sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 61: Carlos Miguel, Bastardo

Ivan aproveitou que nenhum dos três homens estava olhando para puxar o frasco de comprimidos do bolso. Engoliu três de uma vez, rezando para que o bate-estaca em seu peito diminuísse e ninguém percebesse as grossas gotas de suor que desciam pela fronte.

Nunca teria imaginado que o dia terminaria desse jeito. Estava na facção há dois anos e nunca... O dia era para ser de glória. Haviam finalmente pego Azulão, traficante que ousou intervir nos negócios de seu chefe – o simples pensar nele provocava arrepios em sua espinha.

O patrão queria cuidar pessoalmente de Azulão. Por isso eles estavam aqui, em frente a um dos prédios mais luxuosos da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ivan nunca havia encontrado o líder da facção e, sinceramente, esperava nunca encontrar. Somente as histórias sobre o homem — se é que era um homem — já eram mais que suficientes para se manter à distância.

Diziam que para chegar à posição atual, havia matado todos os outros traficantes locais — até aí, nada demais. Essa gente vive se matando mesmo. O estranho era a forma como os corpos apareciam: alguns com os tórax abertos, destroçados, como se algo houvesse forçado a saída, ou mumificados, com a pele ressecada e esticada nos ossos, mesmo poucas horas após a morte. Invariavelmente, os cadáveres não possuíam globos oculares.

Ademais, os poucos que o viram costumam se referir à sombra — ninguém com quem conversou podia descrevê-la. Todos, porém, relataram ter perdido uma parcela de sua sanidade ao ver o contorno negro que acompanhava o chefe. “Chefe”, “patrão”, só se dirigiam a ele assim — ninguém sabia seu nome, nem ele parecia se preocupar com um. Por isso os membros do grupo costumavam chamá-lo de “inominado”.

Por essas e outras, Ivan não estava nem um pouco ansioso em encontrá-lo.

Cinco homens saltaram da limusine negra: Ele, Roberto, braço direito do patrão, dois integrantes antigos da facção, e Azulão, algemado e meio que carregado pelos outros. Sua vista estava opaca e seu corpo molenga. Sintomas da droga que haviam lhe injetado.

Ivan não se surpreendeu quando as portas de vidro esverdeado foram abertas sem qualquer resistência. O prédio todo pertencia à organização criminosa, assim como várias outras propriedades espalhadas pelo país e até no exterior. Atravessaram o luxuoso saguão e entraram no impecável elevador. O brilho da insígnia referente ao 33º. andar, último do edifício, lembravam ao homem as labaredas infernais que esperava encontrar quando chegasse lá.

Mas não. Naquele andar havia apenas uma sala de estar recheada de obras de arte e uma solitária porta entreaberta. Talvez fosse imaginação, mas Ivan achou estar vendo uma espessa fumaça negra escapar pelas frestas da porta.

Teve que ser empurrado por Roberto, que se adiantou e atravessou o portal, permitindo a visão de um aposento na penumbra. Podia ver que se tratava de um escritório, com estantes e mesas rigorosamente arrumadas. As paredes, com exceção da entrada, haviam sido substituídas por janelas panorâmicas, brindando a todos com a visão esplêndida do negro oceano atlântico e das luzes das residências litorâneas.

Roberto empurrou o traficante para o assoalho de fina madeira. Puxou do bolso um estojo e dele uma seringa, espetando-o no braço do homem. Imediatamente os olhos dele perderam a apatia; levantou xingando e cuspindo, com as mãos ainda algemadas. Teria partido para a briga assim mesmo, mas o som de passos o conteve, assim como paralisou Ivan.

Saindo literalmente das sombras — o capanga não tinha uma expressão melhor — um homem moreno, talvez um resquício do negrume de onde saiu, vestindo um impecável terno italiano, se aproximou do grupo.

Ivan imediatamente sentiu-se decepcionado; tratava-se de um garoto! Não tinha mais de 25 anos. Ainda assim, atraía a atenção de todos.

— Aí está o traficante que nos causou tantos problemas, senhor — disse Roberto. — Está ao aguardo de sua punição...

O chefe não respondeu. Limitou-se a se aproximar do traficante, que balbuciava palavras sem nexo, uma sombra das injúrias de segundos atrás. Passou a sujar com baba a blusa de malha que usava. Antes que o inominado o tocasse, já havia urinado, criando uma grande mancha na calça jeans.

Foi tocado na testa pelo patrão, tendo o mesmo efeito se fosse ligado a uma tomada: seu corpo todo entrou em convulsões contidas, e as pupilas se esconderam dentro da cabeça, deixando à mostra apenas o branco entremeado de sangue da parte anterior dos olhos.

Ivan fez força para virar a cabeça, mas alguma energia o tolhia qualquer movimento. Foi assim, como uma estátua viva, que assistiu à pele de Azulão esticar sobre os ossos e seus globos oculares pularem para dentro. A visão dos dois buracos negros, insólitos na face já pontuada pela dor, o faria vomitar, se isso fosse possível. Finalmente, após uma década ou um minuto, o inominado cortou a cabeça do homem com uma faca.

Foi então que se virou, e Ivan sentiu — mais do que viu — os contornos negros que o seguiam, indiscutivelmente formada por chifres e o prenúncio de uma fina e bifurcada cauda... Foi então que sentiu a dor no peito. Durou apenas alguns segundos, tempo em que o ar da sala tornou-se espesso demais para descer por suas narinas. Caiu no assoalho, ao lado e na mesma situação da cabeça grotesca do traficante.

— Eu sabia — falou Roberto — que ele era fraco. Por isso o trouxe.

O chefe mal olhou para os corpos. Apenas distribuiu algumas ordens e garantiu recompensas para todos. Rapidamente atravessou o aposento e entrou numa porta parcialmente encoberta por uma estante, disfarçada ainda pelos entalhes da parede. Só existia uma chave para aquela fechadura, e o homem nunca a retirava do cordão que trazia no pescoço.

O quarto não era nem sombra do luxuoso escritório. Poderia ser um closet, a julgar pelo tamanho. Havia apenas um repouso para um livro aberto — a Bíblia —, e, na parede em frente, a imagem de Cristo crucificado. Diante do altar improvisado, no chão, estavam caroços de milho espalhados. O patrão puxou a calça do terno para cima, deixando a mostra a pele fina do joelho. Ajoelhou-se com ferocidade sobre o milho, rezando em voz alta para estancar o sangue que descia por sua canela..

Longe dali, em algum lugar, um rádio tocava o refrão de uma famosa música de anos atrás:

There must be an angel
Playing with my heart.

CARLOS MIGUEL, BASTARDO foi escrito por Andre Esteves

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