exageradamente curvada fizeram Václava lembrar-se de um louva-a-deus. Contendo o riso, dirigiu seus olhos para o lado oposto da sala, onde identificou a figura inconfundível de Kamila Fric, a atual proprietária da Khaos 99. Enormes alargadores perfuravam seus lóbulos, um azul e outro verde, combinando com a cor de suas longas unhas e de das mechas de cabelos tingidas e empasteladas de gel brilhoso. Um decote generoso expunha o volume generoso dos seios tatuados com linhas negras imitando arame farpado. Os ombros nus mostravam tatuagens da “Noiva de Frankenstein” em poses sensuais, enquanto as costas da mão esquerda ostentavam um enorme ENDZEIT — fim dos tempos, em alemão — gravado em caligrafia gótica. Na outra mão, havia outra palavra tatuada, mas Václava não se interessou em ler.

O contraste entre ambas não podia ser maior, ao contrário da exuberância de Kamila, Václava vestia uma roupa cinza-escura discreta, e os cabelos negros encaracolados sem brilho estavam cobertos por um gorro surrado de lã azul. Os olhos tristonhos castanhos vasculharam um bloquinho de anotações tirado do bolso do casaco em busca de algo importante. Antes que ela abrisse a boca, Kamila adiantou-se:

— Václava. Eu me lembro de você na Praça Velha. Pode chegar...

A moça de casaco cinzento e jeito tímido sentou-se ao lado da mulher tatuada, que operava um computador no fundo da sala, longe dos olhares vorazes dos nerds do outro lado.

— Estou aqui para fechar o trato. Eu...minha...eu representou alguém que... — as palavras saíam com dificuldade.

Kamilla limitou-se a apontar para a tela do computador, e abri um aplicativo de texto, onde digitou o que parecia ser um início de conversação:

ELIŠKA MANDOU VOCÊ AQUI. EU A CONHEÇO DE LONGA DATA. IMPORTA-SE DE EU RESPONDER ASSIM, POR PRECAUÇÃO?

Václava limitou-se a acenar positivamente com cabeça. Ela mostrou uma folha arrancada de seu bloco, onde havia o desenho de um estranho símbolo místico. Os dedos de Kamila correram pelo teclado, em resposta:

ENOQUIANO OU ALGUM ALFABETO CORRELATO. UM DOS SÍMBOLOS QUE DO ESPELHO DE JOHN DEE.

Václava aproveitou o mesmo teclado e digitou a resposta imediatamente:

ELIŠKA SABE ONDE O ESPELHO DOS QUATRO ELEMENTOS ESTá E QUER FAZER UMA TROCA.

Kamila franziu a testa e torceu o nariz. A mulher de cabelos vermelhos que passava boa parte de sua vida na LAN House era uma nefilim da Linhagem dos Guerrilheiros. Desdenhando da informação, respondeu secamente:

FICA NA CAPELA DOS ESPELHOS. EU SEI.

A outra mulher replicou:

AQUELE ESPELHO É FALSO. O VERDADEIRO ESTÁ BEM LONGE.

Kamila olhou fixamente nos olhos de Václava. Estava usando seus poderes para detectar mentiras. A serva de Eliška estava dizendo a verdade, ou pelo menos acreditava piamente estar dizendo a verdade. Não custava testar.

O QUE ELA QUER DE MIM? — digitou, apagando em seguida.

Václava pensou um pouco antes de responder:

AJUDA PARA COMBATER UM INIMIGO EM COMUM.

Kamila limitou-se a acenar, instando Václava a prosseguir.

VÍBORA PUSTULENTA, A SHEILIM, ACHOU UMA CRIANÇA HÍBRIDA NUM ACAMPAMENTO CIGANO. OS LACAIOS DELA ACHARAM O ESPELHO LEGÍTIMO.

Kamila abriu um sorriso. Václava digitou mais uma frase:

TRAGA-NOS O ESPELHO EM TROCA E NÓS INDICAREMOS O PARADEIRO DA CRIANÇA NEFILIM.

A Guerrilheira refletiu sobre o trato. Sua resposta tinha uma pontinha de ironia:

PORQUE NEGOCIAR COM UMA QUIMÉRICA? QUE GARANTIA EU TENHO DE QUE ELA VAI CUMPRIR SUA PARTE?

A resposta de Václava veio em voz alta:

— Você não tem escolha. Basta aceitar ou negar. Sabemos que você não recusaria um desafio tão tentador. Ou será que você está com medo? Kamila Fric é uma medrosa?

A Guerrilheira bufou de irritação. Inesperadamente, tascou um beijo na boca da emissária de Eliška, que recuou com um ar de nojo. Um dos garotos, que olhava a cena de soslaio, soltou um risinho libidinoso.

