Uma figura solitária em seu centro, nos limites da percepção daqueles que já abriram seus olhos.
Três cores viajam pelo lugar: o branco das nuvens que viajam pelo céu azul, e o escarlate de um poente outonal, logo ali, um horizonte além.
Um jovem sonha.
Uma grande espiral surge, à sua frente, o lampejo criativo e desenfreado que a tudo forma, e a tudo muda. Observando atentamente, o jovem muda com ela, uma criança, um embrião, asas, escamas, auréolas e chifres surgem randomicamente em seu corpo, fruto dele mesmo... ou de outro alguém?
Um forte tremor, com um estrondo, chama sua atenção. Um monolito se avulta em outro dos extremos do prado. A forma do jovem se estabiliza, estática. Ele contempla a si mesmo, extático. Duas mãos se abrem diante de olhos arregalados. Cabeça, corpo, e membros, definidos perfeitamente de infinitas possibilidades.
Uma sombra. O jovem olha, não mais jovem, velho e recurvado pela idade. Sua vista, já fraca, busca focar a figura que ocupa o terceiro e último extremo do prado, mas a forma é embaçada, semelhante a uma grande serpente escura, apenas um borrão que não pode ser identificado. Um momento passa. O corpo é agora terra que se mistura ao solo fofo do local.
Uma voz sem som, grita, em um sussurro propagado na infinidade de um único ponto:
Quem sou eu?
Quem sou eu?
A pergunta ecoa pelos céus e pelo prado, pesada como um astro no firmamento.
A figura solitária contempla o mundo ao seu redor. E percebe que náo tem mais olhos.
É isso? Sou nada?
Dentro de si, uma ausência cresce, opressora. Por momentos que se prolongam em uma era de solidão. Então a resposta surge, um brado de luz com cheiro de vida:
Não.
Um novo olhar, agora para dentro. Uma alma incompleta, nua, no firmamento. Um esboço de forma, um rascunho de perfeição. Faces de deuses sem rosto, rugidos de bestas ancestrais que há muito perderam a voz, conceitos que mudam com a inconstância do ser que é o complemento do espírito: Humanidade.
Um sorriso se forma, com a lua crescente que a pouco não brilhava. Estrelas brilham sem piscar. Então, sem porque, um mundo inteiro toma forma. O prado se expande em todas as direções, com oceanos e montanhas. O monolito se encontra, agora, no meio do ciclone, impedindo-o de mudar. A serpente envolve a ambos, a o monolito racha e se esfacela. De seu pó surge um novo ciclone, seus fragmentos erguidos por eles e reunidos em um novo monolito. E o ciclo se renova. E um embrião a tudo contempla, sem nome, mas ainda assim curioso. A morte e o Renascimento lhe dão uma forma: um jovem rapaz. Muitos nomes ele terá. Como uma alma, ele não mais sente o Nada interior, mas busca em si mesmo, as chaves do Tudo que guarda para seu companheiro, alguém que se auto-intitula: Humano.
O tempo passa; a Roda se move rumo a um novo giro.
"Ele" não mais se encontra sozinho. Ele passa através das vidas, através do mundo, sempre ligado a um amigo, ou discípulo, a um plano; um plano de ação, um plano de existência. Ele segura consigo as chaves da Realidade, e as revela, parcialmente, conforme o prado em que vive e que faz parte de si mesmo muda e se adapta às percepções de seu companheiro mortal.
A cada passo dado no prado, uma chave é liberta, um lampejo de revelação é mostrado; "Ele" sorri, mesmo quando é visto sem boca, ou quando é apenas uma idéia ou uma voz. Pouco a pouco, ele cresce, e mais e mais faz compreender.
Uma nova era chegou. "Ele" sabe que agora é o momento de assumir um novo nome, quando seus companheiros retornam, e outros como ele se lançam sobre a Terra, desesperados por alcançá-la, sem um companheiro que os ajude. "Ele" protege seu companheiro e a si mesmo das investidas incessantes destes pobres seres incompletos...
