Mesmo após dois anos de intenso treinamento com os Mecenas, Jerônimo ainda sente um certo medo quando viaja pelos planos etéreos. Sua mestra, Bali, a quem já confessou seu desconforto, segue à sua frente moldando partículas anímicas para criar uma ponte de tijolos azuis que os leva através de uma silenciosa região onde a luz não chega.
Naquela escuridão abissial, os dois Iniciados movimentam-se com a velocidade do pensamento, singrando o vazio por meio de linha de luz ondulante que a cada pausa de Bali, congela-se na forma de tijolos.
Jerônimo permanece bem atrás de sua guia, e observa, vez por outra, algumas criaturas extradimensionais passarem em movimentos nervosos. Um enorme pássaro de asas brancas, semelhante a uma garça flamejante, dá um rasante sobre a ponte, e desaparece no negrume do infinito. O rapaz de cabelos negros vê a sua bela líder parar por um momento e fechar os olhos. A pele morena e os expressivos olhos castanhos da Mecenas javanesa parecem agora brilhar numa névoa mística azulada, e ela pede para que seu acompanhante feche os olhos, tape os ouvidos e não faça nenhum movimento.
O jovem discípulo das Artes, angolano de nascimento, faz exatamente o que a mulher ordena. Aqui, fora do Plano Físico, sabia que seu corpo astral não possuía uma “visão” e uma “audição” verdadeiras, no sentido que um cientista definiria, mas mesmo assim seu corpo etéreo possuía um contraponto anímico para seus sentidos corpóreos. Tudo o que precisava fazer era concentrar-se e bloqueá-los.
Nenhum som.
Nenhum movimento.
Olhos e ouvidos cobertos.
O tempo parece fluir em câmera lenta.
Tempo? Podemos falar de tempo nesta dimensão?
Silêncio absoluto.
Silêncio que não parece ter fim.
Ele então ouve mais uma vez a voz de sua bela amiga e mestra. Uma voz telepática que parece vibrar no âmago de sua mente.
“Preste atenção, Jerônimo. Muita atenção. Eu vou contar até sete e então pedirei que você torne a ver e escutar”, a voz de Bali era clara e melodiosa.
“Mas prepare-se para uma explosão sensorial. Haja com calma e com muito cuidado. Caso sinta-se mal, eu segurarei sua mão.”, as instruções eram rígidas.
1...2...3...
4...5...
6...
...
SETE!
Jerônimo desbloqueou seus sentidos.
Uma cacofonia monstruosamente tumultuosa invadiu a sua percepção e ele cambaleou, quase caindo para fora da ponte azul. Era como se milhões de pessoas invadissem a sua cabeça, cada uma produzindo um som intenso e desagradável. Gritos, gargalhadas, choros, palavras em todas as línguas, vivas e mortas, conhecidas ou desconhecidas, humanas e inumanas.
Sentiu a mão de Bali pousada em seu ombro. O calor que emanava da pele de sua mestra e conselheira ajudou-o a retomar o equilíbrio.
Lutando contra o próprio temor, ele foi recuperando o controle da situação. Sua visão estava muito clara e focalizada agora.
Uma luz muito tênue e mortiça banhava uma vasta região, que poderia ser definida segundo padrões terrenos como uma planície, ainda que não houvesse relva ou campo em nehum lugar.
Uma gigantesca torre, tão alta, que não parecia ter um topo, erguia-se na terra trevosa como um marco colocado por algum titã mitológico. A construção era formada por uma série de câmaras interligadas, como se fossem favos de uma colméia colossal. Cada favo era como uma janela, onde estranhas figuras movimentavam-se em meio à escuridão soberana.
Bali recitou uma oração em grego arcaico, e duas asas chamejantes envolveram o corpo dela e o de seu pupilo. A asiática ergueu-se da ponte e movimentou-se através do vazio na direção da torre.
— Siga-me, Jerônimo. Deixe que as Asas de Ícaro o carreguem.
O Mecenas africano continuava parado.
— Não tenha medo de inimigos. Tenha medo apenas de si mesmo. Voe!
Jerônimo sentiu-se com um grande pássaro, e alcançou sua mestra batendo suas asas brilhantes.
“Ícaro sonhou com homens voando como pássaros”, explicou Bali. Era algo que o africano já sabia.
— Responda-me Jerônimo. O que aconteceu com o sonho de Ícaro?
— Ele voou alto demais, e suas queimaram ao Sol. Ele caiu e morreu.
— Não, aprendiz. Eu perguntei sobre o “sonho de Ícaro”...
— Ele...não...
— Ícaro morreu — a mulher o interrompeu. — Mas não o seu sonho. Hoje os homens podem voar. Aviões de centenas de toneladas cruzam os céus, e nossos veículos podem viajar mais rápido que qualquer ave ou animal alado.
— Compreendo. Pessoas morrem, mas seus sonhos podem transcendê-los... — respondeu Jerônimo, um pouco envergonhado pela resposta errada no início.
Bali preferiu ficar em silêncio, respeitando o momento de auto-constrição de seu companheiro, e conduziu-o com desenvoltura a alturas ainda maiores. A imensa construção parecia não ter fim, de tão alta que era.
— Jerônimo, aqui é o Cemitério dos Sonhos. Estamos num lugar onde a frustração, o esquecimento e a amargura reinam supremas. É neste território onírico onde habitam, ou melhor dizendo, vivem enclausurados todos os sonhos que não se cumpriram.
O jovem Mecenas africano prestava toda atenção nos ensinanentos de sua amiga e professora. Ela planou suavemente pela escuridão etérea até bem próxima de uma das janelas que abriam-se nas negras paredes de aparência rochosa. Entrando numa câmara vazia, ele assustou-se com os fantasmas que tremeluziam a seu redor. As imagens eram erráticas, sumindo e reaparecendo, em diversos tons de branco, negro e cinza.
Um homem de meia idade recitava um poema com grande emoção. Em outro compartimento uma mulher elegante desfilava coberta de jóias e num vestido caríssimo. Mais adiante, um garoto vestia sua roupa de astronauta.
Jerônimo viu-se tomado por um grande sentimento de tristeza. Bali, puxou-o com força pela mão e ambos planaram em grande velocidade ao redor da torre. À medida que passeavam pelos favos daquela titânica colméia, imagens iam e vinham. Um rei majestoso, coberto por uma peruca branca como a neve, olhava para seu majestoso palácio. Um general caminhava por entre os cadáveres de seus inimigos.
Jerônimo sentiu-se tomado pelo desespero, e afastou-se de Bali, em um arco tão aberto que de um impulso só conseguiu chegar ao topo do enorme prédio. No alto daquela torre, um gigante tão quanto uma montanha, gritava palavras numa língua desconhecida:
— Rafel mai amech zabi almi!
Ele estava armado de um arco, e cada vez que a apontava a arma vazia para o céu, uma flecha materializava-se e zunia rumo às imensidões astrais.
Os gritos do titã eram turbulentos como uma tempestade. O Mecenas tentou tapar os ouvidos, mas lembrou-se que não estava fisicamente ali. Simplesmente resolveu desligar sua percepção.
Não conseguiu.
Os gritos continuavam.
Sentiu ser puxado para baixo, com força.
Era Bali.
Com grande energia ela arrastou-o quilômetros abaixo, trazendo-o para o interior de uma das câmaras.
— Aquele é Nimrod, o construtor da Torre de Babel. Ele é o zelador deste território. O homem que desafiou os céus, e viu seu sonho ruir. As línguas confundiram-se, e seu poderoso exército desfez-se.
— Então, a história dele é real? — perguntou ele, fascinado pela revelação.
— O que é real num universo regido pela Maya? — disse Bali, com o ar severo. — Sonhos de homens, mesclam-se a sonhos de homens, sonhos de povos, sonhos de deuses. Conceitos e idéias são digeridos e miscigenados nesta mistura confusa de energias que povoam os planos para além da matéria. Ela apontou para uma outra cela, bem abaixo deles.
Um homem barbado contorcia-se em dor. Seu corpo sangrava muito. Suas mãos e pés, cravados impiedosamente numa cruz de madeira ressequida. Os cabelos negros e a pela morena eram sacudidos por convulsões. Ele gritava de dor.
Jerônimo sentiu uma grande emoção.
— É Ele? O sonho dele morreu?
Bali limitou-se a apontar para um compartimento ao lado, onde um majestoso rei coroado, com uma majestosa cabeleira clara. Aos seus pés, papas e cardeais, cavaleiros e frades caminhavam numa massa confusa. Todos eram carregados em uma imensa liteira, por uma multidão de camponeses.
— Um sonho pode ter muitas interpretações, e pode ser contaminado e modificado pelos sonhos alheios, pelos anseios das multidões. O Todo influencia o Uno, mas o Uno também age no Todo. Você está vendo duas percepções distintas do mesmo homem, e estas não são únicas.
Jerônimo entendeu que o rei poderoso e o piedoso crucificado eram apenas dois sonhos distintos, mesclados numa mesma origem, mas representando anseios diferentes.
— Veja e compreenda, Mecenas — mais uma vez a voz da asiática ecoava. — Ambos os sonhos estão mortos. Uns viram nele um humilde e bondoso ser que sonhou um mundo de amor e paz. Outros viram nele o Pantokrator, o todo-poderoso monarca do Universo, destinado a conquistar o mundo com suas hostes de guerreiros fanáticos.
— Mas ambos os sonhos estão mortos — adiantou-se Jerônimo.
— Sim, ou, para ser mais exata, os sonhos daqueles que ansiaram por tais sonhos. A Igreja já mandou no mundo, não manda mais. Qual teria sido o sonho do verdadeiro Cristo?
Jerônimo preferiu afastar-se mais uma vez, mas desistiu da ação quando percebeu que eles não estavam sozinho. Por toda a parte era possível ver Cinzentos — suas formas astrais — flutuando ao redor dos espaços gélidos que rodeavam o Cemitério dos Sonhos.
— Cinzentos! Estamos emboscados! — anunciou telepaticamente para Bali.
— Mantenha a calma, querido. Eles não vão nos atacar.
Jerônimo não entendeu a inesperada reação de sua tutora.
— Os malditos estão absortos demais assistindo ao infortúnio que desenrola-se nestas câmaras tristonhas. A dor da perda, a morte de um sonho, todas as frustrações que povoam o imaginário humano os deixam num estado quase embriagado. São como traças esvoaçaram ao redor de uma lâmpada.
— Voyeurs astrais — completou o angolano.
Bali sorriu. — Eu gosto das suas definições, amigo. São sempre interessantes.
O Mecenas bateu suas asas de Ícaro com mais força, descendo num mergulho intenso. Bali seguiu-o sem dificuldade.
“Para onde está indo?”, perguntou ela, mantendo contato telepático.
“Vamos embora deste lugar, por favor”, respondeu ele. Ele sentia-se invadido por um maremoto de vozes oníricas, de lamentos. A todo momento, a tristeza do lugar tornava-se algo quase sólido. Sonhos que morreram. Planos não realizados. Obras não construídas. Músicas não cantadas. Histórias não contadas. Palavras que jamais seriam escritas.
Ele tomou as mãos delas mais uma vez, e já ia suplicar pela volta, quando ouviu algo.
Algo diferente.
Mas não algo novo.
Algo muito, muito antigo.
Porém familiar.
Ele olhou para uma das câmaras, e no meio das sombras e da luz débil, ele viu os contornos de seu falecido pai, Elói. Ele caminhava de um lado para o outro, lendo os poemas de um livro velho e remendado.