— Ofendida? – A garota tatuada abriu um sorriso de satisfação.

— É...isso..não... — Václava procurava as palavras, mas não as encontrava.

— Considere o beijo como um sim à sua proposta. Não pense que tenho algum interesse em você. Fui lésbica nos anos 90, mas enjoei, e agora prefiro algo do tipo hétero, entende? E mesmo que voltasse a gostar de mulheres, você não faz meu tipo.

Václava continuou balbuciando, sem conseguir falar algo.

Game over, baby, se manda! Diga à sua mestra que eu topo o desafio.

A serviçal quimérica saiu apressadamente da LAN House, enterrando o gorro felpudo na cabeça assim que sentiu a lufada gelada de vento nas orelhas levemente pontudas. Puxando um lenço do bolso, limpou a boca esfregando com tanta força que quase arranhou os lábios. Václava recolheu o lenço com cuidado guardando-o num saquinho plástico lacrado que sempre trazia consigo. Mais do que o beijo em si, o que mais lhe causara ojeriza fora o contato com a aberração cósmica que aquela nefilim simbolizava. Os bruxos quiméricos como ela e sua misteriosa mestra Eliška entregavam com uma devoção quase sacerdotal ao estudo dos mistérios do Universo, especialmente aqueles que ultrapassavam todos os limites estabelecidos pela Ciência ordinária. Os quiméricos eram os maiores conhecedores dos segredos mais sombrios da Criação, e nem mesmo os mais sábios dentre eles jamais haviam conseguido encontrar uma hipótese plausível para explicar a presença de seres híbridos caminhando por Adamah, e nem conseguiam entender se seus progenitores eram anjos do Sheol ou do Shamaim. Não eram seus dotes sobrenaturais que provocavam o sentimento de extrema repugnância nos quimérios, mas sim o fato de que sua real natureza não podia ser compreendida ou explicada. Enquanto Václava retornava para o esconderijo de sua senhora, sentia o lenço como uma espécie de trófeu. Nele estavam restos de saliva e de suor, — e com alguma sorte, preciosas células mortas de pele — de uma nefilim, um precioso — e inesperado — espólio a ser analisado e testado minuciosamente. Seus vastos conhecimentos em alquimia lhe seriam de grande valia, e ela esperava fazer algumas descobertas sobre as propriedades bioquímicas daquela criaturas.

Enquanto a mulher de casaco cinzento desaparecia na multidão que embarcava no trem, bem longe, a três quarteirões de distância, a Guerrilheira penteava as próprias mechas coloridas, e pensava nas consequências da inesperada aliança com os quiméricos de Eliška. Sabia dos riscos que corria, mas não podia permitir que aquela criança cigana, sua pequena “irmã”, caíssem nas garras dos inimigos dos Filhos da Segunda Rebelião. Só aceitara o trato, porque sabia — através de outras fontes de informação — que tal criança realmente existia, e que seu nome era Habriela. Ao beijar a quimérica, ela deixara em sua pele uma marca que poderia ser rastreada e detectada a distância, o que permitiria acompanhar os passos dos bruxos mesmo à distância. Kamila lembrou-se de contatar Benita Vernes, a Escriba, para verificar se esse Manifesto recém-manifestado era algo inédito ou já era algum dom catalogado pelos Escribas. Mas isso devia ser deixado para depois. No momento, sua real preocupação eram os dois clientes da loja que insistiam em não sair da loja. Kamila mandou Palovek comunicar aos dois nerds preguiçosos que o horário de funcionamento estava encerrado. Já acostumados com o tom de voz exageradamente arrastada do funcionário, os garotos insistiriam em uma prorrogação do prazo. Para mostrar que qualquer resistência seria inútil, Kamila simplesmente desconectou os cabos de rede. Um dos meninos tentou reclamar, mas a imponência dos 1,85m da dona da loja, associada a um tom de voz convicto e uma fisionomia furiosa, fez com que eles acabassem convencidos a se retirar.

Livre de seus inoportunos clientes, Kamila dispensou seu funcionário e foi para o seu escritório pessoal, para planejar suas futuras ações frente aos perigos que se anunciavam.

Enquanto as luzes azuis de neon do letreiro da Khaos 99 acabavam de ser desligadas, alheios ao frio congelante que afligia os transeuntes da rua, os adolescentes limitaram-se a um breve diálogo.

— A Nefilim não percebeu nada.

— Johana estava certa.

— Como sempre.

