segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 21: Os Cinco Minutos

A imagem que permaneceu nublada por um segundo entrou em foco, então. Houve outro segundo — este, de hesitação. E ele puxou o gatilho.

O barulho, abafado pelo silenciador, foi exatamente igual ao dos filmes. O rapaz dentro da mira caiu, mãos no ventre, mexeu-se alguns segundos e parou. As formiguinhas fora da luneta começaram a correr, alucinadas. Alguém chutara o formigueiro.

A imobilidade do seu alvo no chão mostrava que sua pequena vendeta estava consumada. Mas ele teve a súbita curiosidade de saber se acertaria alvos em movimento. E começou a brincar de Deus. A polícia demoraria a chegar (a única coisa com a qual pode se contar no Rio de Janeiro), e mesmo lá, dificilmente o acharia. E se achasse, ele se entregaria e iria para um hospital psiquiátrico. Ponto.

Pff. Pff. Pff.

Três tentativas, um acerto. E era um velho, não dava para levar em consideração.

BAMF!

A porta do terraço, às suas costas, fora arrombada. Ela era de ferro. Virou-se atirando, mas o vulto chegou até ele com uma velocidade estonteante, como o índio de Caetano Velloso. Antes que se desse conta do que acontecia, dois potentes socos o acertaram, um na têmpora direita, outro no estômago. Caiu sentado, ofegante, sentindo alguma coisa quente no lado direito do rosto e nos fundilhos do macacão.

— Você desligou os elevadores. E trancou a porta do terraço.

— Claro, babaca. Eu ia atirar em gente. Queria o quê?

Uma coronhada no rosto. Agora do lado esquerdo. Ele olha o agressor. Pisca algumas vezes, olhos empapados com sangue.

— Eu te vi lá embaixo! Você ficou me olhando... como, como...?

Ele ignora. Caminha até a beirada do terraço e observa o outro lado, a muitos metros de distância. Uma corrida desajeitada para jogá-lo da beirada do prédio e...

— Humf!

Um chute, certeiro, de novo na boca do estômago. E o sujeito sequer se virou.

— Estão mortos.

— V-você... gasp, gasp... não tem como saber...

— Tenho, como soube do que ia fazer.

— Quem é você?

— John Smith.

— ...?

— “A hora da Zona morta”. De King.

— Quem?

— Não importa. É hora de nos despedirmos. Vós, para morrerdes, eu, para viver. Paráfrase de Platão. Mesmo que você não valha o excremento dos vermes que comeram Sócrates.

— Hã? O da seleção da década de 80?!

— Não... do Fédon.

— Não interessa! Você não pode me matar!

— Você acabou de matar duas pessoas.

— Eu sou doente! Estou fora de mim, fui demitido, perdi meu sustento... estou psicótico! Preciso de tratamento!

— Você vai morrer por cinco minutos. Cinco minutos de atraso mudaram sua vida, como aconteceu com o protagonista da historieta de Alencar.

Ele não faz a mínima idéia de quem era Alencar, mas o sujeito gostava de arrotar importância, e enrolando direito, chegava finalmente a polícia.

— Mas por quê? Por cinco minutos...

— Você desligou os elevadores. Precisei subir doze andares pelas escadas. Chegando aqui, encontrei a porta trancada. Com cadeado. Por fora. Precisei me concentrar para arrombá-la. No total, cinco minutos. E você os aproveitou para matar duas pessoas.

— E daí?

— Daí que você cruzou a linha. Muita gente planeja matar, se prepara, mas desiste — há uma linha difícil de cruzar entre teoria e prática. A humanidade fala mais alto. Mas, quando você consegue passar por aquele momento de hesitação, aquele átimo de dúvida, mata uma pessoa. E não é fulminado por Deus. E sente o gosto, quase afrodisíaco, conferido pelo esporte mais excitante do mundo: matar seu semelhante.

— Você também quer me matar... já deve ter matado alguém.

— Ah, sim, muitas pessoas.

— Você não pode me julgar, então! Quem é você para fazer isso?

— Hermes, mensageiro e condutor dos mortos. Como na Odisséia.

— Mas o que...

O sujeito sacode a cabeça e suspira. Barulho de sirenes. A polícia!

— Peraí... deve haver um acordo que a gente possa fazer...

— Não há acordo entre homens e leões (A Ilíada). Se eu chegasse cinco minutos antes, impediria que você ultrapassasse a linha. Você seria um homem, ainda. Eu o deixaria amarrado neste terraço, para os policiais que estão subindo as escadas. Mas agora você provou sangue, é um cachorro louco, uma doença. E eu sou a cura.

— Esse eu conheço! É do Stallone Cob...

Pff.

OS CINCO MINUTOS foi escrito por Renato Simões

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