segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 40: Perda e Ganho

Chuva e frio. Ernesto já esperava no carro desde o cair da tarde. Agora já eram pelo menos nove horas, e nem sinal de Clara sair do prédio. Observava atentamente, como se a expectativa pudesse diminuir sua dor e seu frio. Encolheu-se como se fosse assim se aquecer, mas sabia que mais do que frio apenas, o que sentia era perda, um vazio que parecia gelar até seus ossos. Resignou-se e esperou.

Uma parte de si ainda acreditava que pudesse constatar que tudo não passara de um engano. Era a parte para qual tudo isso fazia diferença, e que lutava para manter as esperanças. A outra parte sabia que eram esperanças vãs, e que no fundo nada disso realmente importava. Procurou se equilibrar, sabia que essa oscilação poderia destruí-lo. Se estivesse dividido e confuso nada poderia fazer. Respirou fundo e tentou se concentrar.

A porta do edifício se abriu, e ele sabia que era ela que saía antes mesmo que a visse pelo vidro embaçado do carro. Seu porte e modo de andar não apenas confirmaram seu pressentimento, mas também trouxeram lembranças dolorosas. Lembranças de um tempo em que acreditara...

Tentou afastar as lembranças focando sua atenção. O carro dela estava um pouco mais adiante, e ele a viu caminhar com pressa em direção a ele. Claro, está chovendo, e ela não quer se molhar. Mas não adiantava tentar se enganar, sabia que não era apenas isso. Algo no seu jeito de andar revelava outra coisa: ansiedade.

O vôley com as amigas começara às oito. Vôley era o esporte favorito dela, jogava com as amigas todas as quintas feiras. Jogava. Não era à prática de vôley que ela ia agora. Havia deixado de praticar regularmente havia já muito tempo, ele podia perceber pela sutil mudança na sua constituição física, ombros um pouco mais caídos, menos tônus muscular, esse tipo de coisa. A lembrança de sua bela e graciosa figura lhe remeteu a doce fragrância de quando chegava dos treinos, mesmo após o banho que sempre tomava no próprio ginásio. Com o lembrança, veio novamente a dor que era tão difícil de superar.

Girou a chave no contato e com o ronco do motor afastou a dor mais uma vez. Esperou que ela manobrasse e deixou que tomasse alguma distância. A noite estava calma, e ela poderia perceber que um carro a seguia. Não devo me deixar levar por impulsos agora e pôr tudo a perder.

Perda. O que mais havia a perder? Parte dele, a parte que lhe dava objetividade agora, havia deixado os conceitos de ganho e perda para trás. Para a outra parte, tudo já estava perdido, de qualquer maneira.

Concentrou-se na direção, o carro arrancou suave, e a seguiu mantendo bastante distância. Ela não deveria ser capaz de vê-lo pelo retrovisor, por isso deixou-se levar como o caçador que segue uma trilha na mata. Não precisava vê-la com os olhos, bastava seguir a linha, ela estaria no final.

E ao final da linha, encontrou o que sabia que iria encontrar, e sua última esperança de que pudesse estar enganado se rendeu. Parte de si sabia que seria assim, e apesar disso, ainda precisava manter as esperanças. Até ali, agora não mais. Lá estava a casa, e não restavam dúvidas, era dali que emanava aquela sensação pesada que vinha sentindo nas últimas semanas. Não podia se dar ao luxo de fraquejar agora, poderia ser fatal. Faria o que precisava ser feito.

Quando estacionou o carro, a algumas casas de distância, pôde vê-la entrando na casa pela porta da frente, mas agora permaneceu firme. Apagou o motor do carro e escondeu sua presença. Não iria agir com ela ali, e não poderia ser percebido agora. Esperou pacientemente, deixando que sua respiração alimentasse a força de sua ira contida.

Quando ela saiu, Ernesto a observou caminhar até o carro sem se deixar perturbar, esperou ela ligar o carro e sair. Agora era sua vez. Saiu do carro e sentiu o corpo todo vibrar, o frio se dissipara, e em vez disso, parecia haver uma fornalha acesa em seu ventre.