ECOS DE PRAGA III: CINZA E AZUL foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Rebelião 97: A Gema do Capricórnio


ECOS DE PRAGA II

Poucos são os frequentadores do Mosteiro de Strahov que conhecem aquele túnel estreito e comprido que se parece avançar rumo às profundezas da Terra. Dois vultos caminhavam devagar, os pés calcando no piso de rocha escura e coberta de limo. Um monge magro, de cabelos ralos e barba alourada, conduzia a outra pessoa através da densa escuridão, carregando um bastão luminoso que emana uma luz fria verde-azulada. O vulto esguio que o acompanhava, coberto por um manto branco com capuz, não trazia boas notícias para os moradores daquele mosteiro.

Aquele que os mendigos e necessitados das sarjetas de Praga conheciam simplesmente como o Irmão Pavel, agora apresentava-se como Pavel de Tharsus, o mais velho dos doze Cavaleiros da Cruz Resplandecente que residiam incógnitos entre as paredes do Mosteiro de Strahov, na capital da República Tcheca.

Quando a exaustiva descida parecia ter chegado a seu fim, um cômodo simples, de assoalhado de madeira, e onde uma pequena imagem sacra dos Reis Magos apoiava-se em uma coluna de ferro enegrecido. Assim que adentrou o recinto, Pavel fez o sinal da cruz, ajoelhou-se e trouxe o bastão junto ao peito, provocando um intenso clarão. À medida que a luz esmaecia, os contornos objetos moldavam-se plasticamente até se reduzirem a um grosso bracelete com aparência metálica que ele enfiou no pulso e escondeu sob as grossas mangas da túnica. Enquanto ele parecia conduzir este estranho ritual, seu acompanhante desceu as dobras do capuz, expondo um rosto feminino de longos cabelos ruivos e grandes olhos tão negros quanto a gema que carregava pendurada em um colar.

A mulher, que no território mundano dos homens era apenas Jolana Rozinova, voluntária em uma pequena igreja na parte leste da cidade de Bratislava, aqui era Jolana de Pathmos, uma das mais renomadas integrantes da Ordem da Cruz Resplandecente, como seu colega Pavel de Tharsus. Jolana nascera há cinquenta anos atrás na então Tchecoslováquia, mas ainda conservava praticamente a mesma beleza de sua juventude. A beleza daqueles olhos negros, terrível para as hordas de lacaios do Inferno, só encontrava rival em sua faiscante arma mística, a Gema Negra da Fênix. Jolana chegara naquela noite da Eslováquia para trazer mensagens preocupantes a seus irmãos de fé em Strahov.

Boatos circulavam pelas bocas mais sujas do submundo, contando histórias de monstros rastejando pelas docas no rio Vltava, de filhos de anjos caídos e de prodígios celestes e terrenos. A mais sombria indicava que o abjeto Antony Rothschild, monarca sem coroa de uma vasta legião de criminosos, assassinos e cafetões, estava de posse de objetos miraculosos, e incluía em sua vasta rede de contatos infames uma corja de satanistas e bruxos malditos, recém-chegados das terras geladas da Polônia e Rússia. Da distante terra ensolarada da Espanha chegavam notícias agourentas, anunciando a morte do virtuoso Estéban de Tartessos.

Quanto mais Jolana narrava os acontecimentos, mais contrito ficava Pavel em suas orações aos Santos Reis Magos. Era preciso avisar o Abade Ferdinand de Mênfis, o mais velho dentre os cavaleiros do mosteiro, e aguardar pelas suas ordens. Pavel escoltou Jolana até a saída, concentrado em proteger aquela passagem secreta que se escondia atrás da dispensa vazia da velha cozinha abandonada. Ao contrário de outras Ordens celestes, a Cruz Resplandecente possuía muitas mulheres em suas fileiras, e nem todas precisavam dissimular-se de freiras ou monjas. Jolana escondia-se sob a anônima e quase invisível máscara de pacata voluntária em uma secretaria de igreja, mas à noite, livre dos grilhões sociais, era uma ativa combatente do Mal, e circulava incógnita sob mil disfarces pelos mais perversos recantos da cidade.

Pavel imediatamente tentou procurar pelo Abade Ferdinand, mas o frei Miroslav — um pacato ermitão antissocial que sequer desconfiava que aquele mosteiro era o esconderijo de guerreiros eclesiásticos — respondeu que o abade não era visto desde a noite de anteontem. O Irmão Pavel optou por sentar em um dos bancos do templo. Sua gema verde-azulada, a Pedra do Capricórnio, fonte de seu poder resplandecente, agora transmutada em um tosco bracelete de metal escuro, pulsava suavemente em contato com sua pele pálida. Ele tentou, com a máxima concentração, buscar um contato com seu mestre, mas foi em vão. As energias emanadas do cristal eram capazes de deste tipo de proeza sensorial, mas naquele momento, algo estava impedindo o contato. Talvez Ferdinand estivesse por demais distante, ou talvez Pavel estivesse muito cansado para conseguir o grau de focalização suficiente.

