segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 35: O Edda Apócrifo


Contava meu avô Érik Ólafsson que quando o monge islandês Snorri Sturluson preparava sua compilação de lendas pagãs por volta do ano de 1225, teve como companheiro e auxiliar em seus estudos meu bisavô Ólaf Egilsson, que então era apenas um jovem e idealista candidato a religioso. Anos depois, meu bisavô veio a conhecer uma bela mulher que tornou-se sua mestra tanto nas artes tortuosas do amor assim como no conhecimento dos sombrios mistérios que nos mantêm todos presos à Grande Mentira que aprisiona este mundo de mentes adormecidas. E foi assim que noviço Ólaf Egilsson deixou de ser um monge cristão para tornar-se um Brâmane Liturgo. Ele transmitiu seu vasto cabedal de sabedoria para seu filho único, meu avô Érik Ólafsson, que por sua vez transmitiu-os a meu pai Thorsteinn Ériksson. Meu saudoso genitor, antes de sua morte precoce nas mãos de nossos inimigos impuedoso, ensinou boa parte do que sabia a mim, Magnus Thorsteinsson. Como todos em minha singela linhagem, eu também tornei-me um Liturgo.

O conjunto de lendas nórdicas realizada por Snorri tornou-se conhecida como o Edda em Prosa, mas meu bisavô teve acesso às mesmas fontes que seu companheiro de monastério, e graças a isso, hoje eu um dos poucos a compreender verdadeira história por detrás daquela tola colcha de retalhos remendada que os mitólogos tolamente consideram como a fina flor da Mitologia Escandinava. Se Snorri quis deliberadamente esconder da Verdade, ou se apenas não teve a capacidade de enxergá-la, ainda é tema de incessantes debates intermináveis nos círculos Litúrgicos. Mas o fato é que os fragmentos da Realidade embaralhados e salpicado no meio de tantas lendas e mistificações foram decodificados e analisados detalhadamente por meu querido bisavô, resultando num impecável manuscrito zelosamente guardado por ele.

Após a morte dele, a guarda dos documentos ficou por conta de meu avô, que depois transmitiria tão importante obra a meu pai que, por sua vez, confiou sua guarda a mim. Por uma série de infelizes circunstâncias que ainda me causam profunda vergonha, estes registro apócrifos estão perdidos para todo o sempre, mas buscarei relatar tudo aquilo de que me recordo nesta mal traçadas linhas.

Há muitos milênios atrás, a Europa estava coberta por uma densa camada de gelo, e os humanos habitantes do distante Norte viviam em um estágio atrasado, tanto física como espiritualmente, e não passavam de escravos de uma tribo de opressores conhecidos como Gigantes do Gelo. O medo e o desespero faziam dos homens um povo pequeno e tímido, que eram ensinados desde o nascimento a aceitar seu estado de escravidão e infelicidade como algo natural e definitivo. Eles não odiavam seus algozes, mas os veneravam como deuses vivos.

Um dia, chegou àquelas terras uma tribo de estrangeiros vindos do Leste — detalhe este que Snorri curiosamente manteve em sua descrição, ainda que de maneira corrompida: ele chama a estes forasteiros asiáticos de Aesir — liderados por um conclave de sete mulheres, na verdade sete jovens moças, que seriam crianças para nossos padrões atuais de pensamento. Seus nomes verdadeiros nos são desconhecidos, mas eu prefiro chamá-las pelos nomes que a narrativa tortuosa de Sturlusson nos deixou: Frigg, Saga, Eir, Gefjon, Fulla, Freyja e Sjöfn. O que o monge descreve como sendo as sete primeiras de uma longa lista de deusas Ásynjar, na verdade eram um grupo de Iniciadas, cada uma representando os primórdios de cada uma de nossas Escolas. Eir, por exemplo, a “Deusa da Medicina”, era uma Medicinal; Saga, a personificação das sagas heróicas, uma Mecenas; Fulla, a guardiã dos segredos, uma Liturga, como eu e meus ancestrais; Sjöfn, dedicada aos pensamentos dos homens e mulheres que amam, uma Filosofista; Frigg, a Rainha e Mãe dos deuses, uma Poliética; Freyja, que dominava as formas mais incríveis de magia, uma jovem Alquímica; e para finalizar, Gefjon, a deusa que aparece nas lendas escandinavas cortando a terra com um arado, abrindo canais, moldando ilhas e formando lagos, uma Tecnóloga.

O que o monge omitiu de seu prosaico Edda é que estas sete Iniciadas ensinaram ao povo primitivo que eles eram capazes de mudar o mundo inóspito onde viviam, e que era possível derrotar a força descomunal dos Gigantes do Gelo. Ensinaram-lhes que uma monstruosa serpente envolvia o mundo, prendendo-o em seus anéis — por trás disso podemos perceber uma bela metáfora para os grilhões da Maya. Mostraram-lhe que a vitória final viria quando chegasse aquele que viria para liderá-los.

Ódinn era seu nome.

