Caído no chão, com fraturas expostas em ambos os braços, vejo alguns dos meus dentes numa poça de sangue. Minha mão esquerda está quase carbonizada, mas pelo menos não sinto mais dor. Meu nome é Nathan Bromsk, e fui contratado por Bernat Barpadom para localizar os assassinos de sua família. Enquanto a hemorragia interna nubla meus pensamentos, sinto minha mente sendo tomada por um estranho estado delirante, onde lembranças mesclam-se como num caleidoscópio imaterial.
A imagem de Barpadom ressurge de forma quase translúcida. Um velho de longos cabelos brancos desgrenhados, com uma brilhante dentadura de ouro. Sentado numa cadeira de rodas, sua voz tinha um tom robótico devido à traqueostomia. O ancião, nascido em Berlim de uma família de ourives judeus, foi preso quando tinha vinte e dois anos de idade e mandado com toda sua família para um campo de concentração na distante Polônia. Pais, tios, irmãos, primos, foram todos mortos após uma vida de escravização e tortura. Na última vez que o vi, Bernat tinha mais de oitenta anos, mas o sofrimento e a sede de vingança o faziam parecer ainda mais velho. Ele jamais desistira de procurar pelos culpados do genocídio que vitimara sua família, e gastou boa parte de seu dinheiro em investigações particulares que levaram ao nome de Hilarius Schwägel, médico nazista responsável por realizar experiências científicas de atrocidade sem par. Hilarius — segundo as fontes de Barpadom — estava vivo, com mais de cem anos de idade, e levava uma vida tranqüila e impune em um xalé nos Alpes Austriacos. Todas as tentativas de Bernat em levar Hilarius aos tribunais haviam sido em vão. O nazista foragido devia possuir amigos influentes e uma grande número de informantes, pois sempre escapava incólume das tentativas frustradas de captura.
O exaurido Barpadom me confessara uma vez que não esperava mais nada da Justiça dos homens, com seus caminhos tortuosos, seus corruptos togados e suas ações seletivas. Caberia a mim — em troca de um considerável pagamento — levar as investigações adiante e dar cabo da vida do odioso nazista.
Minha missão não foi nada fácil, e somente após muitos anos de persistente procura, acabei por localizar o tal xalé, já inteiramente abandonado. Parecia que tinha retornado à estaca zero, mas quando não imaginava mais o que fazer, um misterioso personagem me contatou em Viena.
As lembranças perdem-se em mais um devaneio, quando um novo acesso de tosse me traz de volta ao presente. Cuspo mais um jorro de sangue, e minha cabeça lateja com muito força. As memórias tornam-se confusas. Era Paul o nome do informante misterioso? Ou Paulus? Não... o nome Rivet me vem à cabeça, mas não consigo recordar a ligação entre ambos os nomes. Tão difícil lembrar...
Profanzeichen. Este é único nome que nada me fará esquecer. “Símbolo Profano” ou “Marca Profana” seria o significado em alemão, e isto subitamente me faz lembrar de um salão grande, com grandes paredes revestidas de mármore, e um horrível símbolo vermelho pintado na parede.
Uma garra de três dedos, formando um arremedo de suástica. Um velho vestindo um casaco escuro, com um cachecol castanho. A pele pálida deixava transparecer veias de tom azulado na calva saliente. Tusso mais um pouco. Percebo que há um enorme arranhão em minha perna.
O velho de casaco era Hilarius? Sim... não... sim! Sim ! Era ele, mas ele usava o nome de Doktor H. Por que este nome? O que aconteceu comigo?
Ouso passos atrás de mim, mas não posso me virar. Sinto o frio aumentar ainda mais quando alguma janela ou porta abre-se para exalar uma ventania gélida. A dureza do chão de pedra faz meus tornozelos doerem quando tento me arrastar.
As imagens de um passado não tão distante voltam mais uma vez. Tive acesso a documentos antigos. Não, não eram antigos, embora escritos em um idioma morto. Um caderno de anotações escrito em Alto-Alemão Antigo colocou-me novamente na pista do impune assassino de inocentes. Descobri que gente da alta cúpula do Nazismo estava envolvida em ocultismo e satanismo. Aprendi sobre rituais horrendos, criaturas cuja existência a Biologia nega e tive um pálido relance dos bastidores de uma organização secreta de demonistas conhecida como Profanzeichen. Os objetivos...
Ouço algumas palavras ditas em alemão, com tom ríspido. O estado de torpor nubla minha percepção e não consigo entender o que está sendo dito.
Conquistar e dominar o Mundo, talvez. Instalar o Quarto Reich com todos os meios possíveis, mesmo os mais abomináveis. Preparar o terreno para a chegada da Raça Superior que vai governar este planeta. A Raça Ariana.
Agora, bem no apogeu de minha agonia, consigo recordar que estive cara a cara com o nefasto Doktor H, e suas palavras ainda ecoam em meus ouvidos: “No passado, quisemos construir um império eterno e invencível desfraldando os estandartes de Deus. E falhamos terrivelmente. Mais tarde tentamos o poderio bélico da Ciência e da Tecnologia. Falhamos mais uma vez. Resta agora usar o que nos restou: o poder flamejante do Diabo!”
Uma sombra cobre o chão onde estou deitado. Meu olho esquerdo está inchado e não consigo ver as coisas com clareza.
“O Homem é fraco e débil demais para ter a coragem de fazer um pacto com as hostes infernais!”, foi Hilarius quem disse isso, ou eu li em algum lugar?
“Nós criamos os Ubermenschen!!!”
“Nós criamos os Ubermenschen!!!”, ouço a frase ser repetida mais uma vez, outra, e depois uma infinidade de muitas repetições, bombardeando meus ouvidos com um eco interminável. Ubermenschen, sim, os “Super-Homens”, em alemão.
Nathan Bromsk descobriu o paradeiro de Hilarius Schwäbel, o membro vivo mais idoso do Profanzeichen, organização secreta conhecida de tão poucos. Foi através do próprio Doktor H — o codinome do assassino impune dentro da organização — que o caçador de nazistas acabou aprendendo um pouco mais sobre o maldito culto.
Doktor H não escondeu nada de seu caçador, porque sabia que este não viveria para contar a ninguém. Neste momento, o debilitado Nathan está caído em meio a uma poça de sangue. Alguém o levanta do chão com incrível facilidade. Ele abre os olhos sofregamente e vê um homem enorme com mais de dois metros de altura, olhos azuis como o céu e cabelos claros como palha sorrir para ele.
Um sorriso de pura arrogância. Um sorriso de maldade suprema. Em total silêncio, o gigante nórdico abre a boca, e de sua garganta jorram chamas avermelhadas que engolfam a pobre vítima em uma fração de segundo.
O homem desfaz-se do cadáver calcinado com um ar de profundo nojo e começa a levitar, deixando a sala.
Quando finalmente desfazem-se as nuvens que cobriam a Lua Cheia, a luz do luar penetra pelas frestas da ampla janela. Na parede iluminada, é possível ver pintado o demoníaco símbolo de uma garra vermelha. O símbolo da Mão de Satã.
O símbolo do Profanzeichen.
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