sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 50: Tartáreas

Antes de envolver mais gente nisso, prefiro ter certeza de que não posso fazê-lo sozinho. Estudei muito as artes da necromancia, principalmente com Veneráveis, de modo que me acho razoavelmente capaz, sendo um Arquiduque Precursor de variados poderes, de conjurar o espectro de Konstantin Efremov. Segundo muitos de meus mentores, "o plano de existência dos espectros não conhece as convenções de tempo ou distância, sendo possível conjurar-se o espectro da rainha Vitória no Himalaia — tudo o que é necessário é uma forte concentração" (CASTILLO, Juan. Necronímia: introdução às artes Veneráveis da Espiritomancia. Madri: 1952, p. 35). Contudo, sempre que uso meus poderes necromânticos, só consigo invocar os miseráveis que viveram no solo onde estou, de forma que, por mais que odiasse a idéia, viajei para Kansk, o lugar onde pretensamente viveu nosso bom padre. Ainda em Moscou, no aeroporto, precisei usar Gnose para poder me comunicar com a fauna local. Sempre é desagradável para mim falar idiomas eslavos, de modo que fiquei muito mau humorado. Paciência.

A viagem de Moscou a Kansk foi tão desagradável quanto eu poderia esperar, mas finalmente cheguei ao meu destino. Constatei, para meu desagrado, que os miseráveis de dentes amarelos que viviam naquele lugar falavam um dialeto ainda mais obscuro da língua padrão, de modo que precisei de Gnose outra vez. Certamente Efremov fala um dialeto ainda mais hermético, em função do anacronismo, o que me obrigará a mais um uso de Gnose. Paciência.

Aluguei um bangalô naquele lugar miserável, e ao cair da noite, pus-me a trabalhar. Estiquei as folhas de pergaminho na mesa após limpar os farelos de pão e excrementos de barata de cima dela. A alvura do papel contrasta fortemente com o tom escuro de podridão dos móveis do lugar. Este é o melhor papel que o dinheiro pode comprar, com uma capacidade maravilhosa de absorção, feito para escrever-se com penas. Seria necessário um papel assim, principalmente quando se usa uma tinta mais densa que nanquim. Minha provisão contava com quinze folhas alvas e sem vincos — as coloquei ao alcance de minha mão esquerda e apaguei as luzes do quarto, acendendo apenas uma vela aromática, que iluminava minha mesa de trabalho. Ainda segundo CASTILLO, "a liturgia de conjuração não passa de um foco para a concentração do necromante. Porém, quanto mais elaborada, mais focada estará sua mente, aumentando suas chances de sucesso" (op. cit., p. 54). Estava tudo ótimo, na minha opinião. Aspirando o odor agridoce que a vela espalhou pelo ar, comecei a liturgia de Necromancia, ou pelo menos a variação que criei dela. Fiz os primeiros chamados pelo Espectro de Efremov, enquanto enchia um prato de alumínio amassado com meu sangue. Imediatamente o quarto ficou frio, e notei que sombras surgiram de todas as partes, farejando meu sangue imortal. Eu previa isso — as grandes concentrações manáticas em meu sangue atrairiam os fantasmas famintos de toda região. Paciência.

As sombras rodopiavam ao meu redor, mas toda vez que tentavam aproximar-se da tigela, atingia uma delas com um Ferrão Mental; como eu desconfiava, a natureza psíquica destas criaturas era vulnerável a este tipo de ataque. Peguei uma caneta-tinteiro em minha mala e comecei a escrever, com o sangue, no papel:

"Procuro a sombra do padre Konstantin Efremov. Algum de vocês pode mostrá-la a mim?"

Uma sombra grande, amorfa, aproximou-se do papel, e todas as outras se afastaram temerosas. A coisa drenou o sangue, fazendo com que as palavras desaparecessem, como se varridas pelo vento. Em seguida, uma substância cinzenta começou a espalhar-se pelo papel, formando letras toscas:

"Eu vi Konstinn patri." Volto a rabiscar o papel com meu denso humor:

"Pode trazê-lo aqui?" — novamente as letras desaparecem, e percebo que meu interlocutor está ficando mais definido.

"Nãu". Olho para a escrita tosca. Seria esse um maldito semi-analfabeto ou teria dificuldade para lembrar da grafia certa das palavras?