Derrotado pelo desânimo, o cavaleiro-monge de cabelos claros retornou ao seu humilde quarto, de cuja janela estreita era possível divisar as águas distantes do Rio Vltava. Quanto sentou em seu leito, sentiu um odor estranho, semelhante a ferrugem, com um leve toque de enxofre. Um calor intenso passou a emanar de seu bracelete e, de prontidão, olhou ao seu redor, percebendo que o vidro da janela estava rachado de cima a baixo, e que uma grande mancha escura borrava o canto da parede, espalhando pelo chão de tábuas largas. Seguindo o rastro de sujeira, descobriu um embrulho ensanguentado, junto à escrivaninha. Do bracelete agora pulsava uma luz bruxuleante, indicativo de que os fluxos de energia sutil no recinto estavam perturbados.

Cutucou o embrulho com cuidado, e antes de abri-lo, seu bracelete já se transmutara em uma longa adaga radiante. Envolvido nos panos ensanguentados, coberto de uma trilha de gosma amarelada, havia uma mão humana decepada. Em sua palma, gravada com profundas incisões podia-se ler em letras minúsculas: O ABADE VIVE. Virando-a, Pavel leu nas costas da mão: CATIVO E MUTILADO.

“Cativo e mutilado”, os pelos da nuca de Pavel se arrepiaram. Deixou que sua arma celeste vasculhasse os arredores com sua luz mística, não encontrando mais traço algum de presenças ocultas. Se algum inimigo esteve por ali, não estava mais presente. Para piorar a situação, a Gema do Capricórnio confirmara a identidade do braço ao ler sua aura residual. Pavel só tinha duas certezas: o invasor era alguém muito poderoso, capaz de desmembrar um Cavaleiro e de penetrar em seu santuário sem ser detectado; o invasor sabia onde os Cavaleiros residiam.

A guerra não estava começando, pois ela jamais terminou. Entretanto, o início de uma nova batalha já se anunciava.

ECOS DE PRAGA II: A GEMA DO CAPRICÓRNIO foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.

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terça-feira, 3 de novembro de 2009

REBELIÃO 96: Vitória ou Morte

ECOS DE PRAGA I

Sua presença no restaurante provocava um indisfarçável desconforto nos clientes. A enorme figura, de quase dois metros de altura, com os ombros larguíssimos cobertos por um casaco negro, e um chapéu da mesma cor realçava ainda mais seu porte imenso, passou silenciosamente por entre mesas e cadeiras, alheio aos olhares fugazes e comentários abafados.

Um homem jovem, de cabelos castanhos, comia avidamente um prato de carne de porco com molho de aspargos e purê de batatas. Os talheres cortavam grandes nacos de pernil que eram enfiados goela abaixo com uma pressa inexplicável. Ele percebeu que o rabino vinha em sua direção, e respondeu com uma saudação curta:

— Salve, rabino.

O homem de barbas de porte titânico nada falou, limitando-se a puxar a cadeira e sentar-se. Sua barba ainda era bem negra, apesar da idade avançada.

— Este porco está delicioso, mas lamento que sua religião o impeça de juntar-se a mim...

O rabino continuou sem esboçar nenhuma reação.

— Não se ofenda. Perdoe-me, mas estou faminto — deu mais uma garfada, enfiando mais uma fatia gordurosa pela boca. Tomou um gole de vinho tinto.

— Considere-se meu convidado, peça o que quiser — tentou um gesto amistoso, esperando agradar seu companheiro de mesa.

— Obrigado, Nepomuceno, mas isto não é uma visita festiva. A voz era tão rouca que mais parecia um trovão abafado.

— Mais um cemitério judaico foi violado, e a duas sinagogas em Brno foram incendiadas — disse ele, num esforço tremendo para que o tom fosse de um sussurro.

— Os neonazistas andam agitados ultimamente. Esta cidade está com muitas cabeças ocas circulando por aí, e temos muitos idiotas para preencher o espaço vazio com idéias simplórias — João Nepomuceno continuou sua refeição, alheio ao tom sombrio do rabino Joab. Encheu a colher com purê de batata.

— Kalaew está envolvido.

— Ele está morto, Joab. Os próprios nazireus de Viena me garantiram isso.

— O maldito sobreviveu, encontre-me amanhã na Sinagoga Pinkas, após o pôr do sol, e eu explicarei melhor.

O rabino Joab ben-Abraham ben-Saul levantou-se e deixou o restaurante em ritmo acelerado. João Nepomuceno conhecia o rabino há muito tempo, e sabia que aquele homem mantinha-se sempre muito bem informado.

