Como um elefante que se desgarra da manada pra morrer, Aureliano, Grão-Mestre da Ordem Martiniana da Escola Liturgista, afastou-se pra o anonimato a fim de cumprir sua sentença última. Desde há muitos meses, ele percebeu a aproximação sub-reptícia da Parca. Com seus olhos iluminados, vislumbrou a doença e a atacou. Mas seus poderes pareciam inúteis para contê-la. Esmiuçou, então, suas causas. E viu o germe extemporâneo de desequilíbrios passados. Encerrou seus negócios, distribuiu ordens, conversou com seu sucessor.
Nos meses de agonia, Aureliano provou muita dor. Reclamava o mínimo possível, porque não queria remédios que nublassem sua consciência. Percebeu então que a própria dor toldava seus raciocínios. Decidiu então que, não sendo um homem comum, não enfrentaria seu ordálio de maneira ordinária. Saiu do hospital, reuniu seus livros e foi para as montanhas.
Os dias passavam lentos, como os dias de qualquer moribundo. Inicialmente, ele achou isso um martírio, mas com a inteligência aguda com que Deus o presenteara, começou a mudar sua perspectiva. Percebia que seus poderes mais desenvolvidos não lhe serviam para mitigar a dor. Aceitou isso. Começou então a usar cromoterapia e seu conhecimento de herbologia para atenuar os sintomas mais prostrantes de sua moléstia. Capacitou-se para a meditação e ficou satisfeito com tanto.
Não escrevia nada; passava o tempo em reflexões ou orando. Gostava mais e mais de orar, conforme o tempo passava. Apesar da relativa beligerância de sua Ordem, fora sempre um Franciscano em seu coração. E passava o tempo apreciando a natureza, o calor do Sol, e o frio matutino que encharcava seus cabelos com a umidade.
Numa manhã, seu discípulo mais amado, uma moça franzina de olhos inteligentes, apareceu. Ele aceitou isso também. Ela o ajudava em sua higiene pessoal; o levava da cama para sua cadeira e o alimentava. Ao fim do dia, o levava para sua cama de novo e velava seu sono.
Sentindo que a sombra se aproximava, chamou a moça para perto de si e recompensou seu silêncio:
“Aceita tudo o quanto te prescreve a Natureza Divina; seus remédios são amargos, mas deves suportá-los na esperança de saúde.
Observa bem tuas reações diante da dor; nós fugimos dela o tempo todo, mas é como o ferro bruto fugir do fogo que o amolecerá para que seja forjado. O mais fascinante é que a dor o torna maleável para que você mesmo se possa forjar.
A dor esclarece: nossa senda nos traz muitas ilusões de onipotência, mas a dor mostra a nossa humanidade. E perceber nossa humanidade é realmente encontrar o que há de divino em nós.
Aproveite o momento: este sol, esta luz, este ar passarão, e nada há que os traga de volta. Marco Aurélio já dizia que o que vive muito e o que morre cedo perdem a mesma coisa: o presente. Desfruta então o presente para que, quando vier a morte em teu encalço, possa pesar os dias e dizer ‘morro porque vivi’, e não ‘morro sem ter visto a vida, presa de lembranças ou imaginando o futuro’.
Lembre-se sempre destas palavras; você ouve tudo isso com boa vontade, mas jamais se engane, porque só as compreenderá realmente quando vergar sob o peso da dor.”
Suspirou longamente e acomodou sua cabeça. A jovem fez enfim uma pergunta:
“O senhor, ouviu tudo isso antes e só compreendeu agora?”
“Oh, sim, há muitos, muitos anos, antes de ter ouvido falar de alguma coisa como iniciação. Uma bondosa senhora, no catecismo, numa igrejinha do interior. Mas não era ela quem falava.”
“Quem, então? O que ela disse?”
“João... capítulo quinze...versículos um e dois.”
E calou-se. Sua respiração cessou num único sopro... ruach. Ela segurou sua cabeça, agora estranhamente pequena e leve, beijou seus lábios e cerrou seus olhos. Pegou a pequena e surrada Bíblia de páginas amareladas que sempre estava ao lado de seu leito, e procurou o quarto evangelho, escrito pelo apóstolo amado do Senhor:
“Eu sou a vide verdadeira, e meu Pai é o jardineiro. Corta toda vara que em mim estiver sem produzir fruto; mas toda a que der fruto limpa-a para que produza fruto ainda mais abundante”.
Ela leu e compreendeu. Toda a vida de seu mestre fora cega, mas diligentemente, uma parábola só decifrada por ele em seu fim. Como o ramo profícuo da videira que chora ao ser cortado, fornecendo o fruto e alimentando a terra com as gotas de sua seiva, seu mentor ofereceu fruto e foi cortado. Agora, após o pranto, após alimentar a terra com sua seiva generosa, está pronto para frutificar de novo, com mais abundância. Aqui? Além? Pouco importa — o espírito sopra onde quer...
A jovem volta ao corpo de seu mestre para prepará-lo, e com ternura e resignação entrega-se ao ofício das carpideiras.
“Está consumado!”
A VIDEIRA E OS RAMOS foi escrito por Renato Simões
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