segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Rebelião 2: Duelo de Gerações


Uma elegante moça de pele morena e dreadlocks volumosos andava pela parte mais sombria da cidade sem ser notada. Dhishani – era assim como se chamava - aproximava-se lentamente da parte mais escura de um beco, envolta numa densa neblina quase sobrenatural.

Nunca teve medo de nada e não teria agora. Seriam os chamados que recebera sérios ou mera brincadeira? Enquanto seus sentidos aguçados vasculhavam na escuridão, uma pesada mão se apoiou em seu ombro. Ela só iria se dar conta disso muito tempo depois, mas na hora não estranhou que alguém pudesse ter chegado de forma tão imperceptível . Dhishani se virou apontando sua faca afiada para a garganta do sujeito. O estranho era alto, seus ombros largos e o cabelo comprido. Uma barba vermelha com alguns fios amarelados cobria parte de seu peito. Seus olhos eram negros, e uma cicatriz cobria sua cara, da orelha esquerda até o canto do lábio.

Sem demonstrar a menor alteração, o homem começou a falar com uma voz baixa e rouca.
— Como pode uma Primal se vestir deste jeito? Será o que o futuro irá nos transformar em Guerrilheiros?
O tom calmo da voz só serviu para irritar ainda mais Dhishani. Com sua faca a ponto de matar o estranho, respondeu imediatamente num tom furioso.
– Quem é você para falar assim comigo? Eu me visto do jeito que bem entender...


O sujeito soltou uma gargalhada estridente que lembrava vagamente o grito de uma ave de rapina.
— Quem sou eu? Os Primais já se esqueceram dos antigos da Gênese?
A revelação quase fez Dhishani perder o controle, que tentou não hesitar. Tentou gritar algo, mas antes que alguma palavra mais fosse pronunciada, o homem desvencilhou-se e segurou Dhishani pelos pulsos, num aperto insuportavelmente forte.
– Sou Henokh, da Gênese, o Açor que paira sobre as planícies. Minhas palavras têm autoridade, menina !
Dhishani encarou profundamente o olhar de Henokh. O estranho ruivo não deixou que ela abrisse a boca.
– A Gênese é responsável pela força dos Primais ! Não me agrada vê-la vestida como se fosse uma garota de butique !


Ao dizer isso ele arrancou o piercing do umbigo de Dhishani . Dhishani não demonstrou nenhuma dor. Ameaçou um sorriso irônico, e seus dentes agora eram como presas, e suas unhas como garras aduncas.
Soltou um uivo furioso e golpeou Henokh com os punhos cerrados no nariz. Henokh foi atirado com violência de encontro ao muro. Dhishani gritou alguns palavrões e acertou um chute no queixo de Henokh.
– Ninguém fala assim com a líder do Bando Marfim! Todos os meus inimigos estão mortos, e não de morte natural! Nenhum inglês vai me ditar regras!


Henokh solta uma gargalhada, limpando o sangue que escorre dos dentes. Sua gargalhada irrita ainda mais a Primal, que num só movimento agarra uma lata de lixo, arremessando-a em seu desafiante. A lata se choca contra o muro num estrondo metálico desagradável. O outro Primal havia sumido.
Um violento golpe nas costas faz Dhishani cair, imobilizada. Henokh aproxima-se suavemente de seu ouvido e fala devagar — Eu nasci na África, menina. Antes de você nascer eu já havia mandado muitos nahash de volta ao Sheol.


Dhishani faz força, mas não consegue mover um músculo. Concentra-se então e sua mente torna-se um mosaico de sensações e em seus olhos brilham pupilas felinas douradas. Solta um miado agudo que é respondido nas sombras do beco. Henokh pára de rir, percebendo o que iria acontecer...
Lentamente, eles foram surgindo das profundezas do beco, as passadas silenciosas e elegantes. Em pouco tempo, uma multidão de gatos lotava o beco estreito. Uma avalanche carnívora de felinos frenéticos passa por cima de Dhishani e engolfa o seu oponente, com dezenas de pequenas garras e dentes afiados cortando, mordendo e retalhando. Henokh agitava os braços tentando se libertar, mas para cada animal que caía, dois novos surgiam.


Dhishani se levanta e observa de longe as dificuldades de Henokh.
— Que isto sirva de lição para você...
Um grito estridente faz os tímpanos de Dhishani quase estourarem de dor. Os corpos dos gatos desmaiados se amontoam ao redor de Henokh, e os poucos que restam afastam-se confusos. O primal volta a sorrir, e se dirige a Dhishani num inesperado tom amistoso .
— Foi uma boa lição... Eu gostei de você, garota . Você tem fibra. Estou feliz com o que vi, mas lembre-se de uma coisa...
Dhishani sente um súbito mal-estar, quando um silêncio sobrenatural envolve o beco durante um instante. Os ferimentos de Henokh começam a cicatrizar. Seus olhos começam a brilhar. A pele se empalidece, os cabelos começam a crescer. Os músculos se retesam e incham. Os poucos gatos restantes agora somem numa disparada medrosa. O corpo de Henokh cresce e vai assumindo uma forma leonina, de cor prateada, com um brilho quase metálico.
Dhishani que não pode ser considerada uma mulher baixa, mal atinge a altura do tórax do monstro. Henokh ergue o corpo da moça como se fosse um boneco. Aproximando-a de seu rosto, Henokh murmura laconicamente :
— Não subestime A Gênese...
Dhishani é largada no chão. Os músculos poderosos impulsionam o corpo monstruoso num salto que transpõe o muro, desaparecendo na escuridão. A primal inspeciona seus ferimentos, a partir deste dia se lembrará com respeito de seu adversário. Ela foi a primeira a ter um vislumbre do futuro, quando todos os Primais, antigos e novos, voltarão a andar juntos.


DUELO DE GERAÇÕES foi escrito por Simões Lopes.

Maytréia 2: Reconhecendo os seus


Eles eram em três ao entrarem no apartamento. O homem mais velho que conduzia os outros dois jovens aparentava ser mais jovem do que realmente era. Seu cavanhaque e seus cabelos o denunciavam, com sua alvura flagrante. Ele tinha feições abrutalhadas e era corpulento; apesar de tudo tinha um olhar inquisidor: parecia vasculhar todo o ambiente com suas íris cor de mel.


Os outros dois jovens que o acompanhavam eram de tez clara, magros e altos; fora isso eram bem distintos um do outro.

Um tinha os cabelos curtos e bem penteados, usava uns óculos com designe sóbrio, vestia calça social presa por um cinto preto e camisa de mangas compridas dobradas na altura dos cotovelos, devidamente enfiada nas calças. Seus sapatos estavam bem lustrados. Mantinha-se em posição respeitosa o tempo todo, um olhar assustado pelo encontro que se pronunciava. O outro, por sua vez, usava uma calça jeans rasgada, a camiseta preta presa apenas atrás tinha escrito em letras brancas bem grandes a palavra “pain”. Seus cabelos compridos teimavam em cair por sobre o seu rosto, criando o cacoete de afasta-los com as mãos. Tinha um piercing na orelha direita e debaixo da manga da camisa saía o final de uma tatuagem biomecânica, provocando a ilusão de engrenagens explodindo para fora da pele. Os tênis pareciam não ver limpeza a um certo tempo. Entrou também assustado e respeitoso, mas o sacudir constante do corpo mostrava que ele estava impaciente ou incomodado.


Na sala, uma cena cotidiana e paradoxalmente inesperada se desenrolava. Um homem idoso, com um certo ar oriental, vestindo um pijama de flanela, estava dando uma tremenda bronca em uma garota adolescente. Esta mantinha um certo ar de enfado, de quem já tinha ouvido toda aquela ladainha antes. Nas suas mãos um joystick de videogame esperava e ao fundo era possível ver a tv com um jogo de estratégia pronto para se iniciar.


- Você tem que manter a consciência e a concentração... – dizia o velho, zangado – ... essa porcaria de jogo não ajuda em nada...


Neste momento, ele percebeu a entrada dos três: - Ah! Entrem, entrem... sejam bem-vindos! – Sorriu um sorriso onde se entrevia um ou outro dente em meio às gengivas escurecidas.