Por longos anos elas esperaram, até que num dia, quando o inverno parecia mais forte do que nunca, quando as geleiras engoliam vales inteiros, e as tempestades de gelo dizimavam até mesmo os animais mais resistentes, e as sete mulheres já ostentavam mechas grisalhas nos cabelos, uma Giganta do Gelo chegou prenhe, e caiu morta junto às sábias Ásynjar. Uma criança meio-humana, meio-gigante, foi salva do ventre de sua mãe morta, e erguida em triunfo por Frigg, que reconheceu nele o Maytréia há tanto tempo esperado. Uma nevasca assustadora abateu-se sob o lugar, arrebatando a criança das mãos trêmulas da bondosa Poliética, e nem mesmo os grandes poderes das Iniciadas foram capazes de trazê-lo de volta. Simplesmente sumira.

Muitos anos ainda teriam que se passar, e as mulheres acabaram por tornar-se anciãs centenárias, liderando os parcos sobreviventes daquele tristonho povo do Frio. O jugo dos Gigantes do Gelo parecia mais forte do que nunca, e até mesmos as Sete acabaram capturadas e aprisionadas.

Foi quando Ele retornou.

A criança roubada tornara-se um homem maduro, de barbas cinzentas, que chegou das terras misteriosas do Leste. Carregava uma enorme lança talhada de madeira de freixo; um de seus olhos havia sido arrancado, e de sua órbita negra e vazia, faiscavam fugazes chamas azuladas; em seus ombros pousavam dois enormes e ameaçadores corvos de penas negras; e a seu lado caminhavam dois enormes lobos de pêlo prateado, de caninos salientes e olhar feroz. Os uivos das feras e os gritos dos pássaros fizeram com que os grilhões que prendiam as senhoras dissolverem-se, e pela primeira vez em milênios, a luz do Sol alcançou aquelas gélidas paragens boreais, brilhando forte. A enorme camada de gelo começou a fundir-se formando uma bacia de caudalosos rios velozes.

Dizem que Ódinn, o Caolho, o Barba-Cinzenta, o Enforcado, pelejou contra os Gigantes do Gelo e matou a todos. Conta-nos o Edda que ele matou Ýmir, o Primeiro dos Gigantes, e que o seu sangue jorrou em tamanha quantidade que deu origem aos mares que cobrem nosso mundo. As geleiras então recuaram, e grandes florestas cresceram para cobrir a terra outrora tão inóspita e vazia. As Sete Iniciadas regozijaram-se ao saber que haviam atingido seu objetivo, e — minhas lembranças são um pouco confusas quanto a isto — teriam morrido todas ao mesmo tempo. A liderança da tribo passou ao filho mais velho de uma delas, conhecido como o “O Trovejante”. Dizem que Ódinn construiu uma cidade de torres douradas para si mesmo que uns chamam de Valhala.

É aqui que a lastimável perda dos originais vem a prejudicar minha pálida tentativa de reconstituição: recordo-me de ler que Ódinn jamais deixava os muros divinos de sua cidade. Os caçadores do Norte sussurravam em suas conversas ao pé das fogueiras que seu salvador tornara-se um deus imortal.

Mas as Trevas sempre estão à espreita, e aquela Era Dourada estava destinada a ter também um fim. Os inimigos da Realidade, os sicofantas da Avydia, juntaram sua forças, amalgamando inúmeras facções num exército de proporções jamais vistas. As terras ao redor do Valhalla tremeram com uma batalha de proporções apocalípticas, onde guerreiros mágicos digladiavam-se numa fúria indomável. Dragões enormes, Gólens de fogo e gelo, lobos monstruosos atacavam os defensores da tribo, e o próprio Ódinn teve que deixar seu palácio para engajar-se no combate. Sua lança ceifou muitos monstros e inimigos; seus corvos voavam por todas as partes, bebendo o sangue e comendo a carne dos nefastos guerreiros; seus lobos de pêlo prateado atacavam com uma fúria insana, suas garras e presas afiadas ceifando vidas como se fossem um Anjo da Morte.

Mesmo assim, Ódinn foi derrotado.

Diriam as lendas futuras, num reflexo distorcido do que acontecera naqueles tempos míticos de outrora, que o bravo herói foi devorado pelo demoníaco lobo Fenrir.

Assim, mais uma vez, a Maya foi preservada, e seus asseclas puderam seguir a sua triste rotina de adormecer o mundo das mentes cativas.

A batalha deixou sobreviventes, que persistiram em deixar preservadas suas memórias, repassando-as aos seus filhos, que repassaram aos seus netos, e assim por dezenas e dezenas de gerações.

É com muito orgulho que eu, Magnus Thorsteinsson, o mais tolo e incapaz dos Liturgos, trago assim registradas as reminiscências destas antigas tradições, e espero assim mantê-las vivas.

Lamentarei até o fim de meus dias ter perdido os originais preservados a tão duras penas por meus pares, e deixo claro que se este texto contiver alguma falha ou inverdade — o que é provável —, serei eu mesmo o responsável por tais falhas, por não ter conseguido reconstituir a total integridade dos relatos.

Rogo para que ainda existam mais fragmentos da verdadeira história, preservados por outros Iniciados, em outros lugares. É nosso dever continuar procurando por eles, meus irmãos.

A busca pela Verdade é árdua e ingrata.

Mas eu não desistirei.

O EDDA APÓCRIFO foi escrito por Simoes Lopes

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