sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 54: Ver para Crer

“A polícia interveio com energia para acabar com o tumulto resultante da pancadaria generalizada entre os Lanceiros de Odinn e os seguidores do Templo Maior de Melkart. O conflito deixou um saldo de vinte e cinco feridos, alguns em estado grave”

“Juliano Paradas, líder do movimento Alunos de Baco, foi preso e será levado a julgamento por estelionato, curandeirismo e corrupção de menores.”

“Henriette Dubois, sobrinha do fundador da seita Filhos de Marduk, chegou ao Brasil onde planeja fundar mais uma emissora de televisão. Continuam em andamento as negociações para a compra da pequena TV Tupinambá.”

“A sua vida não prospera! Você continua pobre porque não descobriu ainda a verdadeira fonte das Riquezas do Mundo! Aceite Dis Pater em seu coração, meu amigo!”

“A construção da majestosa Igreja de São Tomé em pleno coração da Zona Sul carioca continua gerando polêmica. A prefeitura nega ter sofrido pressões para liberar o projeto.”

“Ver para Crer é a mensagem que São Tomé nos deixou. A imponência da nova basílica, em estilo gótico, é coerente com este objetivo!”

Janice Mendonça continuava repassando as diversas partes do documentário “Ver para Crer”, que ela e sua colega de faculdade Kelly Branco estavam preparando como projeto final. Era tão extenso o material que já haviam recolhido a partir da pesquisa de fontes, que com certeza teriam que deixar muita coisa de fora.

A idéia para o documentário surgiu pelo grande impacto que estava tendo a construção da nova basílica de São Tomé. A idéia de uma catedral gótica sendo erguida em pleno século XX soava como surreal para Janice. Foi quando Kelly lhe apresentou alguns esboços de uma tese sobre como o fanatismo religioso parecia estar crescendo em progressão geométrica no mundo. A proliferação das mais diferentes seitas seguia em ritmo acelerado, e até mesmo antigos cultos da Antigüidade eram assimilados, remodelados e convertidos em modernas religiões hi-tech, com redes de televisão, pools empresariais e poder político atuante nas assembléias. Janice e Kelly queriam através de seu documentário denunciar o aumento do fanatismo religioso e a exploração da ingenuidade de pessoas desesperadas.

O toque do celular, em ritmo de Aquarela do Brasil, dispersou a concentração de Janice, que teve que interromper a seleção das imagens gravadas. Não identificou o número de quem ligava.

— Senhorita Janice Mendonça? — disse uma voz feminina e melodiosa.

— Sim, sou eu, quem deseja?

— Meu nome é Vanessa Ramos, falo em nome da TV Legião Celeste.

Janice tentou se lembrar onde havia ouvido este nome.

— Senhorita Janice? — perguntou a voz, percebendo o silêncio prolongado da interlocutora.

— Desculpe, prossiga... — continuou Janice, lembrando-se de que esta emissora era propriedade da seita Anjos da Vitória, uma ordem supostamente cristã que misturava conceitos tão díspares como auto-ajuda, metáforas militares e maniqueísmo intransigente. Eles também seriam citados em seu documentário.

— Sabemos que a senhorita está fazendo um documentário sobre religiões, e queríamos que soubesse que apreciamos muito o seu talento.

Janice ficou pálida.

— Quem disse isso para vocês? Qual o seu interesse? — gritou Janice, com um tom indisfarçavelmente antipático. Será que alguma das suas colegas de faculdade pertencia à Anjos da Vitória?

— Não há necessidade para a rispidez, Janice. Insisto que reconsidere sua opinião sobre nós. Realmente gostamos do que vimos e gostaríamos de contratá-la para fazer parte da diretoria de nossa emissora de TV. Estamos em busca de produtores criativos.

— Eu não trabalho para igrejas! — esbravejou a universitária.

— Os Anjos da Vitória não são uma “Igreja”, tampouco nos consideramos uma “Religião”. Somos apenas pessoas renascidas que encontraram nos poderes celestes a chave para alcançar a Vitória em suas vidas. Nossa oferta continua de pé. Não estamos exigindo que a senhora se converta, queremos apenas contratá-la.

— Eu vou desligar...

— Nós oferecemos um salário mensal inicial de R$ 8.000,00, com amplas possibilidades de aumento gradual. Só queremos que a senhorita faça o que sabe fazer: produzir.

— A cifra era impressionante. Janice, cuja vontade era desligar o telefone na cara da tal Vanessa, já estava fazendo contas. Cinco mil reais de cara? E Kelly, o que diria?

— Estou envolvida num projeto com outra pessoa, eu não posso...

— A Senhorita Kelly já foi contatada.

— E ela...

— Ela também está em nossos planos. Prometeu nos dar uma resposta em uma semana. Queremos ambas trabalhando conosco.

“Nossa, eles dobraram a Kelly?”, pensou Janice, surpresa com o poder de persuasão da seita, que conseguiu convencer até mesmo uma militante marxista e atéia a “pensar no assunto”.

— Eu prometo o mesmo. Em uma semana eu terei uma posição.

— Não nos ligue, nós entraremos em contato. A Vitória está ao alcance de todos!

Janice desligou o telefone, e começou a pensar. Como recusar uma proposta irrecusável como esta? Precisava ligar para Kelly e saber o que sua parceira estava pensando.

Cinco Mil Reais.

Cinco Mil Reais.

“Estarei me vendendo?”, pensou a estudante com uma pontada de remorso. “Não, não eles não podem me comprar! Aceitarei o emprego, e farei meu trabalho sempre seguindo minha consciência. Caso me façam alguma proposta que fira meus princípios, eu pulo fora! Meus princípios valem muito mais que um belo salário”, sentenciou.

Ver para crer...

VER PARA CRER foi escrito por Simoes Lopes

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