segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 39: Sonho Realizado

Era o ano de 1884 e estava ocorrendo mais um pogrom, um ataque à comunidade judaica de um pequeno povoado nos arredores de São Petersburgo. O inverno russo prosseguia em seu ápice. Os ventos rugiam com força, a neve caía inclemente, e uma jovem mulher grávida gritava em agonia, enquanto era ajudada por três parteiras de uma comunidade de pastores de cabras. A família dela já devia estar morta, caçada pelos executores mandados pelo Czar, e sua vida também estava por um fio.

A criança nasceu berrando, e assim que seu choro ecoou pelas campinas cobertas de neve, sua mãe deu seu último suspiro, após sussurrar algumas palavras ao ouvido de uma de suas ajudantes.

— Liev Benyuda será seu nome — disse a parteira mais jovem, que escutou o que a pobre mãe lhe contara.

— Eu vejo um grande futuro para esta criança; será ele aquele que esperamos? Ele trará muita luz — perguntou outra mulher, robusta e atarracada, enquanto acalentava o bebê em seu colo farto.

A terceira mulher, magra e desdentada, os olhos brancos pela cegueira, vaticinou:

— Tanta luz irá servir de farol para seus seguidores; e aqueles que preferem viver nas sombras o caçarão até o fim.

Vários estampido foram ouvidos. Eram os soldados imperiais que chegavam. O líder da pequena tropa, um homem alto de bigode fino e olhos de uma coloração amarelada, gritou para seus comandados:

— Ali está a criança! Matem a todos!

Os tiros partiram com fúria. Em poucos segundos as três parteiras estavam fuziladas, assim como os aldeões que encontravam-se por perto. O bebê repousava envolto em um manto de lã, deitado num tapete de palha seca. A tempestade de neve pareceu ficar ainda mais forte. Alguns soldados tiveram a impressão de escutar uma trovoada.

Um dos militares chegou rapidamente à criança, preparando a lâmina da baioneta para o golpe mortal. Foi quando sentiu uma forte ferroada na perna.

Um grande gato negro, de olhos que pareciam brilhar na noite invernal, cravou suas garras e dentes na perna do soldado russo. Antes que ele pudesse reagir, os muitos vasos sangüíneos rompidos fizeram-no cair, sem movimentos.

O comandante do grupo percebeu do que se tratava, mas aí já era tarde demais.

— São protetores! Atirem...AARRRHH!

Um galo vermelho apareceu do nada, saltando sobre sua cabeça e bicando sua face até arrancar seus olhos. Quando outro deles tentou retomar o ataque ao bebê, um enorme cão de pêlos brancos pôs em posição de bloquear o ataque. A baioneta cravou-se no corpo robusto do cachorro, mas este não pareceu nada sentir.

Alguns relâmpagos lançaram um brilho difuso pela bruma fria, e o barulho de um galope poderoso confundiu ainda mais os soldados remanescentes. Um cavalo baio de crinas douradas, cuja altura nos ombros excedia a altura dos homens atacou furiosamente os soldados remanescentes, esmagandos seus corpos com seus coices, dentadas e cabeçadas.

A criança havia sido salva.

O cachorro, na verdade uma cadela, tomou a criança com delicadeza, carregando a trouxa pela boca. O gato negro de um salto, aninhou-se no dorso peludo da ama canina, enquanto que o terrível galo de penas escarlates, esvoaçou vigorosamente até pousa no dorso no enorme colosso equino.

Assim a criança, cujo nascimento era tão esperado, foi protegida.

Dizem que Liev Benyuda tornou-se um rapaz saudável de corpo, alma e mente brilhantes. Num mundo onde tudo o que se via eram guerras, opressão, crueldade, ganância e doença, ele veio com uma mensagem de união e esperança.

Ao seu redor juntaram-se os mais diferentes seguidores: comunistas marxistas, socialistas utópicos, anarquistas, neo-luditas, e até mesmo cristãos, muçulmanos e israelitas. Os dias do Reino da Mentira haviam chegado ao fim, e ele sabia que cabia a ele liderar a queda do Império. Cada vez mais gente se juntava a seus seguidores, e os planos de Revolução brotaram, prenunciando um futuro de harmonia, paz e felicidade para todos.

