Mesmo à noite, o calor do verão continuava intenso. No grupo de homens que vigiavam a passagem para a boca de fumo, Zelito ainda palitava os dentes com uma lasca de palito de fósforo quando viu seu primo Zé Enoque chegar de mãos vazias do bar do Tonhão. Ele queria trazer algo para matar a sede, mas o bar já estava fechado.
Todos estavam bem armados, com exceção do próprio Zelito, sentado despreocupadamente no capô de um velho fusca verde-escuro contando o dinheiro que havia ganho ao fim da noite. Por perto não havia nenhuma casa com luzes acesas, pois o chefe dos traficantes havia ordenado que ninguém subisse o morro.
Zelito e seu bando estavam nervosos, preocupados com o boato de que a gangue do morro vizinho pretendia invadir o seu território. Quando ouviram passos vindos da parte de baixo da escadaria que levava até onde eles estavam, os ânimos ficaram muito, mas muito sobressaltados.
O barulho ritmado indicava serem passos femininos: o som do salto alto subindo os degraus era inconfundível. Zelito, com um gesto silencioso, mandou Rato e Jéverson cuidarem da “dona”.
Jéverson, com o coração batendo forte — tinha poucos meses no “ramo” — não acreditou no que via. Uma mulher jovem, miúda, muito atraente, vestindo um elegante vestido preto, com um colar vermelho de bijuteria e cabelos platinados, subia desajeitadamente a escada tendo ao colo um pequeno cãozinho poodle cor de canela.
Ele apontou a arma para o rosto da “madame”, sem o menor acanhamento. Esta limitou-se simplesmente a encará-lo com um olhar triste.
Rato olhou a mulher de cima a baixo, despindo-a com os olhos, e deu uma cutucada em seu parceiro, como se dissesse “tá vendo o que eu tô vendo ?”
Os dois ainda estavam rindo, quando Zelito e Zé Enoque chegaram, com armas em riste — Zelito teve que buscar apressadamente uma arma —, mas perceberam que estavam preocupados à toa. Zé Enoque soltou um enorme sorriso quando viu a garota morena de olhos azul-claro.
— Ora, ora, uma patricinha tão bonitinha aqui, nessas hora, veio atrás de pó... ou de macho? — O rapaz de cabeça raspada trazia uma tatuagem de dragão — pelo menos foi o que o tatuador parecia ter tentado desenhar — no ombro direito, e usava uma camiseta amarela fajuta de time de basquete americano. Cuspiu o chiclete que estava mascando, e sussurrou algo extremamente obsceno ao ouvido da moça.
Esta continuou calada, limitando-se a soltar o cachorro, que pulou alegremente para o chão de cimento e terra. Zé Enoque passou a mão lentamente pelos quadris da “invasora”, e deu-lhe um tapa bem forte no traseiro.
— É hoje! — gritou Rato, gargalhando, no que foi acompanhado por Jéverson. Os três cercaram a pequena mulher, que parecia um brinquedo perto dos enormes traficantes. O cachorro rodeava o grupo, e lambia os calcanhares dos bandidos, que afastavam-no com os pés a cada tentativa.
“É hoje sim, mas não pra você, Zé...”, interrompeu-o Zelito, flexionando os músculos hipertrofiados. Era o mais alto e mais forte do grupo, e usava um bigodinho que contrastava com a enorme cicatriz que tinha na bochecha.
Zelito não deu a mínima para a cara de decepção que seu primo fez, e com um gesto firme puxou a menina para junto de si. A mulher de tubinho preto continuava calada, mas sua fisionomia mudara um pouco. Lágrimas começavam escorrer de seus olhos, e o traficante viu que ela parecia desesperada e indefesa. Maravilhosamente indefesa.
— Vou te dar um chance, tchutchuca, se veio aqui prá comprar da gente, e tiver com muita grana, eu deixo você ir embora...
A garota chorava sem parar, de cabeça baixa, sem som nenhum.
— Tá com dinheiro, gatinha? — perguntou Zelito, sob o olhar cúmplice de seus colegas.
Ela continuou no mais absoluto silêncio.
— Tá...ou não tá? — seu riso era diabólico.
A mulher não respondeu, no que levou um tapa no rosto. Zé Enoque soltou uma enxurrada de palavrões. Zelito xingou a mulher e tentou forçar uma resposta, mas em vão.
— Não tem dinheiro pra dá, vai dá o resto! — puxou a moça com violência, agarrando-a e levando para um matagal que tomava conta da parte de trás da viela. O cachorro dela começou a latir e pular. “Eu sou uma cara de sorte”, pensava ele, nesse momento, insensível. O lugar ficava perto da borda de um paredão rochoso, de onde era possível ver as luzes dos prédios imponentes da Zona Sul carioca.
