ECOS DE PRAGA II
Poucos são os frequentadores do Mosteiro de Strahov que conhecem aquele túnel estreito e comprido que se parece avançar rumo às profundezas da Terra. Dois vultos caminhavam devagar, os pés calcando no piso de rocha escura e coberta de limo. Um monge magro, de cabelos ralos e barba alourada, conduzia a outra pessoa através da densa escuridão, carregando um bastão luminoso que emana uma luz fria verde-azulada. O vulto esguio que o acompanhava, coberto por um manto branco com capuz, não trazia boas notícias para os moradores daquele mosteiro.
Aquele que os mendigos e necessitados das sarjetas de Praga conheciam simplesmente como o Irmão Pavel, agora apresentava-se como Pavel de Tharsus, o mais velho dos doze Cavaleiros da Cruz Resplandecente que residiam incógnitos entre as paredes do Mosteiro de Strahov, na capital da República Tcheca.
Quando a exaustiva descida parecia ter chegado a seu fim, um cômodo simples, de assoalhado de madeira, e onde uma pequena imagem sacra dos Reis Magos apoiava-se em uma coluna de ferro enegrecido. Assim que adentrou o recinto, Pavel fez o sinal da cruz, ajoelhou-se e trouxe o bastão junto ao peito, provocando um intenso clarão. À medida que a luz esmaecia, os contornos objetos moldavam-se plasticamente até se reduzirem a um grosso bracelete com aparência metálica que ele enfiou no pulso e escondeu sob as grossas mangas da túnica. Enquanto ele parecia conduzir este estranho ritual, seu acompanhante desceu as dobras do capuz, expondo um rosto feminino de longos cabelos ruivos e grandes olhos tão negros quanto a gema que carregava pendurada em um colar.
A mulher, que no território mundano dos homens era apenas Jolana Rozinova, voluntária em uma pequena igreja na parte leste da cidade de Bratislava, aqui era Jolana de Pathmos, uma das mais renomadas integrantes da Ordem da Cruz Resplandecente, como seu colega Pavel de Tharsus. Jolana nascera há cinquenta anos atrás na então Tchecoslováquia, mas ainda conservava praticamente a mesma beleza de sua juventude. A beleza daqueles olhos negros, terrível para as hordas de lacaios do Inferno, só encontrava rival em sua faiscante arma mística, a Gema Negra da Fênix. Jolana chegara naquela noite da Eslováquia para trazer mensagens preocupantes a seus irmãos de fé em Strahov.
Boatos circulavam pelas bocas mais sujas do submundo, contando histórias de monstros rastejando pelas docas no rio Vltava, de filhos de anjos caídos e de prodígios celestes e terrenos. A mais sombria indicava que o abjeto Antony Rothschild, monarca sem coroa de uma vasta legião de criminosos, assassinos e cafetões, estava de posse de objetos miraculosos, e incluía em sua vasta rede de contatos infames uma corja de satanistas e bruxos malditos, recém-chegados das terras geladas da Polônia e Rússia. Da distante terra ensolarada da Espanha chegavam notícias agourentas, anunciando a morte do virtuoso Estéban de Tartessos.
Quanto mais Jolana narrava os acontecimentos, mais contrito ficava Pavel em suas orações aos Santos Reis Magos. Era preciso avisar o Abade Ferdinand de Mênfis, o mais velho dentre os cavaleiros do mosteiro, e aguardar pelas suas ordens. Pavel escoltou Jolana até a saída, concentrado em proteger aquela passagem secreta que se escondia atrás da dispensa vazia da velha cozinha abandonada. Ao contrário de outras Ordens celestes, a Cruz Resplandecente possuía muitas mulheres em suas fileiras, e nem todas precisavam dissimular-se de freiras ou monjas. Jolana escondia-se sob a anônima e quase invisível máscara de pacata voluntária em uma secretaria de igreja, mas à noite, livre dos grilhões sociais, era uma ativa combatente do Mal, e circulava incógnita sob mil disfarces pelos mais perversos recantos da cidade.
Pavel imediatamente tentou procurar pelo Abade Ferdinand, mas o frei Miroslav — um pacato ermitão antissocial que sequer desconfiava que aquele mosteiro era o esconderijo de guerreiros eclesiásticos — respondeu que o abade não era visto desde a noite de anteontem. O Irmão Pavel optou por sentar em um dos bancos do templo. Sua gema verde-azulada, a Pedra do Capricórnio, fonte de seu poder resplandecente, agora transmutada em um tosco bracelete de metal escuro, pulsava suavemente em contato com sua pele pálida. Ele tentou, com a máxima concentração, buscar um contato com seu mestre, mas foi em vão. As energias emanadas do cristal eram capazes de deste tipo de proeza sensorial, mas naquele momento, algo estava impedindo o contato. Talvez Ferdinand estivesse por demais distante, ou talvez Pavel estivesse muito cansado para conseguir o grau de focalização suficiente.
Derrotado pelo desânimo, o cavaleiro-monge de cabelos claros retornou ao seu humilde quarto, de cuja janela estreita era possível divisar as águas distantes do Rio Vltava. Quanto sentou em seu leito, sentiu um odor estranho, semelhante a ferrugem, com um leve toque de enxofre. Um calor intenso passou a emanar de seu bracelete e, de prontidão, olhou ao seu redor, percebendo que o vidro da janela estava rachado de cima a baixo, e que uma grande mancha escura borrava o canto da parede, espalhando pelo chão de tábuas largas. Seguindo o rastro de sujeira, descobriu um embrulho ensanguentado, junto à escrivaninha. Do bracelete agora pulsava uma luz bruxuleante, indicativo de que os fluxos de energia sutil no recinto estavam perturbados.
Cutucou o embrulho com cuidado, e antes de abri-lo, seu bracelete já se transmutara em uma longa adaga radiante. Envolvido nos panos ensanguentados, coberto de uma trilha de gosma amarelada, havia uma mão humana decepada. Em sua palma, gravada com profundas incisões podia-se ler em letras minúsculas: O ABADE VIVE. Virando-a, Pavel leu nas costas da mão: CATIVO E MUTILADO.
“Cativo e mutilado”, os pelos da nuca de Pavel se arrepiaram. Deixou que sua arma celeste vasculhasse os arredores com sua luz mística, não encontrando mais traço algum de presenças ocultas. Se algum inimigo esteve por ali, não estava mais presente. Para piorar a situação, a Gema do Capricórnio confirmara a identidade do braço ao ler sua aura residual. Pavel só tinha duas certezas: o invasor era alguém muito poderoso, capaz de desmembrar um Cavaleiro e de penetrar em seu santuário sem ser detectado; o invasor sabia onde os Cavaleiros residiam.
A guerra não estava começando, pois ela jamais terminou. Entretanto, o início de uma nova batalha já se anunciava.
ECOS DE PRAGA II: A GEMA DO CAPRICÓRNIO foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.