Na tarde seguinte, quando o sol poente tingia as vidraças dos prédios de vermelho, um carro velho, mas de lataria impecavelmente branca, estacionava na viela lateral que margeava a Sinagoga Pinkas. Aquele veículo, que poderia ser considerado uma relíquia, remontava ao tempo das indústrias comunistas, e ainda rodava incólume ao tempo graças aos talentos em mecânica de seu dono.

João Nepomuceno fechou a porta do carro, e dirigiu-se à entrada principal da sinagoga, já quase totalmente coberta pela sombra do espigão vizinho. O atendente, um jovem rapaz de barbas ruivas encaracoladas, levou-o até os aposentos do Rabino Joab.

Após a quarta batida, o velho de barba escura abriu a porta, recebendo seu hóspede com seu ar taciturno característico.

— O Profanzeichen está agindo em toda a Europa Central. Kalaew retornou à República Tcheca, e virá atrás de nós.

— Seus confrades austríacos garantiram...

— Os Nazireus de Viena se enganaram! — o impacto do grito foi completado por um soco na mesa tão forte que a tábua de madeira reforçada rachou. — Absalon ben-Ludwig está morto. Josef ben-Caius está agonizante. Os aliados do nazista intervieram e salvaram o maldito.

João Nepomuceno limitou-se a fechar os olhos, como se entoasse uma prece silenciosa. Joab ben-Abraham interpretou a mudez como um sintoma de perplexidade, e preferiu traçar uma estratégia de ação.

— Devemos evitar o confronto direto com os soldados de Satã. Os redutos do Profanzeichen em Praga são bem conhecidos. Vamos buscar um refúgio seguro, e planejar a melhor defesa!

— NÃO.

O tom da voz do jovem guerreiro estava inteiramente modificado. Ele não parecia mais o rapaz descontraído do dia anterior. Seu olhar parecia vidrado, como se fitasse dimensões invisíveis além dos sentidos humanos.

— Devemos aguardar por eles. Eu sei que Kalaew virá atrás de mim.

— Você não pode enfrentá-lo sozinho!

— Talvez não possa. Mas não posso deixar que o medo me impeça de agir.

— Isto é uma sandice. Não posso permitir.

A mão pesada do Nazireu pousou sob o ombro de João, imobilizando-o com a força de um torno mecânico. Nepomuceno não esboçou nenhuma esquiva.

— Você pode ter vários séculos de vida, mas nem mesmo você pode enfrentar sozinho os ubermenschen!!!

Nepomuceno continuava imóvel, incapaz de se livrar do abraço sobre-humano do rabino. Joab ben-Abraham era um nazireu, cujo estilo de vida ascético e extremamente regrado garantia habilidades físicas sobrenaturais. Jamais cortara o cabelo, e mantinha uma dieta pontuada por diversas restrições. Era um legítimo continuador da linhagem de Sansão.

João, ao contrário, era um Triunfante, e o Rabino Joab pouco sabia sobre as origens daquele misterioso rapaz. Mas sabia que há quase oitenta anos atrás, quando era apenas uma criança, sua vida fora salva pelo mesmo João Nepomuceno, que mantinha as mesmas feições joviais de quase um século atrás. Nepomuceno abaixou a cabeça, e relaxou o corpo, capitulando diante da força irresistível do nazireu.

— Eu salvei sua vida, Joab, deixe-me ir, você me deve isso... — suplicou o Triunfante.

— Justamente em prol de nossa longa amizade é que eu não devo deixá-lo ir. Seria suicídio esperar pelas bestas-fera de Kalaew. Perdoe-me.

Os dedos nodosos do gigante envolveram o pescoço de João, pressionando-o para interromper o fluxo sanguíneo. O corpo do Triunfante relaxou, os braços pendendo inertes. Joab sustentou o corpo do amigo, com cuidado, e preparou-se para carregá-lo para o outro quarto, onde colocaria seus dois aprendizes, também nazireus, para vigiá-lo.

O súbito descuido foi o suficiente para que João Nepomuceno, despertando de seu fingido torpor, se desvencilhasse do abraço hercúleo, e com uma pirueta, abrisse caminho até a janela. Joab, igualmente dotado de uma agilidade sobrehumana, alcançou o amigo com um pulo, mas antes que pudesse agarrar com o Triunfante pelo calcanhar, sentiu-se a vista nublar-se, como se coberta por um véu. Os cacos minúsculos de vidro no assoalho indicavam que Nepomuceno lançara alguma cápsula no chão, libertando algum tipo de substância gasosa, inodora e incolor. Antes que o metabolismo imune do nazireu neutralizasse o efeito de cegueira, João Nepomuceno já fugia pela viela, em desabalada correria.