Hoje, "Ele" é uma moça. De longos cabelos crespos. Um ar sábio lhe empresta confiança, e seu novo-velho pupilo tem muito que aprender. Conforme caminham juntos no prado, os dois vêem o terror que toma almas descarnadas Juntos, dâo-se as mãos e passam por uma Tempestade. Juntos, buscam uma resposta, uma pista
Juntos, vêem o mundo morrer pouco a pouco.
"Ele" tem outro nome agora. "Maytréia", é como alguns a chamam, "Inimigo", ou "Aliado", a qualificam. Mas isso não importa. Pois ela sabe que, sem ela, milhões sucumbirão... embora não necessariamente à morte.
Um prado triangular
Em seu centro, um lago, como olho negro à noite.
Neste, qual pupila prateada, a lua brilha, no céu e aqui.
A superfície límpida reflete não apenas o satélite celeste, mas planos acima e abaixo e aqui, eventos do passado e do futuro... e os olhos de uma jovem... e pesar.
Ela mostra este prado, ensolarado como foi um dia; mostra pessoas que o visitaram em diferentes momentos; e mostra o fim. Inexorável.
Uma lágrima cai, triste.
As imagens do futuro se deformam. Não há muito mais a ver quando se desistiu. Rostos espectrais flutuam pela água, brilhantes como fogos-fátuos, e tão mórbidos quanto. Um outro rosto, molhado por duas trilhas gêmeas, os contempla... e recua, em pavor, reconhecendo-se entre eles.
Uma estrela brilha, tímida, no céu. Um par de olhos volta-se para ela, e enche-se de rubro. Quatro exércitos colidem, muito longe, um suspiro além, onde os mortos viviam, e os vivos sonhavam.
Hoje, há apenas o pesadelo do fim.
A lua prateada desce do céu.
E assim termina uma história.
A história de um mundo cujos filhos mais brilhantes não compreenderam seu papel: com uma lágrima que ondula a superfície de um lago.
Uma jovem cuja forma refletia os anseios e temores de incontáveis pessoas observava a tudo... e lutava. Ela viu almas se despedaçarem em desespero contra uma barreira leve como uma mortalha; viu gestos invocarem poderes que os deuses invejariam; viu mecanismos apenas sonhados pela ficção.
E os viu perfeitos. Os viu terminados.
Em um tronitroar que os ouvidos não localizam, almas de bilhões enxergaram, finalmente, seus erros; enxergaram a Unidade perdida, a Reunião abandonada. Contemplaram em horror incontido atrocidades inúmeras... e as viram empalidecer diante de alguns poucos atos puros.
A balança pesou. Seu movimento fez a Grande Roda girar, mais uma vez. Seu ápice passou, e chegou novamente.
E a tudo isso, a jovem assistia, em seu prado triangular.
Uma vez mais, ela viu o ciclone, o monolito e a serpente. Dessa vez, não se indagou nada. Apenas chorou. Lágrimas rolaram por sua face gentil por uma Humanidade tola demais para perceber sua grandeza, mesmo sendo presunçosa o bastante para exaltá-la.
Três lágrimas caíram ao chão, e uma quarta, entre elas.
E a jovem sorriu. Não por ironia, nem melancólica, tampouco. Ela sorriu pela mesma razão que trazia lágrimas aos seus olhos.
Ela compreendia. O fim, o julgamento; palavras vazias. Enquanto a Roda girava, esmagando uma era sob seu peso, revalava outra face da Divindade; longe de ser destrutivo, o fim explodia com Criação, quando cada um, agora sem escolha, via seu papel pregresso... e sua função futura. No fim, a esperança deixa de existir por um momento, dando lugar ao entendimento. Mesmo enquanto o prado triangular se desfazia, para sempre, dando lugar a outra coisa, a jovem mantém seu sorriso; suas escolhas, sua crença, a trouxeram aqui. Seu caminho se cruza com infinitos outros, e cada passo cria outra possibilidade, em outro tempo, outro lugar.
Pois a Roda gira sem parar. Sempre adiante. Sempre acima. Rumando até que tudo se torne plano outra vez, a montanha que dá lugar à mandala.
E duas lágrimas, emoldurando um sorriso.
UM PRADO TRIANGULAR foi escrito por Patrícia Peret
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