segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Rebelião 32: Areias Escaldantes


O sol quente fustiga a terra seca sem dó nem piedade. Em meio a cactos gigantescos do deserto do Arizona e junto a uma moita de espinheiros ressecados, ergue-se uma pequena cabana de madeira.

Lá dentro, sentada num chão duro de terra batida, uma mulher de pele morena e com longos cabelos negros trançados. Ela está meditando, inspirando e expirando num ritmo vagaroso. A nome da moça é Valentine Crow, e a cada dia ela repete religiosamente o mesmo ritual metódico. Seu único alimento vem de algumas cabras que ela cria num curral improvisado, e de hora em hora ela medita e reza para que os espíritos a atendam.

Já se passaram cinco anos desde que ela foi chamada a última vez pelos shedim. Cinco longos anos. Sessenta meses. Mil, quatrocentos e oitenta e cinco dias. Vem sendo muito doloroso para Valentine não se comunicar com os elementais. Mas mesmo assim, com a tristeza profunda de sentir-se esquecida e solitária no deserto, ela jamais deixou de fazer sequer um de seus rituais cotidianos. Assim foi, e assim será.

Na mesinha tosca, a única mobília existente na casa, alguns frascos e utensílios de vidros estão dispostos numa orientação aleatória. Entre eles, uma garrafa de tequila, roubada pela moça há muito tempo atrás. Ela coloca um dedo do líquido num copo de metal, e sorve a aguardente lentamente, enquanto observa a horrível larva quase desfeita que bóia dentro da garrafa.

Ela percebe uma bolha formando-se dentro do álcool. Depois de algum tempo, surge uma segunda bolha. E uma terceira. E mais....

A tequila começa a ferver bem diante de seus olhos, fazendo Valentine largar a garrafa, que cai no chão e se espatifa, deixando um rastro flamejante no chão. As chamas azuladas se espalham na velocidade do pensamento, e em poucos segundos um incêndio avassalador engolfa a cabana com tudo que está dentro, inclusive a pobre índia.

Em meio aquele inferno crepitante, a moça só faz sentar-se e começar a entoar uma alegre e melodiosa canção. Não há ninguém por perto para assistir a tão insólita cena.

Tão rápido quanto começou, as chamas se dissipam imediatamente, deixando tudo milagrosamente intacto, com exceção de um único foco que arde exatamente onde antes estava a garrafa quebrada.

Valentine Crow levanta-se com ar altivo e de satisfação. Numa pequena prateleira metálica em sua mesa, ela pega um pequeno bisturi, com o qual faz uma incisão considerável no peito. Com cuidado, flamba o bisturi ensangüentado nas chamas que ardem à sua frente. O fogo muda de cor, e parece ganhar vida, assumir uma forma estranhamente improvável.

— Salamandras, aqui estou eu para servi-las! O fogo ainda arde em meu espírito! — grita a morena, enquanto vê as labaredas ganharem a forma errátil de uma criatura viva.

Enfiando a mão num pote de cerâmica, ela retira um cristal multifacetado de cor carmesim. Ao contrário do que parece, tal pedra não é um mineral verdadeiro, mas uma complexa criação alquímica, semelhante aos antigos bezoares dos tratados medievais.

Ela aperta o cristal contra sua ferida, fixando-o no peito. Ela chora vertiginosamente, e sente suas lágrimas quentes como fogo.

Foi uma longa espera. Uma dolorosa espera, quando por muitas vezes ele sentiu-se só e abandonada.

Mas toda a sua fidelidade havia sido recompensada mais uma vez.

A moça de cabelos negros não era mais Valentine Crow, uma descendente mestiça de índios do deserto.

A partir de agora, ela voltava a ser Phlox, da espécie dos Homo Igneus, um Avatar das Salamandras.

Seus mestres, os Shedim ou Elementais, precisavam dela mais uma vez. Uma nova missão a esperava.

Phlox jamais recusava uma missão.

AREIAS ESCALDANTES foi escrito por Simoes Lopes

Retorne ao Universo Germinante

Nenhum comentário: