segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 27: O Segundo Presente (baseado em uma história hindu)


Hira era linda. O frescor e tom de sua pele, os movimentos suaves que tentava esconder e os olhos rasgados lhe impregnavam de uma sensualidade estonteante para os homens. Mas, infelizmente, ela considerava isso um fardo, pois seu objetivo era alcançar o Nirvana. Hira era uma monja.

No Budismo que ela seguia, o desapego aos acontecimentos era o elemento essencial, poderia se dizer que era a raiz da doutrina. E Hira dominava bem seus sentimentos e pensamentos. Conseguia penetrar nos âmagos mais profundos dos recessos sem fim daquilo que sua mente ilusoriamente era.

Contudo havia um acontecimento que definitivamente a perturbava: Hira não podia ir à feira, pois todo o seu controle perdia-se lá. Sua beleza sempre provocava comentários e gracejos pouco educados dos feirantes locais. Era exatamente nestas visitas à feira que ela ficava perturbada a ponto de maldizer sua própria beleza. E seu Mestre constantemente a selecionava para fazer as compras. Apesar de suas tentativas de fugir do serviço, raramente ela conseguia evitar ser selecionada para este — pelo seu ponto de vista — torturante trabalho.

E, naquele dia, não foi diferente. Ela realmente esperava ser aliviada daquele tormento naquele dia em especial, pois acreditava que talvez seu Mestre pudesse considerar que ela não precisava daquela provação naquele dia especificamente, pois, afinal de contas, era seu aniversário. Ela não costumava se apegar a estas datas, mas secretamente admitia que se sentia melhor com a idéia de que este fator pudesse ser considerado e um alívio concedido.

Portanto, foi com o coração apertado que ela se retirou do templo e desceu um pedaço da encosta para fazer as compras. Para piorar, seu Mestre a enviou sozinha desta vez, com a desculpa de que precisava do seu irmão que sempre a acompanhava para outra tarefa. Pelo menos as compras eram poucas e a visita seria rápida.

O principal elemento de descontentamento para Hira nas idas à feira era um feirante em especial. Sempre suado e cheirando pessimamente, com uma aparência cruel e profundamente mal educado, ele costumava ser o portador das observações mais grotescas a respeito da beleza de Hira e do que faria com ela se esta assim deixasse. Além disso, costumava ser aquele que instigava os outros feirantes próximos com as piadinhas sujas que soltava.

E lá estava ele. E lá estavam as suas gracinhas. E lá estava sua aparência repugnante. Só que havia dois elementos novos: Hira estava mais sensível devido ao seu aniversário e ele tentou tocá-la.

Como já é de certo conhecimento geral, um monge oriental segue um certo padrão que difere bastante dos monges ocidentais. Não vamos nos aprofundar aqui, mas um deles é que eles aprendem defesa pessoal. E costumam aprender muito bem...

Quando o feirante tenta tocar em Hira, ela vira-se e agarra sua mão torcendo o pulso. Enquanto o feirante engasga e retorce o corpo automaticamente na tentativa de evitar a dor que o ângulo estranho de sua mão provoca, Hira o atinge violentamente com um pontapé no queixo. O movimento e o barulho da mandíbula deslocando imediatamente chama a atenção de todos em volta. Em meio ao desespero provocado pela dor e a humilhação de estar apanhando de uma mulher, o feirante tenta alcançar uma faca em sua barraca, mas é impedido pelo pulso que ainda se encontra torcido nas mãos de Hira. Esta, quando percebe a intenção do feirante o atinge com outro chute violento, desta vez no peito... e solta a mão dele.

A mistura do golpe com a perda repentina do apoio no pulso — mesmo que dolorido e retorcido — fez com que o homem caísse por sobre a própria barraca, derrubando a mercadoria no chão.

Hira então olha ao redor. Todos a encaravam com temor (será que ela também via uma reprovação em seus rostos?). O feirante usava a mão que ainda não doía para levantar na direção dela, a mão espalmada e o rosto apavorado indicando que para ele chegava.

Então, a noção de tudo o que havia feito caiu como um raio em cima dela.

Imediatamente, surgiu em seus olhos uma enorme vontade de chorar. Ela controlou ao máximo esse ato e se retirou dali, sem comprar nada.