Já em seu carro, o Triunfante seguia para a mina de prata abandonada, em cujos túneis residia. Pressentia que os guerreiros demoníacos do Profanzeichen já conheciam seu paradeiro, e que não tardariam em encontrá-lo. Contava com a Sorte Divina para guiá-lo, e não havia bênção maior do que colecionar adversários invencíveis.

“Vitória ou Morte”, era o lema dos Triunfantes. João Nepomuceno era um soldado em uma guerra sem fim. Não lutava para garantir a própria segurança, mas sim para mantê-la eternamente sob risco.

Por seiscentos anos, ele foi feliz em viver sob este lema.

Por mais seiscentos ele lutará, se for preciso.


ECOS DE PRAGA I: VITÓRIA OU MORTE foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.

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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Rebelião 95: Dando Milho aos Pombos


Os pombos aglomeravam-se ao redor do sujeito vestido como um frade franciscano, rodopiando como se presos a uma hélice invisível. Os grãos de milho jogados no chão de cimento despareciam muitas vezes antes de tocar no solo. O som dos arrulhos era tão alto que sufocava até o barulho do alto-falante da pracinha que anunciava vendas na loja de móveis da cidadezinha.

Elísio Paulino, 27 anos, sergipano, tinha o topo da cabeça calva coberta por um penacho avermelhado de cabelos ralos, uma barba rala, e enormes dentes amarelados. Os olhos caídos, de cor de jerimum, chamavam a atenção dos passantes, pelo seu aspecto incomum. Alheio à chuva fina que começava a molhar a rua, continuava atirando punhados de grãos aos pássaros que esvoaçavam de alegria diante do banquete.

Um homem alto e magro se aproximava, e Elísio reconheceu o velho amigo de uma extinta Congregação na distante cidade do Recife. Leutério Jaguarana, o Venerável, com seu farto bigode e os longos cabelos negros e encaracolados que o tornavam inconfundível. Os enormes óculos escuros escondiam ajudavam a dissimular a verdadeira expressão do homem.

— Elísio, os Jórgios estão vindo em seu encalço. Rosilene está desaparecida, acho que pode ter sido capturada — as palavras eram cuspidas, quase sem pausa.

— A Congregação está terminada, Jaguarana, não tenho mais vínculos com vocês. Uma mistura de arroz e milho foi arremessada no chão, junto às raízes de um enorme jacarandá. As aves corrigiram seu vôo e se atiraram enlouquecidas atrás do jantar. A resposta de Elísio soou insuportavelmente gelada. Ele ainda completou, em tom de despedida:

— Sinto muito.

Leutério respirou fundo, pensando em algum trunfo na manga para dobrar a vontade férrea do Primal. Sabia que o amigo era teimoso como um jegue.

— Você não pode se defender sozinho, precisa de seus amigos por perto.

— Eu não tenho amigos.

Leutério cuspiu no chão, num tom de irritação. Chegou a pensar em arrastar Elísio pelos braços, mas sabe que não conseguiria. Resolveu optar por uma estratégia mais sutil.

— Nós estaremos por perto, amigo. Vou chamar Cenira e Mattione, e...

— CHEGA! — os pombos voaram para bem longe ao ouvir o grito que reverberou pela praça quase deserta. O sol já começava a se pôr no horizonte, fazendo com que os dois Nefilim mergulhassem na sombra projetada pela torre única da igreja.

Eu posso sentir seus pensamentos, Jaguarana, eu consigo captar seus planos de ficar rondando e esperar que outros venham aqui fazer o mesmo”, a frase telepática brilhou na mente perturbada de Leutério.

— Apenas me deixem em paz... — suplicou o Primal, que tornou a cobrir o chão de grãos de milho. Os pássaros criaram coragem e retornaram.

— Seu recado já foi dado, Jaguarana, pode ir embora... POR FAVOR.

Leutério percebeu que era inútil insistir. Deu meia-volta e foi embora, sem falar mais nada. “Por que você afasta todos os poucos amigos quem tem?”, pensou ele, com uma sensação mista de raiva e compaixão.

Pare de bancar o anjo protetor, Jaguarana. SUMA!” O Venerável acelerou o passo, vencido. “E isso vale pra você também, Cenira! Não pense que que não percebi você invisível!”. Leutério pôde ver o vulto esguio e ainda etéreo de Cenira deslizando pela copa florida do jacarandá, enquanto o efeito de seu Manifesto Repouso de Haniel diluía-se aos poucos.

Quando Elísio Paulino finalmente sentiu-se confortavelmente sozinho, estirou-se no velho e enferrujado banco da praça e tirou uma soneca. As ameaças de Leutério não o assustavam. A chuva começa a parar.