As lágrimas corriam em sua face, cada vez mais abundantes, e ela foi jogada no chão de forma brusca. O vestido foi rasgado de um golpe só, deixando à mostra os seios pequenos. O poodle seguiu a sua dona com seu latido estridente, e deu uma mordida no calcanhar de Zelito, que reagiu chutando o cãozinho com tanta força que o pobre animalzinho aterrizou ganindo numa moita de arbustos espinhosos.
— Tu veio até o inferno, vai ter que conhecer o capeta — disse, enquanto tentava tirar a própria calça da forma mais rápida possível.
Cobriu a boca dela com a mão pesada. — Não adianta gritar, não tem ninguém pra ouvir mesmo...
Ela mostrou então um sorriso — para surpresa de Zelito — e então abriu a boca a primeira e única vez, soltando uma palavra incompreensível.
O barulho irritante do cachorro foi ficando cada vez mais forte, transformando-se num misto de rugido e grito rouco. Zelito sentiu um rajada de vento frio e gelado na espinha, seguido de um cheiro putrefato. Quando olhou para a moita, viu o que parecia ter sido o poodle contorcendo-se num paroxismo frenético. Músculos inchavam como balões, os pêlos engrossavam, e a boca rasgava-se e crescia assustadoramente. Dezenas de dentes afiados pareciam brotar espontaneamente, decorando a bocarra feroz. O bichinho de estimação era agora assustador animal de pêlos negros compactos e olhos vermelhos como fogo. Zelito não se mexeu, como se paralisado pelo medo.
O cachorro saltando em sua direção foi a última imagem que conseguiu ver antes que os dedos da mulher penetrassem em seus olhos como duas garras afiadas velozes como um tiro.
À medida que a escuridão tomava conta de tudo, ele ouviu a moça gargalhando, acompanhada de um barulho pavoroso e indescritível de ossos estalando. Sentia que estava sendo erguido do chão como se não pesasse nada.
Algumas rajadas de metralhadoras foram ouvidas bem ao longe.
Zelito sempre se considerou um sujeito de sorte. E, de uma forma um tanto irônica, a sorte acompanhou-o até os últimos instantes. Os olhos vazados pouparam-no de testemunhar aquela bonita e delicada garota transformar-se numa criatura horrenda, com pêlos irregularmente espalhados pelo corpo, presas salientes na boca, e uma pequena cauda saliente. As lágrimas dela, que continuavam fluindo aos borbotões, condensavam-se na forma de filetes de sangue negro e fumegante.
Destas chagas abertas brotaram sombras infernais, que envolveram o seu corpo como se estivessem vivas, e seus grandes olhos injetados de sangue vasculhavam o ambiente agora com sobre-humana acuidade. Os poderes demoníacos mais uma vez tomavam posse do pequeno e delicado corpo de Fabrícia Migotto, transformando-o e deformando-o para que ali estivesse a alma de Aylambra, a Lacerante, uma Sheilim de 1.230 anos de idade.
Aylambra respirou fundo, sentindo-se embriagada pela sensação de caminhar mais uma vez no plano físico de Adamah. Enquanto durasse sua missão, sua alma estaria livre de seu cárcere gélido nas profundezas de Caïna, no Nono Círculo do Sheol.
O cachorro-demônio já estava ocupado em saciar-se avidamente da carne fresca do cadáver do traficante. Aylambra puxou um dos braços e arrancou um grande naco sangrento da mão esquerda do rapaz.
Os boatos acabaram se concretizando. Naquela noite a quadrilha rival, comandada por Dé Birinaite, invadiu o morro para liqüidar com a concorrência. Suas armas não eram melhores que as do grupo de Zelito, e nem tampouco estavam em maior número.
Mas o tio de Dé Birinaite tinha contatos importantes. Contatos sobrenaturais, com as potestades malignas além da compreensão humana.
Um pacto insano foi realizado, e os talentos de Aylambra foram requisitados mais uma vez. Atacando nas sombras, movendo-se pelas frestas invisíveis daquela guerra insana, a Sheilim mais uma vez pôde saborear o gosto doce da vitória.
Mais tarde, horas depois, o sol finalmente raiou, tingindo o céu com um vermelho cor-de-sangue. A praia já começava a receber alguns de seus freqüentadores. Um assunto dominava as conversas de beira de praia: o tiroteio que correu forte por toda a madrugada. As primeiras notícias da carnificina já chegavam ao calçadão. Senhores madrugadores faziam seu cooper matinal, enquanto conversavam sobre frivolidades. Surfistas já corriam pelas areias carregando suas pranchas, e no asfalto, aqueles que iniciavam mais dia de trabalho, esperavam sonolentos nos pontos de ônibus.
Uma garota frágil e de aparência tímida circulava desapercebida pelo calçadão, impassível, segurando no colo seu cãozinho cor de canela. O animalzinho abanava o rabo, e os latidos esganiçados renitentes mostravam sua satisfação. Fabrícia Migotto parou por um instante, enquanto observava a passagem de dois rabecões na pista contrária. A guerra do tráfico fizera muitas vítimas na noite passada.
A mulher sorriu, afagando a cabeça de seu poodle.
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