Ao chegar no templo, ela percebe que o irmão de seu Mestre se encontrava em visita, o que aumentou sua vergonha em ter de explicar o que aconteceu. Quando este perguntou a ela onde por que não trouxera as compras, ela perdeu completamente o controle e se pôs a chorar. Seu Mestre lhe chamou a atenção severamente e mandou que ela se retirasse para meditar, que só retornasse quando estivesse devidamente equilibrada.

E mais uma vez ela se retirou, amaldiçoando sua beleza.

* * *

Quando ela se sentiu equilibrada o bastante para falar com seu Mestre, percebeu que o irmão deste ainda se encontrava lá. Era um caso interessante esse do seu irmão, pois enquanto seu Mestre se tornava um seguidor do Budismo, seu irmão era Hindu. E, no entanto, eram extremamente amigos. Hira sempre se perguntou como eles conseguiam conciliar os dois pontos de vista diferentes e viverem harmoniosamente.

Certa vez ela ouviu outro monge comentando que eles não eram irmãos de sangue (apesar de que, para Hira, assim pareciam), mas que por serem ligados a “coisas maiores” tinham uma ligação de irmãos. Outro dia ouviu um deles comentando sobre serem Alquímicos Shudras e uma reunião na Loja ou uma conversa parecida.

Talvez isso explicasse sua união ou talvez não. Mas, para Hira, a presença do irmão de seu Mestre sempre era seguida de uma certa expectativa, pois percebera há algum tempo atrás eles conversando sobre como ela poderia se tornar uma postulante a alguma coisa.

E, para sua vergonha, era seu aniversário e ela havia perdido o controle.

Mas, quando o seu Mestre a viu equilibrada novamente e pronta para a bronca, este apenas sorriu. Meio que sem entender direito, Hira recebeu um bastão de presente de aniversário, indicando sua passagem de grau. Seu irmão, também sorridente, falou primeiro: “Feliz aniversário”.

“Obrigada, senhor...”, responde ela, ainda encabulada. Virando-se para seu Mestre, ela começa: “Mestre, estou aqui para...”

Ele a interrompe com um gesto de mão.

“Você está aqui para ganhar seus presentes de aniversário!”, ainda sorrindo, ele mostra o bastão para ela. “Pedi que seu irmão — que normalmente lhe acompanharia até a feira — para fazê-lo. Há muito amor nele.”

“Obrigada.”

“Mas creio que devo pedir desculpas pelo meu comportamento de hoje...”

“Não precisa. O feirante já a perturbava a muito.”

Surpresa com o fato de que seu Mestre sabia o que ocorria ela olha para ele. Seu irmão continua:

“E ele merecia uma surra muito tempo.”

Aquilo a deixou ainda mais surpresa, ela não havia ainda contado nada para ninguém. O irmão de seu Mestre continuou:

“Fiquei gratamente surpreso ao descobrir seu aniversário, mas nada trouxe... o que declinaria uma falta de educação. Portanto, com a permissão de meu irmão escrevi meu presente no seu bastão.”

Tão atordoada estava ela que não havia percebido que existia algo escrito no bastão. Ela o vira e então lê.

ONIPOTENTE SÓ BRAHMAN. NÃO CULPE, ATUE.

Lágrimas começam a embaçar seus olhos. Ela recupera o controle e percebe que eles ainda mantinham o sorriso (seria de sua tentativa patética de se controlar?). Seu Mestre então fala:

“Por que culpar a sua beleza? E por que culpar o feirante? As experiências da vida são para serem vividas. Não culpe ninguém nem a si mesma... apenas viva.”

Ela sentia uma vontade terrível de abraçar aos dois, e como se lessem seus pensamentos eles a envolvem em um grande abraço. Ela chora baixinho um pouco, com o alívio do peso da culpa saindo de seus ombros.

“Vamos comemorar o seu aniversário...”, diz seu Mestre, “... e amanhã você irá a feira de novo.”

Diante do olhar dela, ele responde, exibindo um sorriso de Mona Lisa:

“E se o feirante desrespeitar você novamente, bata-lhe com este bastão. Mas sem culpá-lo e sem se sentir culpada... apenas consciente de que está ensinando um irmão ...”

E ela os acompanha, com os dois presentes que ganhou.

O SEGUNDO PRESENTE foi escrito por Danilo Faria (baseado em uma história hindu)

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