Já passa da meia-noite quando Elísio abre os olhos. Basta um pouco de focalização e ele percebe que três pessoas aproximam-se sorrateiramente. Ele não consegue ler os pensamentos com clareza, mas percebe que há forças espirituais envolvidas. Ele não demonstra o menor temor. Limita-se a sentar no banco, e esperar pelos misteriosos visitantes.

Os três homens altos, trajando roupas escuras, parecem um pouco surpresos pela inexplicável calma de sua vítima. Um deles puxa uma adaga. À medida que a lâmina move-se no ar, parece desenhar uma linha de luz escarlate no ar. Elísio percebe alguns símbolos místicos gravados no metal brilhante. O seu companheiro, bem mais alto, traz um pingente cristalino em volta do pescoço. O terceiro inimigo, um anão de barbas grisalhas, entoa um cântico em grego bizantino. O Primal não consegue entender nenhuma palavra, mas sente com seus dons sobrenaturais que uma energia muito poderosa está sendo emanada. Ele sente o corpo tomado gradativamente por uma paralisia cada vez mais intensa. Tenta mover-se mais não consegue. O mais alto dos três chega mais perto. Sem tom de voz é insolente, e traz um sotaque afrancesado.

— Os solitárrios são prresas bem mais fáceis. Seus amigos não estão aqui para defendê-lo, abominação.

— O ritual vai exaurir o maná da criatura para que possamos prendê-lo — disse o homem com a adaga, pressionando a ponta afiada no peito de Elísio até que um filete de sangue começasse a escorrer. O ancião de baixa estatura permanecia concentrado em sua ladainha extática.

Eu não estou sozinho, senhores”, os três Cavaleiros de São Jorge estavam ouvir a mesma mensagem telepática do Nefilim, que permanecia imóvel, com os olhos bem fechados. “Tenho muitos amigos e eles estão aqui”, os guerreiros jórgios se entreolharam, e começaram a notar uma algazarra de arrulhos ao seu redor.

Elísio Paulino, filho do anjo Nasrel, abriu os olhos, que brilharam com um fogo alaranjado. Neste exato momento, dúzias de olhos abriram-se por toda parte, repetindo o mesmo brilho mágico.

Todos os dias eu os alimento com os melhores grãos...”, a voz do Primal parecia retumbar dentro das cabeças do trio de cavaleiros, que oraram pelos seus proterores.

MAS NESTA NOITE, ELES VÃO MUDAR A DIETA”.

Uma nuvem de bicos e garras furiosas envolveu a praça, transformando as orações em gritos de agonia.

Elísio podia ser uma pessoa de poucos amigos, mas os poucos que tinha eram extraordinários.

AMIGOS DE LONGA DATA foi escrito por Simões Lopes


terça-feira, 22 de setembro de 2009

Rebelião 94: Amigos de Longa Data


A Catedral de Nossa Senhora Madre de Deus estava vazia, como de costume naquela hora do dia. Umas poucas pessoas rezavam em silêncio, e um trio de senhoras acendia velas do lado de fora. Um homem impecavelmente barbeado e de têmporas raspadas, com uma enorme cicatriz na metade esquerda do rosto escuro, olhava fixamente para a imagem do Cristo crucificado no altar, enquanto esperava por alguém. Já fazia mais de uma hora que tinha chegado, e seu amigo de longa data ainda não aparecera.

— Chico!!! — gritou uma voz possante, vinda de fora da Igreja.

—Chico!!!! — a voz de trovão era insistente.

Antes que os paroquianos começassem a reclamar do súbito importúnio, "Chico" decidiu ir ao encontro daquela voz que lhe soava cada vez mais familiar.

Um homem baixo mas incrivelmente robusto, com a barba espessa de um castanho muito escuro e olhos azul-celeste, acenava com os braços musculosos e um tom de alegria quase frenética no semblante.

— Chico, há quanto tempo! Você não sabe como foi difícil localizá-lo, guerreiro!

— Ildebrando? — disse Francisco Xavier, em tom de reconhecimento.

— Claro que sim... Quem mais poderia ser?

Enquanto recebia um abraço forte o bastante para fraturar costelas, o capitão Francisco Xavier da Luz se lembrou de quando conhecera Ildebrando, há mais de um século e meio atrás, nos dias sangrentos dos Farrapos. Ildebrando Carraro acabara de chegar da Itália, acompanhando Giuseppe Garibaldi, em busca de emoções fortes e combates sem fim.

— Por onde andas? — perguntou Francisco, trocando a alegria por um ar mais compenetrado.

— Antes de tudo, há muito que não sou o "Ildebrando". Hoje em dia ando sendo chamado de Márcio Martins, ou Alex Monte, dependendo da situação.

— Situação? — estranhou Francisco.

— Isto não vem ao caso, velho amigo... Para você, eu continuo sendo o mesmo Ildebrando de sempre.

A conversa com o amigo começava a provocar um bombardeio de memórias na mente de Francisco. Ele se viu novamente em 1840, quando era Chico Luz, o melhor dos Lanceiros Negros do coronel Teixeira Nunes, e lutava ferozmente ao lado do rebelde florentino (acusado às vezes de ser um anarquista enrustido) Ildebrando Carraro. As tropas imperiais perderam muitas vidas pelas armas daqueles dois homens. Chico e Carraro eram Triunfantes, e embora Chico já fosse bem velho para os padrões dos mortais, com 172 anos, seu colega italiano era bem mais antigo, e nem mesmo o ex-Lanceiro sabia ao certo quanto anos ele tinha na verdade. Deveria já passar dos seiscentos anos, o que era bastante até mesmo para um Triunfante. Um sinal de que sua missão em Adamah estava longe de terminar, ou que seu prazer em guerrear conseguia se traduzir em uma vitalidade inesgotável.

— Faz muito tempo, heim? — disse Ildebrando, evitando arriscar um palpite.

— Desde a Revolução Constitucionalista de 32... — completou Chico.

— É. Alistei-me na década seguinte e fui lutar na Europa, você também?

— Fui, atuei como mercenário, lutei em ambos os lados.

— Com teu passado anarquista e carbonário, não imaginaria tu ao lado dos fascistas...

— O Vaticano estava com eles!

— Não oficialmente!

— Estar do lado “errado” pode render uma boa gama de ótimos inimigos. Há muito tempo que não me prendo a ideais ou bandeiras. Fui à guerra pelo prazer de lutar, sentir o gosto de escapar da sombra da Morte a cada instante.

— Enquanto isso, acabei engajando-me em uma nova identidade como policial, e graças a isso, ganhei esta cicatriz.

— Só voltei ao Brasil para me juntar aos grupos armados no Araguaia. Ajudei a desencarnar muitos soldados e oficiais, mas hoje não caço mais humanos — explicou Ildebrando, num tom quase professoral.

— Eu estou no BOPE, e continuo "caçando humanos", e diversas vezes o “caçador” quase tornou-se a "caça" — pigarreou Francisco.

— Na Europa conheci alguns Triunfantes que viraram justiceiros, caçando criminosos sem distintivo ou farda. Porque se ligar a uma instituição? Não se sente tolhido pelas “leis” que jura defender?

— Claro que sinto. E são justamente estas limitações que tornam minhas guerras mais emocionantes e arriscadas.

— Entendo...

— Por que quiseste marcar este encontro?

— Quero fazer uma proposta... digamos.... de "emprego"...

— Ahn?

— Como já disse, não caço mais humanos. São presas fáceis demais. Estou caçando Nefilim, não para destruí-los, mas para capturá-los. É tão difícil que se torna uma proeza de grande renome.

— Sucessos?

— Alguns.

— Derrotas?

Ildebrando não falou nada. Limitou-se a mostrar a mão esquerda espalmada. Dois dedos tinham suas pontas mutiladas. Sorriu, escancarando três dentes de ouro. Desabotoou um pouco a camisa, mostrando uma enorme marca de queimadura no peito, meio encoberta pelo tecido.

Chico Luz coçou a cabeça, e sentiu o celular o tocando. Não atendeu.
— Os malditos são quase invencíveis, Chico. Tu não imaginas do que são capazes... Aceita o desafio?

— Sempre em busca do triunfo mais improvável, velho amigo. Assim vivemos e assim morreremos...

O aperto de mão foi forte e caloroso.

— Pode contar com o velho Chico Luz!

Ildebrando sorriu.

— O que tu fazes com os Nefilim após capturados?

O sorriso sumiu da face barbuda.

— Tudo a seu tempo, meu amigo. Tudo a seu tempo. Primeiro vamos comemorar nossa longa data. É uma pena que tenhamos mais o vinho forte do Bar do Figueiró.

— O Figueiró morreu em 1892. Se tivermos sorte, os descendentes talvez tenham mantido o bar.

— Sorte é o que jamais falta a um Triunfante, amigo! — soltou uma gargalhada, que assustou as colegiais que atravessavam a rua.

— Com certeza, Ildebrando, com certeza. Se lembra em qual rua ficava?

O sorriso decorado com dentes de ouro indicava que sim.

Ele se lembrava.


AMIGOS DE LONGA DATA foi escrito por Simões Lopes

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