"Por que não? Ele está longe?"

"Nãu longi, prezzu". Maldição, mil vezes maldição!

"Por quem?" — quase cai novamente na bobagem de falar em termos de distância, como há pouco, com o espectro.

"LLUZZZ". Não gostei disso. O papel está em frangalhos, de modo que o coloco de lado e pego outra folha.

"Não pode ser mais específico? Que luz?" — rezo internamente aos Triarcas que ele não esteja falando de Lúcifer. Isso arruinaria minhas chances de sondar a chegada dos Descaídos.

"Stranha... nãu sei dzer".

"A luz está aqui ou além da fronteira?" — o sangue desaparece do papel e a sombra toma contornos bem visíveis: parece um enorme cossaco, cujas roupas estão rasgadas, mostrando vísceras pendentes através de chagas pútridas. Sua barba está suja de sangue, e seus olhos injetados brilham rubros.

"Aqiii". Medito sobre estas informações. Este miserável não pode me oferecer mais nada, de modo que libero seu acesso à tigela com o resto de meu sangue. Ele cai sofregamente sobre ela, que começa a rodopiar sobre a mesa com um estranho ruído metálico. O sangue dentro dela começa a dispersar-se numa nuvem carmesim que se espalha dentro do espectro, dando-lhe mais cor e forma; seus irmãos rodopiam desesperados, farejando o licor que lhe deu tanta força. Para minha surpresa, novas palavras formam-se no papel:

"Mi da mayyss!" — este último "mays" se repetiu algumas vezes, até o fim da folha, quando a mesa foi virada. Observei impassível o rosto do fantasma: ele passava sua língua abjeta pelos lábios numa careta de volúpia, enquanto flexionava as mãos como garras. Como meu sangue lhe deu uma força da qual nunca experimentara (ou lembrara), o desgraçado achou que poderia arrancar mais de mim. À força. Sem paciência.

"Claro" — com meu estilete abro um corte na ponta de meu indicador, que imediatamente dá origem a um filete escuro de sangue. Ele se aproxima com… antecipação? cautela? alegria? — não importa. Antes que me toque, regenero o corte e afundo meu dedo em seu peito, tocando seu coração morto. Em seguida, invoco Captura da alma — se usado contra os vivos, este Manifesto Abissal drena sua vitalidade e a converte em Maná para mim; contra um espectro, drena sua energia psíquica com as mesmas conseqüências. Ele esbugalha os olhos e começa a se debater, sentindo seu precioso ectoplasma tornar-se mais fino e frágil. Quando terminei, ele estava num estado pior do que quando chegou: era uma sombra fraca, quase translúcida, mais parecendo o vapor que se desprende de uma chaleira.

"Ele não tem sido muito gentil convosco, não é mesmo?" eu lanço para os outros espectros presentes. Após um segundo de hesitação, todos se lançam contra ele, arrancando o pouco de energia que ainda contém. Pode parecer crueldade, mas os gritos de um fantasma são belos, parecendo uma mistura de solo de barítono com o eco grave de um órgão. Muito exótico.

Dou as costas para a turba de cadáveres, recolhendo as anotações desta noite. Não posso dizer que ela foi totalmente infrutífera, em virtude de minhas descobertas, mas não me agrada a perspectiva de colocar mais um nefilim nisso. Infelizmente, parece que realmente precisarei dos Veneráveis, visto que meus conhecimentos necromânticos, apesar de vastos, não se comparam aos dos mestres. Com meu celular, ligo para o aeroporto de Moscou, perguntando os horários dos vôos para Portugal. Não irei diretamente ao meu intento, não ainda. É necessária muita cautela ao lidar-se com Veneráveis — o choque entre os protocolos de nossa cultura patriarcal com sua organização matriarcal podem ser extremamente prejudiciais aos meus planos.

Saio do bangalô e respiro o frio ar da noite. Com algum esforço, posso chegar a Moscou a tempo de conseguir o primeiro vôo.

"Você não escapará de mim, Efremov. Nem a morte pode mantê-lo a salvo de Paulus."

Agarro minha maleta — a única bagagem que trouxe para este lugar — e ganho as estrelas com os maravilhosos dons herdados de meu Pai.

As cartas paulinas continuam.

CARTAS PAULINAS II: TARTÁREAS
foi escrito por Renato Simões


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