O homem mais velho apresentou os outros rapazes. Eles permaneciam na postura mais respeitosa que poderiam, mas isso não impediu que eles percebessem que a garota aproveitou a distração do idoso e imediatamente se sentou de costas para todos, a atenção completamente voltada para o jogo.


O olhar do velho era severo. Ele observava de forma reprovadora os dois jovens a sua frente. Observa o jovem totalmente arrumado, solta um muxoxo de reprovação ao seu cabelo penteado e seu ar de disciplina e obediência. Solta um olhar enigmático em direção ao homem que os trouxe. Observa mais uma vez de cima a baixo e solta um resmungo.


Mas então ele vê o outro.


Seu olhar reprovador acentua drasticamente. Seu rosto vai se tornando uma espécie de máscara de nojo diante do que via:
- O que é isso, Wanderley? – Ele exclama na direção do homem que os trouxe – Esse... negócio... – Se aproxima comicamente para olhar melhor o piercing – Você usa brincos, meu rapaz?


Constrangido, este responde: - Não senhor, é um piercing...
- Um o quê? Deixa para lá... nem quero saber o que é. – Vira-se novamente na direção do homem que os trouxe – Esse é o tipo de... criatura... que você deseja tornar um Iniciado?


Volta-se para o rapaz novamente. Sua voz adquire um ar exasperado:
- Ele usa calças rasgadas! Rasgadas! Não considero homem um cara que usa calças rasgadas e brincos...
...piercing...
... brincos! Ta pendurado na orelha é brinco! Eu não sei, não...


Claramente, o constrangimento do rapaz foi se tornando uma fúria cada vez mais incontida. A vontade dele era de dar uma coça no velho. Mas então aconteceu o pior.


O velho reparou na tatuagem.


Seria cômico se a tensão não estivesse no ar. O velho parou de falar e – com a boca sem dentes ainda aberta – foi aproximando o rosto lentamente do braço onde a tatuagem se encontrava. Ainda devagar, foi levantando até ver o desenho por inteiro. O jovem tinha uma vontade profunda de recolher o braço, mais ainda tentava manter o controle. Ele realmente desejava ser um Iniciado. Só que era cada vez mais difícil manter o controle.
Isso... é... é... o que é isso?


A garota jogando, continuou concentrada no jogo, mas acabou dando uma risadinha. O gesto provocou uma reação igual no outro rapaz, que se conteve rapidamente. Foi o bastante. O rapaz da calça rasgada explodiu:
Quer saber? Vá a m&*(a!!! Não vou ficar aqui aturando isso!


Virou-se e saiu. O outro rapaz olhou assustado. Procurava uma indicação do que fazer da parte dos dois homens mais velhos. Aquele que os trouxe disse:


Vá lá... converse com ele e me esperem lá fora...


Ele se retira. Os dois homens observam enquanto ele vai embora. Quando ele sai se viram para a garota. Aquele que responde como Wanderley fala:
O que achou, Mestra?


A garota pára de jogar e se vira para os dois. Seu rosto tinha a sombra de um sorriso. Seus olhos transmitiam o conhecimento de eras guardados naquela alma. Sua voz era profunda e suave.
- Ele é perfeito. Dará um excelente Iniciado. Tem que aprender a controlar o gênio e prestar mais atenção ao que realmente ocorre ao seu redor, mas é ótimo. Se trilhar corretamente o seu caminho, poderá trazer muito à este mundo


- E o outro?


- O engomadinho? É perigoso. Faz-se de educado e respeitador. Inicie-o, mas ele carrega a sombra de ser um Cinzento no seu destino... – Fica então com um olhar triste – ...esperemos que ele não caia nela.


Os dois homens então agradecem e saúdam reverentemente sua Mestra. Saúdam-se mutuamente e Wanderley se vai. Após isso, ela volta a falar:


- Sabe qual é o maior mistério da existência neste momento, meu amigo?


O ancião sacode negativamente a cabeça. Ela sorri e se volta para a tela da tv.


- Saber como consigo passar para a próxima fase neste jogo...

RECONHECENDO OS SEUS foi escrito por Danilo Faria