Como sempre acontece na História do Mundo, os planos de um futuro melhor conhecem os seus inimigos, aqueles que vivem das migalhas de um mundo falso e que lutam pelo que julgam ser a fonte de sua riqueza e poder. Vivem na ignorância, e não querem ser libertos pela Verdade; odeiam o Equilíbrio, pois aprenderam a vida inteira uma falsa sabedoria; jamais compreenderão os muitos caminhos e formas da Divindade; e temem que a justa divisão do trabalho e da riqueza ofusquem suas ilusões de grandeza.

Hoje Liev Benyuda vive feliz em um mundo que ajudou a criar. Aqui, todos são iguais, felizes e livres, e nem uma única pessoa vive em privações e miséria. Tudo e repartido equitativamente, e ninguém mais se apraz em explorar seu semelhante, em troca de sonhos vãos de ser mais que os outros. A Verdade está acessível a todos, mas ninguém pode julgar-se dono dela.

As pessoas agora vivem felizes, porque o Maytréia chegou, e todos foram conduzidos a um novo degrau, a um maravilhoso patamar. A Evolução triunfou sobre seus inimigos, e a Divindade pode manifestar-se livremente em cada um dos seres humanos, e em seus atos sempre magnânimos e sábios.

Liev Benyuda vive feliz, porque realizou seu sonho.

Muitos anos se passaram desde que Liev nasceu e hoje ele tem mais de cem anos de idade. Ele dorme, em paz consigo mesmo, e vivencia a plenitude de seu sonho. Seu corpo pode ser visto num fundo de um túnel, escavado por quilômetros de rocha cristalina. O túnel está repleto de criaturas imateriais e disformes, que observam o corpo ainda jovem do centenário líder.

Enquanto isso, o mundo lá fora segue em sua triste rotina: fome, guerra, escassez, conquista, e morte grassando por todos os pontos. E homenzinhos tristes que pensam estar felizes porque lucram com todas estas pragas. E a Humanidade, para quem alguns insistem em prever um futuro glorioso, segue imersa como uma multidão de marionetes presas a fios indissolúveis que eles não conseguem sequer perceber.

Hoje em dia, muito poucos sabem que o aconteceu na turbulenta década de 1910 na Rússia, do então Império Czarista. Benyuda e seus seguidores sonharam com um mundo melhor, e estiveram perto de realizar seus intentos. Mas os Centriários, aliados a muitas outras forças, que temos medo até de nomear e descrever, compreenderam que não conseguiriam derrotá-los por uma estratégia simples de combate. Assim, através um astuto plano, em vez de aniquilar Benyuda, fizeram com que ele se tornasse cativo de seu próprio sonho. Assim, ele jaz em sono eterno, preso em sua própria Utopia, que não pôde realizar-se por estar presa dentro da mente de seu próprio Sonhador. Seus seguidores, estes sim, foram mortos ou corrompidos, alguns caluniados e outros levados ao desengano. Muitos falsários surgiram para autoproclamar-se defensores dos ideais de Benyuda, mas apenas trouxeram confusão e descaminho. Graças a isso, hoje em dia, ninguém mais sabe que existiu Liev Benyuda, nem de seus ideais ou sonhos.

O mundo seguiu sua rota esperada, ditada pelo roteiro impiedoso da Maya.

E Liev Benyuda, que muitos julgaram ser o tão esperado Maytréia, jaz imerso em seu próprio Paraíso Onírico, no fundo de uma caverna, cercado por uma horda de captores.

Apesar de sua vitória em aprisioná-lo, os Centriarcas ainda — e já passaram-se mais de cem anos — não conseguiram realizar seu principal intento: matá-lo.

Pois a tumba de Liev é protegida em seus quatro cantos por seu quarteto de guardiães: uma alva cadela, um gato de pêlos negros, um galo rubro e um enorme cavalo dourado. Eles já estão velhos e ressequidos; a idade pesa em seus corpos animais. Mas sua missão é proteger a Criança, e quanto ela viver — não importa quanto — eles estarão ali.

E talvez quem sabe, um dia, ele desperte de seu Sonho-Prisão.


SONHO REALIZADO foi escrito por Simoes Lopes

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