Jerônimo relembrou-se de sua infância, e de seu desafortunado pai. Elói Trindade, um dos grandes soldados anônimos que lutaram pela Independência de Angola. Sonhou com um mundo melhor, com uma Revolução que faria de seu país um lugar melhor.
A explosão de uma mina terrestre encerrou sua carreira militar, e colocou-o mutilado, sem ambas as pernas, numa cadeira de rodas. O imponente soldado de outrora desfez-se rapidamente.
Sua única distração era um caderno onde anotava poesias. Passava horas escrevendo, mas nem sua esposa, nem seus filhos jamais deram importância àquilo. Achavam ser apenas um hobby de um velho doente. Elói vivia falando em publicar um livro de poemas, mas ninguém quis ajudá-los. Havia outras prioridades na vida difícil que levavam.
O pobre homem morreu, e seu filho agora aprendera que seus sonhos morreram junto. O espectro de seu pai — ou melhor, dos sonhos de seu pai — vagava em um cubículo, condenado à frustração eterna.
Bali aproximou-se gentilmente.
— Vamos embora daqui. Você já viu demais. Eu não devia tê-lo trazido tão longe.
Jerônimo consentiu. “Vamos embora, não posso ficar aqui.”, pediu ele, consternado.
Bali apertou sua mão, e ambos regressaram ao Plano Físico.
* * *
Já passaram-se quase três meses depois de sua viagem astral à Torre de Babel. Jerônimo Trindade está reunido com o representante de uma pequena editora. Assim que pôde, o jovem angolano voltou à casa de sua mãe viúva, e vasculhou o quarto empoeirado até conseguir o que queria: os velhos e corroídos cadernos de seu pai. Foram necessários muitos e muito dias para digitar tudo e preservar os dados em CD, mas ele não desistiu de seu propósito.
Com isso em mente, começou a buscar de porta em porta uma editora capaz de publicar as poesias de seu finado pai.
Mais uma entrevista. Mais propostas e contrapropostas.
E mais uma vez, um sonoro NÃO como resposta.
Jerônimo deixa o prédio capisbaixo, com os CDs guardados na pasta. Ele sente dor e desânimo. Sente a ameaça do desespero envolvendo-o.
Então ele mais uma vez demonstra que aprendeu a lição.
Ele não vai desistir, mesmo que demore uma vida inteira, ele vai realizar o sonho de seu pai. Custe o que custar.
* * *
Bali mais uma vez visita a Torre de Babel, desta vez sozinha. Ela rodeia as muralhas circulares de rocha onírica, ouve vozes e murmúrios. Uma cacofonia de sonhos desfeitos. Abaixo dela, mais próximos da base, o diâmetro das paredes é ainda maior, e ela vê nas câmaras obscuras, os cadáveres de imensas criaturas disformes. Naquele ossuário de leviatãs e hidras, ela reconhece os restos fossilizados de Egrégoras malignas derrotadas e sepultadas. Existem Sonhos bons e Sonhos maus, para todos os gostos.
Mas uma vez, aniquilados, todos eles têm seu espaço aqui, no Cemitério dos Sonhos.
Ela decide fazer uma rápida visita à cela onde jazia o sonho de Elói Trindade, em sinal de respeito. As Asas de Ícaro levam-na com muita rapidez de volta ao triste local.
Ela não acredita no que vê.
A câmara está vazia.
Lacrada.
Ela estava certa quando explicou a seu pupilo que os Sonhos morrem.
Mas, às vezes, eles também renascem.
E os sonhos do pai voltaram à vida mais uma vez, graças ao filho.
Naquele dia em que estiveram juntos, aqui, Bali pensou que Jerônimo quis voltar ao Plano Físico para fugir do remorso.
Mas ela estava errada.
Ela voltou ao mundo para agir.
A maior satisfação de um mestre é aprender com o aluno.
SONHOS QUE MORREM foi escrito por Simoes Lopes
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