segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 29: Uma Nova Visão


Só sabe o valor de alguma coisa aquele que teve algo e a perdeu. A saudade é conhecida apenas por quem teve um grande amor. O custo do dinheiro é percebido somente por quem suou sua camisa por ele, ou por aqueles que o tiveram, mas acabaram perdendo. O sentido da visão só é valorizado por quem deixa de enxergar. Este é o meu caso.

Eu tinha apenas 23 anos, e minha principal função era ir a festas. A faculdade de História era apenas uma distração. Foi quando as dores de cabeça começaram. A princípio, não dei muita bola, devia ser a cerveja. Mas com o tempo, eu não conseguia mais suportar, e acabei indo me consultar com um oftalmologista.

O doutor Raul era um médico experiente, já tinha mais de trinta anos de carreira. Quando me examinou, ele ficou muito assustado. Um, porque eu estava perdendo minha visão e não tinha nem mesmo percebido (na verdade, não tinha dado a mínima); e outro porque o glaucoma que eu tinha ameaçava o que restava dela, e estava muito avançado. Ele me encaminhou para um cirurgião colega seu, e eu fui lá.

A esta altura, minha mãe já estava me acompanhando, mais preocupada do que eu. Chegamos no dito consultório, mas descobrimos que ele só atendia no particular, e minha família não teria condições de pagar. Tivemos de ir para a fila do SUS.

A espera não foi curta. Após aproximadamente um mês minhas dores de cabeça pareciam insuportáveis, e eu já não conseguia ler algumas placas enquanto seguia para minha consulta. O médico era uma pessoa muito atenciosa, apesar de tudo, e sentiu a urgência da minha situação. Ele mandou procurarem um leito para mim, mas por enquanto eu precisava ir para casa. Foi o que fizemos.


O meu quarto do hospital era muito limpo, embora eu já quase nem percebesse isso. Das visitas que eu recebia, muitas eu só identificava quando falavam comigo. A esta altura dos acontecimentos, eu realmente já estava ficando apavorada com a situação.

Muitos médicos vinham me visitar, e a cirurgia parecia que nunca ia acontecer. Eu já estava começando a desconfiar. Muitos exames eram feitos em mim, de sangue, raio-x, tomografia, uma infinidade. Foi quando ocorreu aquela fatídica reunião. Meus pais e alguns médicos vieram falar comigo. Eles disseram que minha situação era crítica, e que talvez a operação não resolvesse meu problema. Inclusive, poderia acelerá-lo. Eu chorei, mas não tive dúvidas, iria me submeter à cirurgia.


Quando eu acordei, meus olhos estavam vendados, e eu teria de esperar ainda uma semana para descobrir se a operação havia dado um resultado positivo. Acho que foram os sete dias mais longos que eu já vivi. Pelo menos as dores de cabeça não me incomodavam mais. Quando por fim retiraram as faixas, eu percebi que não estava enxergando nada, e pensei que fosse decorrente do período que havia ficado de olho fechado, que a luz estivesse muito forte, ou outra coisa assim. Ledo engano, eu nunca mais veria nada.

Acho que nenhum de vocês sabe o que é estar privado da visão. Experimentem. Fechem seus olhos por alguns minutos. Prestem atenção nos sons do ambiente, aquele carro que passa ao longe, uma criança berrando no vizinho, um pingar de água naquela torneira com problema. Agora, tente uma tarefa simples, como servir um copo de leite. Garanto-lhes que não vai ser fácil. Mas e quanto a sua diversão: jogar videogame, dar uma volta na quadra, passear na Internet, ler e-mail, estes não tem a menor condição. Eu dependia dos outros para tudo. Eu precisava sair desta condição.

Minha mãe se esforçava, mas eu não estava mais agüentando aquela situação. Ela acabou procurando quem pudesse me ajudar, e por fim encontrou. Era uma entidade de assistência aos excepcionais, supervisionada por uma entidade religiosa. Alguns dos professores (era assim que eles chamavam os responsáveis pelo local) sabiam ser extremamente irritantes com relação à religião. Mas foi lá que eu conheci o professor Milton Tesser.

Ele era um homem muito calmo, mas tinha algumas idéias estranhas. No princípio, não liguei, e absorvi apenas o que me interessava; mas logo percebi que ele parecia me dar mais atenção do que aos outros alunos.

No início, até fiquei um pouco desconfiado de alguma coisa, mas ele tinha mulher e filhos, então aproveitei para escutar o que ele tinha a dizer. Aprendi a ler em braile, e muitas das minhas atividades diárias foram ficando mais fáceis. O professor Tesser me emprestava vários livros que eu decifrava com as mãos: Platão, Homero, Maquiavel, Xenofonte, Heródoto, José de Alencar, John Grisham, Paulo Coelho; autores clássicos e novos, nacionais ou internacionais, todos eles passavam por meus dedos.