Podia sentir o ar mais pesado ao seu redor a cada passo que dava em direção a casa, e afastando as emanações pegajosas e perigosas, e os sentimentos de desejo e ganância, seguiu adiante. Não se deixou levar por nenhum sentimento conflitante, e na verdade, podia senti-los resvalar ao redor de si, como tentáculos escuros de um ser faminto.

Chegando diante da casa, teve a visão de um covil escuro e funesto. Avançou, tendo que lutar para se aproximar, como se nadasse contra a corrente, de um rio poluído e maculado. Pôs a mão na maçaneta e sentiu ondas de choque percorrendo-lhe o corpo, e deixou que elas descessem pelos seus pés em direção a terra.

Maldito!

Firmou-se e focou sua força interior, e a porta se abriu com um tranco. Agora não precisava mais se esconder.

Se quiser alguma coisa, infeliz, que venha buscar comigo!

O que se seguiu foi rápido. Toda a sua ira acumulada explodiu naquele momento, e ele não precisava mais se conter. Só precisou direcioná-la para a corrupção que impregnava aquele lugar, mantendo-a afastada, e para o desgraçado que a havia alimentado. Certificou-se que ele não poderia continuar com seu trabalho. Clara provavelmente não era sua primeira vítima, e nem seria a última, se ele continuasse livre para agir.

Se alimentando de esperanças, desejos e sonhos alheios, seduzindo em busca de conhecimento, utilizando os indivíduos menos atentos como meras peças, mantendo-as na ignorância e manipulando seus sentimentos, até onde ele pensava que poderia ir impunemente?

Embora Ernesto se sentisse tentado a isso, não era ele que iria puni-lo, não valia a pena, e tampouco era necessário. Ele apenas o havia desmascarado, agora as próprias sementes que o infeliz havia plantado iriam crescer e ensinar-lhe o que ele precisava, provavelmente de uma maneira bem dolorosa. E as forças com as quais ele havia lidado iriam mostrar que, apesar de oferecerem a ilusão de submissão, são as que na verdade escravizam aqueles que delas se aproximam. É fácil acreditar que se possui poder, quando se está possuído por ele. Iria se afogar na própria lama onde se metera, sozinho.

Voltou ao carro rapidamente, e não baixou a guarda até estar bem longe dali. Ao fazê-lo, no entanto, não voltou a sentir a dor das recordações antigas, e sabia que agora elas iriam se afastar cada vez mais, à medida que os restos daquela sujeira fossem se dissipando.

Ele sabia da natureza de sua relação com Clara. Havia confundido um pouco as coisas, no começo, mas isso tinha sido antes de decidir assumir seu caminho. Desde que percebera quem eram ele e ela, soube o que deveria fazer, mesmo que ela não pudesse compreender ainda.

Um dia, minha cara.

Respirou aliviado, havia cumprindo uma parte de sua missão. Tinha aquela paz e conforto de saber que havia feito o que acreditava em seu íntimo, e estava inteiro novamente. Percebeu que desde o princípio sabia que aquilo tudo não fazia o menor sentido, e riu ao pensar o quanto já fora, em seus dias de juventude, levado por idéias e sentimentos que acreditava serem seus. Sentimentos de vazio, perda e traição.

Já no apartamento, Ernesto toma um banho e se prepara para dormir. Amanhã o dia deverá ser cheio. E ela sempre liga quando tem algum problema, e quando souber que aquele sanguessuga pirou de vez (até pior, Ernesto desejou), ela com certeza vai ligar em busca de conselhos e consolo. Vendo-se livre da manipulação insidiosa do canalha, provavelmente ela vai se dar conta de algumas coisas, e ele sabia que isso poderia ser doloroso. Mas ela irá superar, com certeza, e um dia com irá compreender tudo e encontrar o seu lugar.

Enquanto isso, ele acha graça na idéia de que Clara lhe procura em busca de respostas, sendo que ela tem respostas que ele mal é capaz de vislumbrar.

PERDA E GANHO foi escrito por Diego Tartaglia

Volte ao Universo Germinante

Nenhum comentário: