sábado, 29 de dezembro de 2007

Rebelião 31: Highway to Hell


A garrafa de uísque já estava quase vazia. Amadeus McGee não parava de beber, desde que chegara ao pub, as dúvidas e incertezas martelando sua mente com força máxima. O organismo de um nefilim tem uma capacidade regenerativa incrivelmente poderosa, mas ele decididamente não conseguia encarar isso como uma verdadeira bênção. Sua intenção no momento era apenas uma, embebedar-se, mas seu sistema nervoso sempre acabava neutralizando os efeitos mais extremos do álcool. No rádio alguma nova bandinha de pop açucarado cantarolava seus versos insossos.

Amadeus era um Bastardo, nascido no norte da Escócia há mais de sessenta anos, mas sua aparência era de um rapaz de no máximo a metade disso. Depois de tudo que já vivera, a imortalidade era um fardo cada vez mais insuportável para o atormentado McGee.

Estava cansado de esconder-se, cansado de fugir, e principalmente, exausto de tanto lutar. O último ano fora particularmente pródigo em confrontos sangrentos e emboscadas maquiavélicas. No ardor dos combates, McGee começou a sentir a perda do seu equilíbrio anímico. Seu lado infernal estava começando a aflorar, ele tinha certeza absoluta disso. Ainda que seus amigos de Congregação negassem, ele sabia que estava perigosamente trilhando o caminho de se tornar um diávolo. Só ele percebia a noção do perigo, e a amizade nublava a inteligência dos outros, que preferiam continuar como avestruzes com as cabecinhas enfiadas no chão.

“O pior cego é aquele que se recusa a ver”. Assim pensava McGee, que numa noite estranha de verão decidiu abandonar a Congregação, se afastar de tudo e todos. O pior inimigo era o seu próprio demônio interior, ele sabia disso.

Assim, ele deixou todos para trás, amigos muito queridos, por cuja segurança McGee temia. Não podia se permitir à mera possibilidade de que seu descontrole o voltasse contra eles. E aqui estava ele, num bar vagabundo nos confins de Estocolmo, bebendo tudo o que contivesse álcool à sua frente. Pediu mais uma garrafa.

Mais um gole. E outro. E outro. Pensou em seus amigos, em Cordelia, Myrella, Kluster, Laërt e Byron. Rogou que eles jamais o reencontrassem. Cabia a ele agora a missão solitária de manter-se afastado do seu destino nefasto.

Já não sentia mais o gosto de nada. Era melhor ir embora, buscar um lugar para ficar, e meditar. Manter o equilíbrio a todo custo.

Mas ainda havia tempo para a saideira.

O barman trouxe mais uma garrafa, e atendendo a insistentes pedidos, mudou de estação.

“Se Deus existe, ele deve estar saboreando a ironia neste momentos”, pensou McGee, enquanto ouviam-se os últimos versos de uma canção do AC/DC, embalados ao som nervoso de guitarras elétricas:

And I'm going down,

all the way down

I'm on the highway to hell.

HIGHWAY TO HELL foi escrito por Simoes Lopes


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Rebelião 30: Voltando da Morte


As paredes do escritório eram decoradas com muitas pinturas abstratas de gosto duvidoso. Uma horrível estátua cor de abóbora ficava em pé junto à janela. Sentado no sofá de almofadas zebradas, Homero Jardim esperava ansioso por um telefonema. Estava sozinho em sua mansão, sua esposa e os filhos estavam passando o fim de semana em Araruama.

Passou-se mais de uma hora até que seu celular tocasse. Homero atendeu imediatamente.

— Senhor, já cheguei no lugar combinado. Os mapa tão beleza. Vai moleza invadi a casa — dizia uma voz fina e trêmula, com um pouco de estática.

— Ótimo, Saraiva. As instruções do nosso cliente foram muito claras: os dois devem morrer. Todo cuidado é pouco.

— Eu nunca falhei, senhor.

Homero desligou, e recomeçou sua vigília silenciosa. O contratador misterioso, que apenas se identificara como Fausto, fora muito incisivo ao fazer o primeiro pagamento: queria dois assassinatos. Os pistoleiros treinados por Homero eram famosos por sua eficiência, e Genilson Saraiva, sem dúvida o melhor deles, fora escolhido para a missão.

Mais duas horas se passaram, e nada. Nenhum chamado, Homero estava começando a duvidar do êxito de Saraiva. Andava em círculos, nervoso, suando frio.

Já eram quatro horas da manhã, quando Saraiva chamou mais uma vez. Homero olhou para o relógio, pensou ter cochilado.

— Senhor, missão cumprida. Mais fácil que tirá pirulito de criança. Mas dois presunto pra nossa coleção.

Homero finalmente se acalmou.

— Onde você está, agora? — perguntou o chefe, já pensando no restante do pagamento que receberia.

— Chegando à sua mansão, senhor. Quase chegando na portaria.

— Ótimo — comemorou Homero, já pensando no que compraria com o dinheiro. Mais um sofá? Um novo carro para a sua esposa Cidelle? Ou silicone para sua amante Marlene?

O toque do interfone despertou Homero de seus planejamentos monetários.

Em poucos instantes, o pistoleiro entrava na sala com um sorriso nos lábios.

— Missão cumprida. O novo silenciador tava uma beleza, e a granada facilitou muito o ataque.

Homero estava bebendo café, e ofereceu uma xícara para Genílson. Pegou na gaveta um cartão com o telefone que o contratador havia lhe dado, pedindo que ligasse a qualquer hora que precisasse.

O sujeito atendeu no outro lado. Homero explicou o que havia acontecido. Ouviu calado por um bom tempo. Gotas de suor começaram a se formar em sua testa.

— Saraiva, os dois foram mortos? O cliente está pedindo provas...

Quequié isso, senhor? Assim, o senhor me ofende? É claro que eu matei os dois. O primeiro nem viu o que o atingiu, a granada o pegou em cheio, e depois eu enchi ele de bala.

— E o segundo?

— Este eu acertei no peito, o grandão caiu por cima de uns candeeiros. A casa pegou fogo. Pô, e como os caras eram grandes! Pareciam jogador de basquete...

Homero repetiu a história para o seu contratador ao telefone.

— Saraiva, meu filho... você viu o segundo morrer?

— É, claro! Quer dizer, o fogo se espalhou rápido... Mas o cara ficou preso lá dentro. E tava com um tirambaço nos peito...

— Vou repetir mais uma vez, meu querido, você viu ele morrer?!

Saraiva estava realmente ofendido, mas não mostrava muita convicção.

— Pô, Seu Homero, um cara pra sobreviver com aquele tiro, só sendo o...

Ele nem completou a frase.

A janela do escritório foi literalmente demolida com um estrondo avassalador.

Um homem de mais ou menos dois metros de altura, com cabelos e barbas compridíssimos presos em volumosas tranças acabava de invadir a casa de Homero Jardim. Como ele passara pelos seguranças? Considerando o que ele acabara de fazer com a janela, não era difícil imaginar que os vigias seriam o menor dos seus obstáculos.

— Vós matastes meu irmão — disse o estranho, com a voz rouca. Uma enorme crosta de sangue manchava o seu peito, que mostrava sinais de afundamento decorrente de um tiro. Ouviu-se um estalo quando os ossos readquiriram sua aparência normal.

— Como você chegou aqui? Como... — gritou Saraiva, reconhecendo no gigante uma de suas “vítimas”.

— A Luz Divina mostrou-me o caminho.

Homero sentiu suas calças se molharem involuntariamente. Saraiva tentou pegar sua arma, mas não teve tempo.

Horas depois, os primeiros raios do sol entraram pelo buraco na parede, onde antes existiam janelas, iluminando algumas poças de sangue coagulado.

Homero Jardim estava caído junto à parede, coberto por pedaços de um quadro quebrado. Seu maxilar estava horrivelmente esmagado, e várias costelas estavam partidas. Genílson Saraiva estava caído no gramado em frente ao escritório. Os braços haviam sido arrancados e não estavam por perto. Sua perna esquerda resumia-se a uma seqüência de fraturas expostas.

Os dois homens, agora mortos (com certeza absoluta), morreram sem saber quem era aquele estranho homem. Seu contratador não havia dito que ele se chamava David Ben-Sheth Ben-Aharon, e que, como seu companheiro assassinado, pertencia à seita dos Nazireus, a mesma da qual fez parte Sansão. Não lhes explicou que os Nazireus devem se abster de cortar os cabelos e de provar álcool e comidas impuras. Saraiva morreu sem saber que eles adquirem força e resistência titânicas. E Homero morreu sem saber que os Nazireus levam uma vida reclusa e pacífica.

Mas que quando atacados, respondem ao ataque com uma fúria indomável.

E quando furioso, um Nazireu torna-se virtualmente invencível.

O cliente não explicou nada disso.

Mas se tivesse falado com Homero, ele acreditaria?

VOLTANDO DA MORTE foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 29: Cada um luta como pode



Bicudo estava escondido atrás de uma moita, onde ficara a madrugada inteira observando a estranha movimentação naquele galpão abandonado. O palpite de Verônica — como sempre — estava certo: a Trindade Abominável estava realizando seus cultos naquele local ermo. Transformados pelos poderes demoníacos de adoradores das Trevas, dois homens haviam se transformado em monstros disformes de músculos hipertrofiados. Os Abomináveis eram — como Docinho gostava de chamá-los — os “Pitboys do Inferno”.

O que restara dos bois sacrificados não passava agora de algumas poças gosmentas exalando vapores pútridos. Mesmo usando todos os seus poderes de dissimulação, Bicudo sentiu que fora descoberto.

Dizer que lutar não era sua especialidade não exprimia a verdadeira ojeriza que Bicudo, um Acólito de 40 anos de idade, sentia pelo combate físico. Um adepto da filosofia de “correr sempre que possível”, Bicudo mantinha-se vivo ficando longe de qualquer tipo de luta. Estivesse mais convicto de que o galpão de fato era um antro dos Abomináveis, com certeza não teria aceito a tarefa de averiguar. Além disso, estava desconfiado que os poderes de sedução de sua amiga Docinho haviam contribuído para aceitar tal tarefa com tanta prestatividade.

O Abominável que estava mais próximo tinha cabelos e barbas negras. Suas veias eram azuladas e saltadas, podia-se ouvir as batidas do coração inchado à distância. O segundo tinha cabelos de cor clara, e só quando ele aproximou-se de uma área mais iluminada é que Bicudo percebeu tratar-se de uma mulher.

E foi justamente ela a primeira a ver Bicudo de forma inequívoca. As pernas musculosas flexionaram-se e ela saltou com uma agilidade impressionante para alguém tão pesado. Os arbustos foram estilhaçados em seu caminho. Bicudo procurou abrigo subindo numa árvore. A Abominável soltou um grito que mais parecia um mugido, e acertou um violento pontapé no tronco.

O assustado Acólito sentiu a árvore tremular com o golpe, e concentrou toda sua Proeza em um novo salto para a próxima árvore, uma mangueira bem mais alta. A fêmea demoníaca percebeu a manobra e golpeou a mangueira com ambos os punhos cerrados. A cada novo soco, mangas de todos os tamanhos choviam na cabeça da fera, que ficou ainda mais irritada.

Preocupado demais com sua perseguidora, com os sentidos nublados pelo medo, Bicudo se esqueceu do segundo Abominável, e foi merecidamente premiado com uma violentíssima pedrada na coxa. O outro monstro pegava pedras e arremessava na direção do nefilim. Impossibilitado de conter a artilharia pesada, Bicudo se desesperou e caiu da árvore.

A queda foi dolorosa, quatro metros de altura, e pela dor ele sentiu que havia partido algumas costelas. Nada que seu organismo sobrenatural não regenerasse, caso ele sobrevivesse ao ataque... Os Abomináveis estavam cada vez mais próximos.

A iminência da morte transforma covardes em lutadores, e Bicudo sentiu o maná se condensando em suas mãos. O suor escorria em abundância enquanto ele concentrava-se para dar forma e substância à matéria-prima etérea.

O súbito aparecimento da espada de luz sólida amedrontou a dupla de bestas-feras, que recuaram instintivamente, sentindo sua carne infernal ferida pela luz celeste que emanava da arma. Bicudo brandiu a arma com orgulho, arrancando um naco de carne fétida do flanco da mulher-monstro. Os monstros mantiveram-se à distância, observando. Bicudo ergueu a arma confiante, e....

... a arma tornou-se mais leve... começou a ficar translúcida... e sumiu.

Felizmente as transformações que caracterizam os Abomináveis embotam seus cérebros, e estes demoraram a entender o que acontecera. A dor das costelas quebradas havia interrompido a concentração, e era a primeira vez que Bicudo tentava conjurar uma Espada de Gabriel. Tentou fugir mais uma vez, ignorando a dor, mas seus movimentos estavam mais lentos. A conjuração da arma gastara muito maná, e sua cabeça latejava. Incapaz de manter o equilíbrio, acabou escorregando na terra úmida.

Seus perseguidores soltaram um grito de excitação e vieram com tudo em sua direção. Bicudo fechou os olhos.

Mesmo de olhos fechados, o nefilim sentiu uma luz muito forte invadir o matagal. Quando voltou a si, viu que os monstros tornavam a se encolher, horrorizados. Por um breve momento a noite transformou-se em dia. E Bicudo compreendeu o que acontecera. Seus amigos haviam chegado. Verônica, a Guerrilheira, já estava bailando sua dança mortal entre os dois Abomináveis. Brandia uma espada reluzente que com certeza absoluta não iria desaparecer tão cedo. Mais atrás surgia Farid, o Paladino. Ele não podia conjurar armas celestes, mas a força de seus punhos já valia por um arsenal. Docinho, a outra Acólita do grupo, verificou os ferimentos de Bicudo. Este começou a sentir os poderes curativos de sua amiga aliviando sua dor.

A verdadeira luta estava apenas começando.

CADA UM LUTA COMO PODE foi escrito por Simoes Lopes

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quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Rebelião 28: Contando Anjos


O apartamento era muitosimples, apesar de bem cuidado. Os móveis eram poucos e envelhecidos. As janelas de vidro fumê estavam rachadas, e a sala apertada era iluminada por uma grande e solitária vela vermelha, apoiada num antiqüíssimo castiçal branco.

Uma bíblia grande e pesada ocupava a mesa no centro. Na capa de couro estava gravada o símbolo da Ordem de São Jorge, um sinuoso dragão verde-escuro trespassado por uma branquíssima lança de prata.

Dois homens esperavam pacientemente sentados num sofá cheirando a naftalina. Preguiçosamente acomodados no carpete macio, dois pequineses de pêlo cor de canela os fitavam com seus olhos redondos. Na parede estava pendurado um enorme quadro inacabado, onde uma multidão de anjos cor de sangue voava por entre nuvens azuladas.

A dupla era formada por Baldovino Castello, um italiano bem alto e esbelto, com cabelos e barba de um negro intenso, óculos de aro bem fino. Era um teólogo de grande prestígio no Vaticano. Seu amigo chamava-se Bertrand Dreyfus, nascera em alguma minúscula vila na fronteira entre França e Alemanha, era atarracado e robusto, com espessas sombrancelhas ruivas contrastando com a careca reluzente.

— O tenebroso dragão envolve o mundo em seus torpes anéis — primeiro ouviram apenas a voz fina, mas possante, pronunciando as palavras lentamente num latim perfeito.

— A lança branca como a lua ainda perfura a besta abissal — respondeu Bertrand, ao mesmo tempo que se erguia respeitosamente, junto com Baldovino.

Um velho de barbas brancas chegou mais perto da luz da vela. Seu rosto era enrugado e cheio de cicatrizes. Os olhos verdes já estavam meio embaçados, mas ele não parecia ter dificuldade para caminhar.

— A lança que perfura o dragão está em nossas mãos! — gritaram os três ao mesmo tempo.

— O Templo do Rio de Janeiro agradece à chegada dos irmãos Jórgios — disse o ancião, curvando a cabeça.

Frater Lunus, este é o guerreiro Baldovino Castello, nosso irmão-em-armas — disse o sorridente Bertrand, apressando-se em fazer as apresentações.

O velho sorriu em retribuição. — Há muito ouço falar de tua grande inteligência e perspicácia, meu irmão italiano!

— Viajei muitas léguas para finalmente estar na presença de um Mestre — falou com a voz baixa o emocionado teólogo, beijando respeitosamente a mão de Lunus.

Frater Lunus, ou, como era seu nome de batismo, Plínio Neiva, tinha 102 anos de idade, e não era o mais velhos dos 30 Mestres que compunham a Triginta, o restrito círculo de anciãos que eram responsáveis pela organização da Sagrada Ordem de São Jorge. Cada Mestre cuidava de um Templo, e Frater Lunus era o guardião do Templo do Rio de Janeiro, que consistia precisamente em sua casa. Quando os Jórgios surgiram no século XV, a partir de uma ramificação dos Templários, estavam conscientes de que construir templos e mosteiros não os tornaria mais poderosos. O demônio — segundo acreditavam — mandava no mundo, e tinha tantos lacaios espalhados pelos quatro cantos da Terra, que podia comprar a tudo e a todos. Assim a Sagrada Ordem dedicou-se muito mais a edificação de seus homens, e não de suas sedes.

— Soube que esteves em São Dimas recentemente, não? — perguntou Lunus, demonstrando simpatia. Segurava uma grande caneca de vinho na mão esquerda.

— Sim, estabeleci bons laços de amizade com o padre Bonfim — explicou Baldovino.

— Também sei que não chegaste sozinho...

— Ora, o irmão está muito bem informado! — exclamou o italiano, surpreendido pelo ancião.

— A vida de um Mestre é muito monótona, irmão. Preenchemos nosso tempo a estudar. A estudar o mundo e os homens, os ouvidos sempre a escutar, os olhos a enxergar.

Subordinada ao colégio de 30 Mestres estava uma rede de congregados que eram chamados de “guerreiros”. Sua missão era guerrear eternamente contra o Dragão que espalhava seu veneno pelo mundo dos homens. Guerrear como seu patrono São Jorge. Eram homens como Dreyfus e Castello, que ocupavam posições as mais variadas na sociedade, mas que escondiam um alter ego oculto, como soldados da dita Ordem.

— Meus irmãos devem estar famintos, vou buscar imediatamente algo para vosso desjejum. Permitam-me ir até a cozinha.

Assim que o ancião ausentou-se, Castello confessou suas aflições a seu companheiro franco-alemão.

— Não é perigoso que um Mestre viva assim? Sozinho, não deveríamos destacar guerreiros para protegê-lo?

Dreyfus não demonstrou preocupação com as dúvidas de seu colega italiano.

— Eu lhe garanto, Irmão, o Mestre sabe se defender muito bem.

— Mas e se nossos inimigos atacarem? E se... — insistiu o teólogo, insatisfeito com a resposta.

— Vê aquele quadro? A cada anjo pintado nele corresponde um inimigo que tentou invadir o Templo. Aprecie a pintura e verás quantos invasores foram derrotados e eliminados.

E assim Baldovino Castello compreendeu porque a pintura estava inacabada. Começou silenciosamente a contar os anjos pintados na tela. Já passara dos vinte, quando sua concentração foi interrompida pelo retorno de Frater Lunus. Trazia uma bandeja metálica com vários pãezinhos escuros e cubos de queijo branco.

— A propósito... — começou a frase enquanto deixava a bandeja sobre a mesa — ... vós fostes seguidos até aqui.

Os dois amigos se levantaram imediatamente, seus semblantes ficaram fechados, seus músculos tensos.

— Não há razão para o pânico. A ameaça foi eliminada. Sirvam-se, por favor, os pães são requentados, mas ainda estão muito saborosos.

Dreyfus se aproximou da vasilha com os pães. Castello sentou de novo no sofá.

O ancião voltou a encher a caneca, e por um breve momento ficou parado em silêncio, analisando seu quadro.

— Terei que pintar mais um anjo... vejamos... aonde devo colocá-lo?

CONTANDO ANJOS foi escrito por Simoes Lopes
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Rebelião 27: Aprendizado


O Jovem permanecia ansioso diante do Velho. Este estava já há vários minutos fumando tranqüilamente um cachimbo. Após esse período angustiante, o Velho falou:

“Não me interessa o que já te disseram antes sobre o mundo ou sobre você. Afirmo que é tudo mentira. Você é um Nefilim.”

“Um o quê?”

“Cale a boca! Você é cria de um anjo que veio do Inferno – ou Sheol – após uma tentativa fracassada de tomada de poder que ocorreu por lá. Sua mãe pode ser natural, mas seu pai não é.”

“Meu pai não é...”

“Cale a boca! Nosso Genitor vaga pelo mundo gerando filhos na esperança de mudar o desenrolar do Apocalipse...”

“Apocalipse?”

“Cale a boca! Mas não somos os únicos. Ele tem irmãos. E seus irmãos também geraram filhos. Estes são nossos primos.”

“Primos?”

“Cale a boca! Nós temos a marca da imortalidade – ou Bachor – e geramos poderes divinos ou abissais como herança que nosso Pai nos legou.”

“Poderes?”

“Cale a boca! Mas esses poderes carregam em si a maldição da Danação. Devemos tomar muito cuidado ao usá-los, pois eles podem nos tornar escravos do Shamaim ou Sheol.”

“Escravos?”

“Cale a boca! Ser um Paradísio ou um Diávolo é a pior coisa que pode acontecer a um Nefilim. É preferível deixar de existir... e olha que isso é o que ocorre conosco quando morremos.”

“Deixar de existir?”

“Cale a boca! O interesse do Céu ou do...”

Agora também era demais. Ele aceitara ouvir o que aquele Velho tinha a dizer porque este se aproximou demonstrando saber os sonhos estranhos que ele vinha tendo com um grande homem de asas de relâmpago e faíscas saindo dos olhos. Como ele não contara a ninguém sobre esses sonhos recorrentes, achou que o Velho fosse um curandeiro ou coisa assim e pensou que não haveria problema nenhum em ser aconselhado por ele.

Mas então começou essa bobagem de Nefilim, Céu e Inferno – acompanhado de ofensas e tratamento rude. Quem ele pensa que é para falar assim do seu pai?

O Jovem sente então algo se enchendo nele. Uma... energia. Ele se sente confiante. Parecia que relâmpagos saiam de suas costas e faíscas de seus olhos. É isso aí! Ele ensinaria ao Velho uma lição que este nunca mais iria esquecer.

Foi então que o Velho o acertou com o murro mais impressionante que ele jamais imaginou. Tudo o que ele percebeu foi uma explosão no rosto, um clarão em seu campo visual, que seus braços tentavam se agarrar no nada e que suas pernas estavam no ar, apontando em direção ao céu da linda manhã. A seguir, suas costas atingiram o solo com um baque surdo. Acompanhando a força cinética, sua cabeça bate no chão, provocando um estalido de dor que ecoou por dentro.

O Jovem tenta se levantar apavorado, mas estava zonzo demais para que seu corpo obedecesse às ordens urgentes emitidas pelo cérebro. O Velho batia bem. O Jovem caíra à cerca de cinco passos do mesmo, num vôo espetacular. Este ainda pensara como foi sorte o parque estar vazio para que ninguém visse a sua vergonha.

O Velho chegou antes que tivesse tempo de se recuperar. O Jovem tenta se encolher, se preparando para a maior surra de sua vida... mas o outro apenas estende sua mão e o ajuda a se levantar.

O Velho observa possíveis ferimentos no rosto e na cabeça do Jovem e então fala com um carinho inexistente antes em sua voz:

“Você ainda é inexperiente, mas tem grande potencial. Desculpe se sou duro com você, mas a nossa missão é unir e preparar nossos irmãos e primos para que estejamos prontos para a Batalha Inevitável – mais conhecida como Armageddon. Portanto, devemos ser disciplinados, devemos ser o exemplo. Orgulhe-se, pois você é um Visionário, rapaz!”

Tomando coragem para falar, o Jovem esfrega o rosto e comenta:

“Cara, que soco impressionante você tem...”

“É apenas o uso de um de nossos Manifestos, os poderes que herdamos de nosso Pai...” Observa novamente possíveis ferimentos, enquanto recoloca o cachimbo na boca. “Não se preocupe, vão se curar mais rápido do que imagina. Quem dera todas as feridas pudessem ser curadas assim...”

“Mas, peraí! Você disse no início que eu era um Nefilim e agora diz que sou um Visionário. O que sou afinal?”

O rosto do Velho volta a ficar duro.

“Cale a boca! Eu tenho agora que te contar as más notícias...”

APRENDIZADO foi escrito por Danilo Faria
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Maytréia 18: Ajuda

Vou matar essa vagabunda!

Carlos avançou sobre a mulher, desferindo-lhe uma bofetada ouvida pelos vizinhos no andar debaixo. Ninguém se atrevia a subir; todos conheciam o casal e seu modo peculiar de passar o tempo em que ficavam juntos em casa.

A força do golpe jogou Luana sobre a mesa, deixando cair no chão a faca que segurava. Sem se deixar abater pelo líquido quente que escorria pelos lábios recém-cortados, lançou sobre o marido o vaso que ali servia como adorno. O objeto – que de outra forma se despedaçaria no rosto de Carlos – atingiu a parede atrás dele graças a um surpreendente movimento de quadril. Surpreendente porque o homem tropeçava tanto em suas próprias pernas que só por um milagre ainda se mantinha de pé.

— Filho da puta! — a voz de Luana era mais cortante que os cacos do vaso espalhados pelo chão — Você nunca mais encosta em mim.

A mulher trancou-se no quarto, correndo na frente do marido, feito nada difícil tendo em vista o estado dele, facilmente perceptível pelo hálito carregado do líquido ígneo que ingerira há pouco.

Esmurrou e chutou a porta, criando alarde maior no edifício, mas a porta resistia. Escutava do lado de fora o som de Luana abrindo o armário e as gavetas, provavelmente lançando roupas numa mala.

Ela só sai daqui morta. A imagem de um instrumento prateado invadiu sua mente. No porta-luvas do carro, estacionado na frente do edifício. Ele era policial, mas não entrava com a arma em casa. Não depois que passou a desconfiar da mulher e a tomar umas cachaças “para clarear as idéias”. Pensava que a proximidade da pistola podia causar uma desgraça, em uma de suas brigas constantes.

Mas não pensava mais. Seu cérebro, como uma esponja boiando numa piscina repleta de 51, se recusava a frear os instintos animais que o dominavam. Desceu se escorando nos corrimãos os quatro andares, sentindo-se observado pelas frestas das portas.

Eles que não se metam, senão mato todo mundo nessa porra.

Ao sair à rua e abrir o porta-luvas, a visão da Taurus carregada o fez abrir um sorriso. Devido à posição, curvado sobre os bancos e com metade do corpo para fora do carro, o maço de cigarros caiu no bolso da camisa e o distraiu. Escutou um ruído de terra sendo remoída ao lado do veículo. Talvez pela necessidade de nicotina ou pela curiosidade gerada pelo barulho, fechou o porta-luvas e acendeu um cigarro. Sua esposa não tinha como fugir.

O ruído era proveniente do trabalho de uma velha descalça, suja da cabeça aos pés. Somente ao observar a roupa encharcada da mendiga foi que Carlos se deu conta das poças espalhadas pela rua e de como devia ter chovido alguns momentos atrás. A velha introduzia a mão nua em um bueiro e retirava a terra preta e mal-cheirosa misturada com detritos que o entupia. Com aquela sujeira fazia montinhos junto ao meio-fio, catando ainda as folhas e papéis que sujavam a calçada. Outros dez montinhos já haviam sido feitos, e a calçada, nesses pontos, encontrava-se completamente limpa, apesar da enxurrada de há pouco.

— Ela está fazendo isso desde as quatro horas —atreveu-se a dizer pela janela um garoto que morava no primeiro andar, antes de ser puxado com força pela mãe, que sem olhar para fora cerrou o batente.

Carlos olhou o relógio: meia-noite e meia. Como tem gente maluca nesse mundo. Virou novamente para o veículo, o cigarro quase no fim, o brilho vermelho novamente lhe assaltando os olhos. Foi então que percebeu, de soslaio, um detalhe estranho: as unhas da velha. Era policial há muito tempo e sabia muito bem que uma mendiga não poderia ter as unhas tão bem pintadas como as dela. Era claro que não estava há muito nas ruas – no máximo dois dias. Devia ser um caso de perda de memória. Talvez a família estivesse procurando. E daí? Não é problema meu.

Ele acendeu outro cigarro. Sentiu-se estranhamente sóbrio.

Acercou-se da velha e puxou assunto; ela realmente estava biruta, não falava coisa com coisa, mas lembrava do nome. E do nome todo.

Meu nome é Luzia da Silva Souza Brandão.

— Mas onde você mora, dona Luzia?

A velha demorou a responder, os olhos opacos e fixos. Olhos de uma boneca.

— Eu... sou da roça, meu filho, trabalhei muito com essas mãos ... minhas sobrinhas são professoras... eu sei cuidar de milho... o cachorro também fui eu que...

— Dona Luzia, o que quero saber é onde mora...

Mas não adiantava. Ela não dava qualquer endereço, seja dela ou de parente, número de telefone ou nada. Apenas recitava um monte de baboseiras sem nexo. Para testar, o rapaz perguntou várias vezes o nome dela. Pelo menos nesse dado ela parecia segura.

Luana saiu do prédio, uma enorme mala nas mãos. Carlos havia sentado com a velha, que se mostrava totalmente dócil, nuns blocos de concreto que havia na rua. Talvez a estranheza de ver seu marido sentado na calçada com uma velha mendiga tenha suplantado sua raiva, porque Luana se aproximou com a face marcada de dúvidas.

Carlos puxou o celular e fez sinal para que a mulher conversasse com a velha. Falou com um colega de trabalho, pedindo dados sobre o nome Luzia da Silva Souza Brandão.

Enquanto isso, Luana tentava arrancar informações da velha, tendo o mesmo sucesso que Carlos: nenhum. Este desligou o telefone e ambos dialogaram sobre o que fazer. Começava a chover levemente. A mala, Luana colocou no bagageiro do carro. A madrugada avançava e um deles lembrou-se de uma emergência psiquiátrica num hospital Municipal. Colocaram dona Luzia no banco de trás do veículo. Ela estava um pouco mais apresentável, pois haviam lhe arranjado calçado – um chinelo velho de Carlos – e uma blusa bem larga. Luana ajudou a trocar a roupa molhada. A velha não abandonava, no entanto, o olhar perdido. Assim que se acomodou no veículo, adormeceu.

O casal sentou na frente e Carlos dirigiu até o hospital. A médica de plantão estava relutante em aceitar Luzia; disse não se tratar de uma emergência médica e que o hospital estava lotado; duas notas de cinqüenta, no entanto, fizeram surgir vaga e a promessa de que o serviço social, no dia seguinte, encaminharia a velha para um asilo. Quando Carlos e Luana saíram, ela já estava dormindo numa maca, medicada e completamente seca.

­— O gesto de vocês foi muito bonito — comentou o segurança. — é difícil ver disso aqui. Ninguém ajuda ninguém hoje em dia.

O casal sorriu e andou devagar até o carro. Não foi possível discernir de quem partiu o gesto, mas logo estavam de mãos dadas. Daí para o abraço e pedidos de perdão misturados com lágrimas foi um pulo. A mala com a roupa estava esquecida no bagageiro do carro, enquanto o tempo parava de correr para o homem e mulher que se acariciavam.

— Eu nunca mais vou beber... — prometia Carlos, quando foi interrompido pelo toque insistente do celular. Num meio sorriso, ele quase se desculpou por ter que atender.

Era o tal colega de trabalho. Ele havia conseguido informações sobre Luzia e estava muito agitado. Quando terminou de falar, foi à vez de Carlos fraquejar, deixando o celular cair de sua mão trêmula.

Luana lutou para retirar dele alguma explicação. Após muita insistência ele disse algo, porém em voz de falsete, como que para si mesmo:

— Sabe a pesquisa sobre Luzia da Silva Souza Brandão? Meu amigo está com a certidão de óbito dela nas mãos. Ela está morta, Luana, morta!

*************

Uma senhora aparentando 60 anos saiu andando do Hospital Municipal. Não tinha mais o passo vacilante que entrou, muito menos os olhos imóveis. Agora eram duas bolas de vivacidade, duas esferas relampejantes que denotavam a sabedoria supostamente armazenada no órgão atrás deles. A médica nem o segurança notaram sua passagem; só o fariam se ela quisesse. Permitiu-se apenas um sorriso ao ver o casal se beijando no estacionamento. Estava com muita pressa.

Afinal, ainda havia muita gente para ser ajudada...

AJUDA foi escrito por Andre Esteves

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Maytréia 16: Soldados de Deus


Ano de Nosso Senhor de 1219. Um cortejo silencioso marcha pelos campos do sul da França. Dois padres, vestindo trajes maltratados, caminham com dificuldade, apoiados em cajados de madeira escura. Seguindo atrás, algumas dezenas de crianças marcham alegremente. Um grupo de cavaleiros, vestindo brilhantes armaduras prateadas, escolta o grupo.

São tempos difíceis, os espectros da fome, da guerra e da peste assombram a todos. Famílias empobrecidas, nobres decadentes e um cotidiano infernal formam o caldo de cultura para um fanatismo religioso de proporções irracionais. Quando os Padres Polycarp e Arnoulf adentravam os pequenos povoados assolados pela pobreza e por epidemias, a recepção era calorosa e frenética. O que os dois religiosos queriam era liderar uma cruzada de crianças rumo à Terra Santa, a fim de expulsar os infiéis e odiosos sarracenos de lá.

“Iremos até a Itália, e o poder santíssimo de Nosso Senhor irá abrir os mares para nossa passagem!”, gritava o Padre Polycarp em sua passagem pelas comunidades de Marselha. “Nossas armas serão a Glória de Jesus Cristo”, proclamava Arnoulf num povoador camponês de Provença. Os pais atormentados por uma vida mundana de penúria e sofrimento eterno, alegremente cediam seus filhos para participar de uma empreitada divina. Cavaleiros sem fama e sem posses juntavam-se ao grupo, na esperança do perdão de seus pecados.

E assim o séqüito foi crescendo ao longo do trajeto. O padre Arnoulf ordenou uma parada. Estava começando a chover, nuvens negras cobriam o céu, e o chão seco começava a transformar-se em lama. O religioso começa a entoar uma prece silenciosa, com os olhos grandes e azuis vidrados, olhando para o céu turbulento. Os cavaleiros mandam com rispidez as crianças reunirem-se numa gruta natural próxima dali. Polycarp ajoelhou-se, fazendo o sinal da cruz, e pediu aos Céus por um clima mais ameno, a fim de que chegassem a Gênova o mais rápido possível.

Quando ele levantou-se novamente, e abriu os olhos, percebeu a presença de um estranho cavaleiro, na charneca rala que cobria um pequeno platô rochoso.

Ele vestia uma armadura de bronze escurecida e profundamente corroída, o que era patente pelos veios verde-azulados de azinhavre que cobriam seus punhos e peitorais. O elmo era grande, com uma viseira estreita, e o homem carregava uma comprida e robusta espada de bordas serrilhadas. Montava uma enorme mula de pêlos negros e hirsutos.

A presença daquela peculiar figura incomodou os cavaleiros que compunham o cortejo dos cruzados infantis, e estes pediram ao misterioso viajante que se identificasse.

— Meu nome é Jacques Bonhomme, e sinto dizer que estou aqui para interromper esta insensatez! — gritou a plenos pulmões.

Os cavaleiros aproximaram-se lentamente, ofendidos pelo que parecia ser um gesto de improvável ofensa.

— A que te referes, pobre homem? — gritou Pierre de Grandville, em cujo escudo estava pintado um grande urso vermelho.

— Estas guerras já trouxeram muita dor a tantas famílias, e vós ainda quereis incitar pobres crianças a dirigir-se alegremente às portas do Inferno? Chega. Estou aqui para libertá-las, não ofereçam resistência.

O cavaleiro da armadura envelhecida acelerou a passada de sua montaria.

— Só pode ser uma pilhéria! — gritou Christofor de Neulacy, mantendo curtas as rédeas de seu enorme cavalo de crinas negras. — Como ousa um soldado desqualificado desafiar nobres guerreiros que dirigem-se à Terra Santa conforme desígnios divinos? Fuga, ou ensiná-lo-emos uma bela lição de compostura!

— Os nobres cavaleiros insistem em manter-se algozes de crianças indefesas, não me resta alternativa senão lutar convosco.... — a mula soltou um zurro fortíssimo, como que pontuando a frase convicta.

Os padres protestaram com veemência: — Soldado de Satanás, tuas ameaças não podem amedrontar aqueles que seguem os caminhos do Nosso Senhor Bom Jesus Cristo!

— Eu já trilhei estes caminhos, e sei que são apenas os homens que desejam trilhá-los, não há nenhum Deus por trás das maquinações mesquinhas dos poderes mundanos.

— Blasfemo! — gritaram Polycarp e Arnoulf, quase ao mesmo tempo.

O cavaleiro ergueu a espada e entoou um cântico numa língua desconhecida.

— Ele fala a língua dos demônios, ataquem, irmãos! Ataquem, soldados de Deus!!!

Eram três contra um. O mais jovem dos três cavaleiros, Chlodomerus de Tarbes, tomou a dianteira, brandindo uma espada reluzente do mais puro aço espanhol. O guerreiro de couraça esverdeada não fez nenhum movimento.

Chlodomerus golpeou com toda a sua força, mas o escudo rachado de seu oponente deteve facilmente o impacto. A espada serrilhada desceu impiedosa, partindo a armadura de seu inimigo com grande estrondo. Este ainda tentou uma segunda estocada com a espada, mas em vão. O homem misterioso era muito rápido em suas esquivas.

Os outros dois nobres vieram juntar-se à peleja, sendo o primeiro derrubando violentamente por um golpe fulminante da espada dentada. Com um simples toque de sua mão esquerda, Jacques Bonhomme derrubou o cavalo de Christofor no chão.

Mas um segundo golpe da arma de Jacques e desta vez era Chlodomerus quem era derrubado no chão lamacento. Com um simples gesto, o guerreiro da armadura azinhavre fez com que as espadas de seus três oponentes partissem em vários pedaços.

— Magia Infernal, és um servo de Lúcifer!!! — vociferou um dos padres, ao perceber o que acontecia.

Os olhos do cavaleiro pareciam agora brilhar no escuro, e seus três inimigos jaziam agora inconscientes no chão. Ele havia apeado da montaria e caminhava rapidamente no encalço dos clérigos.

— Lacaio do Demônio Cornudo!!!! — gritou Polycarp, quando sentiu sua perna agarrada pela manopla metálica do soldado.

— Soldados Imaculados, nos defendam!!! — bradou Arnoulf para as crianças, que estavam amontoadas na pequena gruta, a salvo da tempestade.

— Não sou lacaio de ninguém, cura! Nem dos sarracenos, nem do Pontífice, nem tampouco de normandos, germânicos ou bizantinos.

Os dois religiosos foram derrubados com facilidade no barro molhado, e sentiram a morte iminente e inevitável quando Jacques brandiu sua arma dentada.

— Ó Pai... — murmuraram.

O golpe foi veloz como um relâmpago.

Os dois caíram na lama suja do charco.

Um silêncio profundo pareceu cobrir o terreno.

As crianças estavam abraçadas e encolhidas. Os três nobres caídos, à distância.

Foi quando Arnoulf passou as mãos lentamente pela barriga, procurando pelo sangue do ferimento.

Apenas um mínimo filete de sangue escorria dos braços dele e de seu colega Polycarp.

— Como pode... gaguejaram...

— Não sou um assassino. Estive nas Cruzadas disposto a massacrar qualquer um que ousasse ser meu inimigo, mas acabei confrontando-me com antiqüíssimos mistérios, e voltei purificado de meus antigos vícios. Agora, pertenço a missões mais elevadas do que matar e ceifar vidas. Por isso preservo minha armadura e armas em estado permanente de corrosão. Para mostrar a mim mesmo que minhas honras de soldado mundando não passam de reles casca.

— Não vai matar-nos?

— Apesar do profundo desprezo que tenho pelo que vós fizestes àquelas crianças inocentes, eu aprendi que não existe maldade no Mundo — embainhou a espada.

— Apenas ignorância.

Ele fez um gesto, e tanto padres como cavaleiros caíram num estado do mais profundo torpor.

“Quando todos acordarem, já estarei longe daqui, e as crianças serão levadas a local seguro”, pensou Jaques Bonhomme, enquanto estendia a mão para uma garotinha de uns oito anos de idade. Não havia nenhum sorriso no semblante do soldado, mas sentia-se satisfeito com o sucesso de sua intervenção.

— Vamos embora. Que os pequenos guerreiros voltem a ser apenas... crianças.


SOLDADOS DE DEUS foi escrito por Simoes Lopes

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Maytréia 15: Dominó


O lugar era pequeno e mal iluminado, mas estava fervilhando de pessoas. Diversas garotas seminuas circulavam por entre as mesas de plástico, enquanto outras dançavam num palco improvisado tirando a pouca roupa que lhes restava. Homens de todas as idades e aparências amontoavam-se em locais apertados à espera de seus “presentes”.

Clemente e Juliano entraram sem serem notados, devido ao amontoado de homens que praticamente interrompiam a passagem de quem se dirigia ao bar. Era a primeira vez de Juliano, muito mais jovem do que seu mestre, que neste momento estava pedindo uma dose dupla de whisky com muito gelo ao barman.

Clemente olhou para o seu copo com um ar meio desapontado, enquanto conduzia seu aprendiz para uma das cadeiras mais próximas à uma das poucas janelas.

— Este é paraguaio legítimo — dizia Clemente, enquanto mexia as pedras de gelo com a ponta dos dedos. Coçou o bigode branco-encardido, e averiguou com muito cuidado o local onde estavam.

— Juliano, eu vou precisar de sua total atenção — era a voz do homem grisalho, pousando a mão pesada sobre o ombro ossudo do rapaz, enquanto transmitia-lhe instruções telepáticas. — Este é o maior antro de prostituição infantil do litoral. Estrangeiros de todas as partes do mundo vêm aqui para se divertir “turisticamente”. Não estou me referindo a adolescentes de dezesseis, dezessete, não. Não estou falando de maioridades de normas escritas. Estou falando de exploração e escravização de crianças. Aquele sujeito ali junto à entrada, bem alto vestido com a camisa florida, é o responsável por um negócio absurdamente lucrativo. Existem garotas de até dez anos aqui, mas estão escondidas nos andares de cima.

O rapaz esfregou o suor que escorria abundante pela testa e pelos cabelos ruivos e espetados, e lançou um olhar dissimulado para as escadas. Duas garotas com roupas coloridas e bem curtas riam de mãos dadas com um homem gordo de olhos azuis, com cara de estrangeiro.

— Estamos aqui para lutar? Como...

— Acalme-se, nossa luta não é física, você está cansado de saber. Vim aqui para ensiná-lo o controle das emoções. As pessoas por aqui estão tão exauridas de seus verdadeiros potenciais humanos, que tornam-se muito vulneráveis a ataques externos — explicava Clemente, ainda de forma telepática. — Você ainda não está preparado para usar este tipo de shiddi, mas eu agregarei sua força à minha, e você irá me auxiliar no meu ataque.

Clemente fechou os olhos por um bom tempo.

Neste momento, uma menina morena de cabelos oxigenados aproximou-se languidamente de Juliano, oferecendo-se. O rapaz pediu para que ela o esperasse no salão ao lado. Ela saiu, sorridente. Ela não devia ter mais que treze anos.

“A miséria humana é muito maior do que nossos meios de combate, mas podemos pelo menos remediar atuando aqui e ali”, eram as palavras de mais uma vez Clemente reverberando na mente de seu pupilo.

O homem grisalho ajeitou a camisa marrom, e inspirou profundamente mais uma vez. Seus olhos agora pareciam os de um leão espreitando a caça. Ele expandiu sua consciência a fim de vasculhar o território.

Numa das mesas, uma menina mostrara claramente um certo ar de repulsa ao homem no colo do qual estava sentada. Ele estava com uma das mãos por dentro de sua blusa, e com a outra esfregava a perna fina da prostituta. Clemente focalizou-se nela, e captou toda a mistura de ódio, repulsa e humilhação que habitava naquela mente. Havia localizado o ponto de partida.

“É como peças de dominó”, explicou mentalmente para Juliano.

Todo o sentimento de repulsa e nojo que a moça nutria por seu “cliente” aflorou como um vulcão em erupção. Ela tentou desvencilhar-se de seu aperto, mas foi segura. A repulsa foi dando lugar ao ódio, cada vez mais intenso, e ela deu um soco no rosto do homem, um policial aposentado de uns sessenta anos.A insistência dele em não largá-la foi premiada então com uma garrafada na cabeça.

Gritando de dor, o homem levantou-se esbravejando, no que Clemente disse a seu ajudante: “Veja como o ódio é moldável!”

O iniciado sentia a raiva como ondas fluindo de um mesmo ponto. O homem começou a derrubar tudo que via no caminho, correndo atrás de sua “pombinha”. No rastro de destruição, os sentimentos eram variados, mas começava a crescer o descontentamento. Um rapaz alto de nome Morildo, possivelmente um dos seguranças do lugar, veio em socorro da moça. Clemente captou os sentimentos turbulentos do policial, e a intervenção de Morildo ofendeu-lhe.

“Eu paguei por ela seu negro safado”, gritou o cliente, e o racismo embutido funcionou como mais combustível ainda para o acirramento dos ânimos. Clemente pode com facilidade insuflar a repulsa mútua entre os dois, e em poucos segundos, Morildo já havia derrubado o outro com um murro violentíssimo. Mas o aposentado, que agora todos ouviam chamar-se Lindimar, tinha alguns amigos ali no bordel, e eles vieram em sua defesa.

A pancadaria tornou-se generalizada. Foi muito simples controlar as emoções num ambiente que atraía pessoas com tantos problemas e frustrações reunidas. Quando privado dos meios necessários para a Evolução, o animal humano só consegue descer à degradação cada vez mais aprofundada, como se fosse um buraco negro.

As meninas corriam dali, com um sentimento genuíno de medo, que pôde ser potencializado sem grande esforço. Em boa parte delas, o sentimento de ojeriza foi tão enfatizado, que dificilmente retornariam àquela vida.

Punhos chocavam-se contra cabeças, chutes partiam costelas, e algumas armas já estavam sendo disparadas. O caos era geral.

Alheios à correria geral, Clemente e Juliano continuavam sentados num dos cantos, agora protegidos pela escuridão, depois que as duas lâmpadas que os iluminavam haviam sido estilhaçadas.

Juliano demonstrava uma grande satisfação em seu sorriso. “Estamos conseguindo, vamos acabar com esse lugar”, era a mensagem que seu mestre podia captar em sua mente desenvolvida.

— Não, Juliano, não há nada por comemorar — ela agora falava com os próprios lábios. Seu ajudante não entendeu a inesperada reação do mestre.

— Como assim? Mas eles...

— Lugares como estes existem às dúzias, e sempre existirão, enquanto houver clientes dispostos a usufruí-los. Enquanto não houver uma conscientização do ser humano, haverá terreno fértil para florescer a exploração, a degradação e a escravização.

— Então, para que estamos aqui, se não podemos vencer? — perguntou Juliano, decepcionado.

— Para mostrar que estamos aqui, agindo. Mesmo que o inimigo seja mil vezes mais poderoso, continuaremos lutando. Mesmo que a fera seja grande e poderosa, ela vai sentir o incômodo das picadas das pulgas.

Tiros ecoavam pelo lugar.Um deles ricocheteou bem atrás de Juliano. O dono do bordel já estava caído no chão, morto, assim como muito dos clientes. O som de sirenes já podia ser ouvido muito distantes ainda.

— Vamos embora, mestre, já está tudo concluído — pediu Juliano, em tom de súplica.

— Não. Deixe eu terminar o whisky antes.

E bebeu mais um trago, calmamente.


DOMINÓ foi escrito por Simoes Lopes

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Maytréia 14: Nada Pessoal


Era apenas negócio, nada pessoal.

Você tinha a velha desculpa: se não fizesse, alguém faria. Além do mais, tinha contas a pagar como todo mundo. Seu pai ensinou-lhe sempre que se não fosse esperto, seria engolido por outros mais espertos. Você se lembra de como seu pai mostrava os animais caçadores atacando suas presas e dizia: “Assim é a vida: alguém caça e alguém é caçado. Saiba de que lado está!”

Seu irmão não aceitou as idéias do pai. Afirmava que o mundo humano tinha regras diferentes, regras estas que eram criadas pelo próprio homem e que – portanto – poderiam ser mais justas. Para o tolo do seu irmão, não era necessário tanto sofrimento. Mas eram irmãos. Brigavam juntos quando algo acontecia na rua ou na escola. Faziam planos de como seriam quando crescessem.

Mas a realidade aconteceu.

Enquanto seu irmão se tornou um simples funcionário público, que não faria diferença nenhuma para o mundo (ou, pelo menos, assim achava) você tornou-se um homem de negócios. Enquanto seu irmão ganhava seu minguado salário, você fazia economias cada vez maiores. Enquanto seu irmão tinha um grupo seleto de amigos que pareciam não fazer a menor diferença, você tinha alguns dos contatos políticos e econômicos dos mais importantes. Seu irmão se tornou Agente Administrativo numa repartição pública qualquer, você era um influente homem no ramo de turismo.

O fato de participar de uma máfia para o tráfico de escravas brancas era apenas detalhe.

Os anos passaram e vocês se afastaram. Não apenas ideologicamente, mas fisicamente também. O que eram constantes visitas, se tornaram encontros apenas em festas e eventos especiais e logo eram apenas ligações para desejar feliz natal ou feliz aniversário. Você somente ouvia falar do irmão através de alguns amigos em comum de infância ou algo parecido. Soube que ele andou se envolvendo em estudos de misticismo, o que achou uma tremenda besteira. Assim a coisa estava quando este apareceu para uma visita inesperada.

Você ficou feliz e convidou o irmão para almoçar por sua conta em um dos hotéis com os quais tinha algum “acordo”. Mas o almoço foi bem desagradável. Seu irmão lhe informou de que sabia de sua constante participação na remessa de garotas para a Europa, Israel e Extremo Oriente com a promessa de trabalhos e grandes salários. Ele também sabia que estas garotas tinham o passaporte apreendido assim que chegavam e eram obrigadas a se prostituir ou vendidas para outros exploradores. Informou ainda como sabia que elas tinham – em média – uma duração de cinco anos neste tipo de vida e que a maioria morria ou enlouquecia com os maus tratos.

Isso irritou você. Foi um erro, claro. Eram apenas negócios e você poderia ter usado deste argumento para conversar com seu irmão, mas mesmo assim você se irritou. Jogou na cara dele que vivia uma vidinha miserável enquanto você tinha todo o luxo e conforto que o pai lhes ensinou que alguém que soubesse verdadeiramente viver tinha. Que se o seu pai estivesse vivo teria orgulho de você e vergonha dele. Ele ouviu tudo com uma triste resignação, apenas soltando um sorriso irônico quando a morte de seu pai foi trazida a baila. Dane-se. Ele nunca gostou do pai mesmo. Você sempre gostou de seu irmão e sabe que ele gosta de você, mas não pôde evitar a raiva; quem ele pensa que é para recriminá-lo assim? Não vê que não é nada pessoal?

Antes de se despedir, seu irmão lhe pediu mais uma vez que largasse tudo enquanto ainda era tempo. Você retrucou ironicamente, convidando-o a conhecer melhor o que fazia e mostrar que essas garotas nunca teriam uma chance real na vida e acabariam por se prostituir cedo ou tarde. Aquilo magoou de verdade o seu irmão e foi fácil de perceber no seu olhar. Ele resolveu ir embora e você teve que dar o aviso: “Não se meta, “maninho”... e será o melhor para você.” Ele entendeu o recado e agora você se pergunta se ele entendeu também que não era nada pessoal, apenas negócios. Você tinha que avisa-lo.

Uma semana depois, você estava assinando um contrato com Débora (é claro que este deve ser um nome falso). As promessas eram as de sempre: emprego, curso da língua local, moradia... bom, de certa forma elas sempre recebiam tudo isso; você nunca achou que estaria mentindo.

Mas a tal de “Débora” enganou você e a sua turma direitinho. Você ainda tenta entender como isso foi possível. Residência humilde, família pobre, linguajar e expressão corporal de mulher de vida modesta... como adivinhar que ela era uma agente infiltrada? Foi um excelente trabalho, você deve admitir. Um verdadeiro truque de mágica.

Quando a polícia invadiu o lugar e a garota ingênua revelou sua verdadeira identidade, houve uma tentativa de reação. Mas a maldita da sua arma resolveu engasgar justamente quando você ia atirar na vagabunda pelas costas. Nesse momento, sua memória fica confusa. Talvez tenha sido o fato dele aparecer uma semana antes de tudo ruir, talvez seja o fato dele lhe visitar sempre; mas você pode jurar que viu seu irmão apontando para você antes da arma engasgar e que ele alertou a tal da “Débora”. Mas é claro que isso não pode ser provado. Além disso, seria ridículo imaginar seu irmão – o funcionariozinho público samaritano – ajudando numa ação de verdade.

O que se lembra bem é do tiro dela atravessando seu crânio. O resto é escuridão.

Você está tetraplégico. Seu irmão vem visitá-lo toda semana. Você gostaria de perguntar como ele o achou no sanatório, mas infelizmente se encontra incomunicável. Seu corpo não responde a nenhum movimento voluntário. Você, que aprisionou tantas mulheres e as tirou do direito de ter domínio sobre o próprio corpo, agora tem o seu paralisado como castigo.

A cada visita, seu irmão fala de coisas sem o menor sentido, como kharma e dharma, ação e reação, sobre o que a humanidade tem de melhor e como isso vem sendo abafado. Uma vez ele tentou te explicar que somos todos Doutrinados e vivemos numa realidade ilusória. Você sabe que esse papo é por causa dos estudos místicos dele, que ele está querendo o melhor para você. Mas isso não o convence... não é nada pessoal, mas não convence mesmo.

Mas há um detalhe muito especial que lhe tortura profundamente. Quando você aprendeu com seu pai a arte de explorar as mulheres e herdou os negócios da família seu irmão sumiu e não queria mais voltar. Mesmo quando soube da morte dele cerca de um ano depois, seu irmão se recusou a ir ao enterro. Você sempre achou que era por causa da rejeição de seu pai para com ele, mas recentemente algo o fez pensar melhor. O caixão desceu lacrado, tendo em vista as condições em que ele teria morrido. Você pensa agora (pois tempo para pensar é o que não falta) que deveria ter exigido que abrissem o caixão.

Numa determinada visita seu irmão trouxe um homem mais velho, no mesmo estado que você e desde então ele sempre faz isso. Alimenta você, conversa com você, pega na sua mão e tenta ser carinhoso. E faz exatamente o mesmo com o outro homem. No início você simplesmente quis se recusar a entender o que aquele homem representa, mas então notou a cor de seus olhos e os traços do rosto – mesmo que deformados pela velhice e pela imobilidade – eram os traços de um rosto conhecido. Seu irmão tinha finalmente a reunião de família que sempre quis, sem que seu pai o recriminasse por isso. Você sabe que a dor e a raiva que sente com relação a isso não muda nada. Sabe também que se seu irmão pudesse faria as coisas acontecerem de outra forma. E ele sempre fala que não pretende torturar ou punir vocês, mas apenas espera que vocês aprendam. Ele diz ser este o seu dever, que não faz isso por mal. Isso você entende.

Afinal de contas, não é nada pessoal.

NADA PESSOAL foi escrito por Danilo Faria

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Maytréia 13: Espantalho


O milharal se estendia para além dos limites da vista do pequeno Geraldinho. Ele parou em frente ao boneco empalhado, que trajava um chapéu roto e roupas escuras e esfarrapadas, amarrado numa pesada estaca de madeira.

— Prá que serve os espantalho, Tio Zezinho?

José de Almeida Pires, o Zezinho, parou de tragar seu cigarrinho de palha por um instante, e olhou com carinho para o neto de sua falecida irmã.

— Para espantar os pássaros que vêm aqui comer o milho. Eles vêem os bonecos e pensam que são homens vigiando, e aí vão embora, com medo.

Geraldinho olhou com atenção para os vários espantalhos que se postavam nas várias estacas fincadas em linha.

— Passarinho é bicho bobo, né? Têm medo de um boneco feio...

Zezinho soltou uma gargalhada com a observação da criança, e o chamou de volta para casa. O capinzal chacoalhava com a força de uma ventania fria, e já começava a cair uma garoa fininha. E o menino voltou correndo para casa, pois sabia que sua mãe havia preparado um bolo de fubá, cujo aroma já podia ser sentido no ar.

* * *

O relógio da fazenda marcava exatamente meia-noite quando um estranho casal surgiu andando pelo milharal. Ambos eram jovens, altos e de cabelos claros.

Caminhavam com a arrogância de quem se sente forte o suficiente para fazer o quiser. À medida que caminhavam, as ervas em seu caminho murchavam e definhavam drasticamente. Chamas alaranjadas saltavam de seus dedos, formando uma espécie de aura nebulosa ao seu redor.

Apesar da aparência jovem, ambos eram antigos, muito antigos. A moça de cabelos loiros e olhos verdes que vestia um casaco negro, por exemplo, era seguramente mais antiga que a própria fazenda. A tempestade forte que caíra no final da tarde já havia passado, embora o chão ainda estivesse úmido, com muitas poças atrapalhando a passagem. Eles não vieram atrás do milho, nem das vacas, nem dos porcos.

Não estavam preocupados com a arquitetura da casa, ou em saber se o celeiro estava cheio. Eles estavam atrás de outra coisa. Aquela pequena fazenda ocultava algo incrivelmente maior. O rapaz, que também vestia trajes escuros como a noite, indicou uma direção para sua companheira. Eles cerraram os olhos, e começaram recitar uma espécie de mantra. Continuaram em sua marcha implacável. No caminho, espigas de milho eram instantaneamente carbonizadas, tufos de grama desintegravam-se com fagulhas incandescentes, e podia-se ouvir alguns animais berrando ao fundo.

Parecia que eles estavam pressentindo algo extremamente perigoso e maligno vindo em sua direção. A moça parou por um instante, como se aspirasse o ar campestre. Então seu parceiro ouviu uma pequena e breve mensagem telepática:
“Posso sentir as reminiscências da Egrégora. É aqui.”

Os dois concentraram-se para o ataque, e correram na direção do celeiro, preparando-se para passar por entre as estacas com os toscos espantalhos.

Quando a moça passou ao lado de um dos bonecos de palha, instantaneamente sentiu uma barreira invisível empurrando seu corpo para trás, com violência. O rapaz de barba ruiva demorou apenas dois segundos para perceber do que se tratava. Tarde demais.

Bem à sua frente, o casal viu toda uma fileira de treze espantalhos abrindo os olhos. Olhos que não deveriam existir.

Mas os improváveis olhos os fitavam agora, brilhando como pedras preciosas de um azul-violeta forte. Os homens empalhados desceram das estacas e cercaram os dois invasores noturnos. O que quer que existisse naquela fazenda, era muito bem protegido.

E raios azulados cortaram a escuridão da noite, avisando aos dois jovens que a Egrégora tinha guardiães. E que visitantes, especialmente daquele tipo, não eram bem vindos. Os bonecos eram muito eficientes em manter as aves distantes. Mas para este
outro tipo de invasor, afastar não era o bastante.

Era necessário destruir.

* * *

Geraldinho não conseguia dormir. A chuva caía forte lá fora, e os trovões pareciam querer destruir a casa com seu barulho retumbante. Seu tio-avô abriu a porta, e sentou-se à cabeceira da cama.

— Pode dormir, Geraldinho, a tempestade já está passando...

Sentindo-se protegida, a criança finalmente foi adormecendo, embalada pelo acalento do sábio tio. E José lançou mais um olhar pela janela.

Ele sabia que não havia tempestade nenhuma. Ele era um homem sábio, muito sábio. Um homem que não entendia só de agricultura.

Ele tinha certeza que, lá fora, os espantalhos seguiam cumprindo a sua função.

ESPANTALHO foi escrito por Simoes Lopes

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Maytréia 12: Duelo Invisível


Meu nome é Marcílio Lemos, todos me conhecem como um dos advogados que trabalham no Edifício Avahy. Mas o mais importante é que ninguém sabe que também sou um xatrya dos Mecenas.

Eu repito minha rotina de todas as manhãs dos dias “úteis”. O enorme elevador do edifício está apinhado de gente. Mais um dia de trabalho se inicia. Eu vejo rostos com sono, cansados, amaldiçoando mais uma segunda-feira. Em meio ao mar de gente, eu consigo avistá-la.

É uma garota baixa, de compleição esguia, e cabelos ruivos encaracolados. Os olhos são de um azul-escuro bem bonito, o decote é generoso. Eu sei quem ela É. E pelo olhar que ela lança em minha direção, ela também sabe quem eu SOU.

Nós somos inimigos, e podemos nos reconhecer. Ela é uma marionete dos Mayávicos, e não é a primeira vez que a encontro. Sua identidade humana — se não estou enganado — é Isabelle Marins Ferretti. Somos inimigos mortais, mas não podemos travar nossa guerra aqui, neste lugar cheio de gente imersa na Maya.

Primeiro Andar. Trocamos discretos olhares de ódio, sem que os outros percebam, absortos em seus probleminhas cotidianos.

Segundo Andar. Sinto uma queimadura intensa em minha coxa. A gorda senhora da frente, que carregava uma garrafa térmica com café quente, não percebe que há um furo no frasco, e eu tomo um banho de líquido fervente.

Terceiro Andar. A dona tenta se desculpar. Eu aceito, fingindo polidez, enquanto ativo meus siddhis para aliviar a dor, e apressar a cicatrização. Isabelle está rindo.

Quarto Andar. Isabelle grita de dor, enquanto agita os braços. Dois corretores tentam ajudá-la. Ela diz que foi picada por uma abelha. Uma servente baixinha diz que a abelha deve ter vindo da confeitaria do térreo. Não é a primeira vez que acontece. Reclama da administração do prédio. Eu lanço um risinho de triunfo para a minha bela inimiga, que agora ostenta um inchaço vermelho no pescoço.

Quinto Andar. Uma bela nissei à minha frente vira-se subitamente, furiosa. Ela me acusa de ter passado a mão em sua bunda, e me dá um leve safanão. Eu nego, mas o namorado dela, um sujeito de quase dois metros de altura e cujos músculos de lutador sobressaem no terno apertado, me acerta um soco na cara.

Sexto Andar. Eu estou caído no chão, sangrando. O elevador esvaziou um pouco, mas as outras pessoas se apressam em apartar o que pensam ser uma simples briga. Eu continuo negando, e o casal salta do elevador, com o troglodita me jurando de morte.

Sétimo Andar. Enxugo o sangue no nariz, e mais uma vez uso os siddhis para estancar a ferida. Isabelle também deve ter feito o mesmo em relação à picada da abelha.

Oitavo Andar. O elevador já está quase vazio. Eu me aproximo dela mais um pouco. Além de nós, só restou a senhora que me derrubou o café, um corretor de bigodes antiquados, e uma estagiária de direito com rosto amarrado.

Décimo-primeiro andar. Ficamos a sós pela primeira vez.

Décimo-segundo andar. Trocamos sorrisos.

Décimo-terceiro andar. A luz se apaga. O elevador pára subitamente. Parece que minha inimiga e eu tivemos a mesma idéia. “O ratinho cego caiu na boca do gato”, são suas únicas palavras. Vários minutos se passam.

Último andar. Do lado de fora, dois técnicos não conseguem explicar o que causou a paralisação do elevador. Depois de algumas tentativas inócuas, finalmente as pesadas portas pantográficas se abrem.

Uma bela moça de cabelos ruivos sai do elevador, ajeitando o vestido, agradecendo aos técnicos com uma piscada sensual. Um deles pensa em fazer um gracejo, mas é contido pelo outro. A jovem dirige-se ao terraço do último andar, com ar de triunfo. Chega no parapeito transbordando de alegria.

“Como se sente agora, minha bela rival, tendo seu corpo controlado pela minha vontade?”, ecoa a minha voz no cérebro de Isabelle.

“Veja que belo poente”, repito com ironia, “será seu último”.

“Não foi o ratinho cego que caiu na boca do gato. Foi o gatinho cego que engoliu uma granada, pensando ser um rato,” permito-me completar a frase idiota com que ela me ameaçou. “E não se preocupe com meu corpo, está em local seguro, ao contrário do seu”, arremato, sem dar muitos detalhes.

“Agora pule. Arrevoir, Isabelle!”

Um inimigo a menos no mundo.

DUELO INVISÍVEL foi escrito por Simoes Lopes

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