Parecia que eu estava sendo preparado. A cada dia eu me sentia mais sábio, mas forte e mais saudável. Agora, eu passava o dia inteiro na entidade, e até já ajudava em diversas tarefas. Mas os melhores momentos do meu dia eram quando Milton e eu nos reuníamos, e ele me falava do que parecia ser a sua doutrina de vida. Tudo que ele me dizia parecia fazer sentido, e eu comecei a compreender o mundo de uma maneira diferente.

Um dia, ele me falou de kharma, de que o mundo era regido por leis universais e imutáveis, impostas por um ser superior, e que nossas ações poderiam ser recompensadas. Eu concordei, e ele me disse que eu estava preparado para um passo adiante no mundo do conhecimento. Estranhei, mas novamente concedi meu de acordo. Ele falou com minha família e me levou numa quinta-feira à noite no prédio da entidade.

No caminho ele me esclareceu tudo sobre a teoria da qual ele já havia dado pinceladas. Disse ainda que eu poderia mudar de opinião por enquanto, mas depois de cruzado os umbrais da verdade, eu não poderia mais voltar. Contudo, caso aceitasse o que estava por vir eu me tornaria mais poderoso, mas com mais responsabilidades. Ora, qual o jovem que não deseja ter poderes? É claro que eu aceitei.

No endereço da associação eu desci do carro, e percebi que outras pessoas estavam nos esperando. Um cheiro de velas se espalhava pelo ambiente, e uma música que parecia ser new wave espraiava-se pelo ar. O professor Tesser cumprimentou os seus conhecidos, e todos o chamavam de Primus, e pareciam ter um grande respeito com ele. Eu segui para os fundos do prédio, onde o ritual de iniciação ocorreu. Eu agora era um iniciado, e como tal tinha obrigações.

Meu aprendizado prosseguiu, e minha maior alegria foi quando eu viajei para os planos. Lá, minha visão estava restabelecida, e eu era completo novamente. Quando voltei para meu corpo, percebia que não havia diferenças entre esse e os outros planos. Eu conseguia andar pelas ruas sem me preocupar com carros ou degraus ou o que fosse, eu era invencível. Agora eu já podia paquerar algumas garotas, voltei a sair com os antigos amigos, e tudo ia muito bem.

Claro que meu tempo ficou escasso, mas acredito que ninguém iria jogar fora uma oportunidade dessas. Eu quase nem ia mais ao centro de estudos, mas continuei o desenvolvimento dos meus poderes. Um dia, o professor Tesser me ligou, pedindo urgente que eu comparecesse no prédio da entidade, pois alguns vândalos haviam invadido o local e quebrado muitos objetos. Eu disse que não poderia comparecer, pois estava indo me encontrar com uma garota. Ele não disse nada, apenas desligou.

No plano astral, onde eu costumava passear todos os dias, eu encontrei um outro Iniciado, de nome Ignato. Ele me disse muitas coisas interessantes, sobre usar meus poderes como bem entendesse, pois só assim conseguiria desenvolvê-los até sua plenitude. Foi o que eu fiz. Um dia, fui até a entidade para mostrar alguns shiddis novos que havia aprendido, meio que sozinho, meio que com a ajuda de Ignato. Contudo, um segurança do local não permitiu que eu passasse. Disse que eu não era bem vindo naquele local. Eu insisti, e quis falar com o professor Tesser. Ele concordou em vir.

A princípio repetiu as palavras do guarda, dizendo que eu não era mais bem vindo no local, e me puxou para o lado, sussurrando algumas palavras no meu ouvido:

- A Sinarquia não gosta de ver um Cinzento passeando por aqui.

Ele não me deu tempo de responder. Eu me senti arrasado naquele momento, queria pedir desculpas, dizer que não ia mais me desviar dos assuntos da entidade, mas eu não tive tempo. Fui para casa e me senti solitário. O choro veio sem eu o desejar.

Mas o telefone tocou. Eu atendi, esperando que fosse alguém da entidade, dizendo que eu poderia voltar lá para conversar. Na verdade era Guilherme, um amigo meu de balada, me convidando para uma festa nesta noite. Eu concordei em ir, talvez conseguisse usar algum dos meus truques para descolar mais uma garota linda.


Quer saber, se eles acham que sou um cinzento, é o que eu vou me tornar. Eles que não esperem que eu vá me desculpar. Caso ainda queiram minha companhia, venham atrás dela. Vou me tornar o mais poderoso Iniciado, e então eles vão se arrepender de me abandonar. E quem sabe, eu até consiga me vingar deles...

UMA NOVA VISÃO foi escrito por Henrique Luiz Panisson

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