sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Rebelião 52: Bruna Souza Melo, Primal

Gostaria que o homem parasse de gritar. Não porque me incomoda. Ao contrário, não consigo entender quase nada do que ele diz. Apenas as palavras “por quê”, “doido” e “mortes” chegam aos meus ouvidos. Nem mesmo a pistola negra – que pela terceira ou quarta vez é jogada na mesa à minha frente – faz meus nervos saltarem.

Talvez porque não tenham mais essa capacidade.

Após esbravejar, chutar a cadeira e enfiar o gélido cano em minha testa, o homem vai embora, como fizeram os outros três nesta noite miserável. Continuo com o olhar fixo e consigo escutar mais uma palavra dita pelo homem, já no corredor: “catatônico”.

Estou mais uma vez sozinho na sala de paredes cruas. Há apenas duas cadeiras, uma delas agora caída, e uma mesa. Não sei se foi há horas ou dias – mas sei que o cheiro ácido de sangue ainda impregna minhas roupas.

Era uma operação comum. O esquema estava sendo executado há meses, sem qualquer incidente. Trazíamos de navio mercadorias do Nordeste, principalmente da Bahia, para o Rio e São Paulo. De lá elas seguiam para o mercado europeu e norte-americano, principais exportadores dos “produtos”. Jonas – o organizador do negócio – era precavido. Grana para os policiais no embarque e desembarque. Grana para os responsáveis pelo porto. Grana para a fiscalização.

Grana. O que não faltava era grana.

E a mercadoria? Animais silvestres capturados nos últimos resquícios de mata atlântica. No início até tive dó dos macaquinhos e das Araras espremidos nos caixotes de madeira – na maioria das vezes socados lá dentro, porque o espaço era pouco. O navio não era muito grande. 80% dos animais morriam durante a viagem.

Mas, como eu disse, grana é que não faltava. Os 20% restantes eram vendidos a preço de ouro. E eu precisava do dinheiro, sabe como é. Afinal, “quem tem pena é galinha”, já diz o adágio popular.

Depois de tantos meses, ninguém estava preparado para o que ocorreu nessa noite (ou pelo menos acho que foi nessa – estou um pouco confuso, e depois que souberem o que eu vi, vão entender o porquê). Havíamos acabado de atracar no porto do Rio de Janeiro. Tudo calmo, como sempre. Ou, pelo menos, era o que a gente pensava.

Jonas, eu vi, foi um dos primeiros a morrer – não consigo tirar da mente a visão do braço atarracado e pintado de vermelho que lhe atravessou o tórax, como se feito de manteiga. A partir daí o mundo tornou-se uma mistura de gritos de horror e respingos de sangue. Lembro de ter corrido do navio para o cais, sendo acompanhado por alguns colegas. A maioria, entretanto, ficou para trás, agarrado por uma força invisível. Um fantasma.

Tropecei e dei com os dentes no duro calçamento do porto. O terror, mas que a vontade, fizeram-me levantar. Foi então que me virei para o navio e a enxerguei – uma criatura, um homem arqueado como um macaco, espalhando a morte na embarcação.

Minhas pernas mal agüentavam o peso do corpo, quanto mais continuar a fuga desenfreada. Não conseguia dar um passo sequer. Ao meu lado, dois colegas pareciam estar na mesma situação. Que pensa o rato da cidade ao se ver diante de uma cobra pela primeira vez?

O macaco então saltou, um salto tão impossível quanto tudo mais naquela noite. Em um segundo o sujeito a minha esquerda era um novelo de sangue e pele. Eu, por minha vez, não senti ser levantado do chão, mas senti a força com que fui arremessado num contêiner um pouco afastado.

Mesmo com a perda parcial dos sentidos, os gritos me anunciaram que o outro colega também não mais existia. Escutei passos vindo até mim. Passos que mais lembravam o lento movimento de patas.

Não era um homem, afinal. Nem mesmo um macaco, embora andasse como um e tivesse um mico no ombro.

Era uma mulher.

Esperei o golpe fatal, o qual não chegou; quando abri os olhos, ela ainda me fitava, uma revoada de pássaros tropicais passando por trás dela. Em outras situações, eu poderia achar insólito o bando de araras vermelhas voando entre os pilares do cinza viaduto. Mas não no momento. Não com a morte a me fitar.

Ela segurou meu queixo com as mãos sujas, as unhas longas escoriando minha pele. Sua voz era semelhante a um guincho, não muito diferente dos ruídos dos vários micos que pulavam de contêiner em contêiner. A ponta da língua, vista de relance quando ela pronunciava as supostas palavras, era cortada, como de uma serpente. Não preciso dizer que não esbocei qualquer reação.

— Você vai viver. Vai viver para contar e dar o exemplo. Tenha orgulho, mortal. Poucos vêem um Primal e saem em condições de narrar o encontro.

Senti uma explosão na cabeça e acho que desmaiei. Quando acordei estava nesta sala, e, pelo que entendo, estão me interrogando. Lá vem outro homem e senta na minha frente, esbravejando e mostrando os punhos. Esfrega no meu rosto várias vezes seu distintivo de metal.

Mantenho os olhos no vazio. Prefiro poupá-los da verdade enquanto posso.

BRUNA SOUZA MELO, PRIMAL foi escrito por Andre Esteves

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