segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 24: O Presente


Eram duas e estavam a repetir um ato milenar. A avó esfregava suavemente em alguma pedra a roupa que lavava no rio, a neta observava. A neta era noiva e tinha 18 anos, a avó era viúva e não vamos comentar sua idade, pois é feio falar da idade de uma dama depois de uma certa altura da vida. No início, a neta se propôs a ajudar a avó lembrando da máquina de lavar que tinha na casa da mãe, mas esta retrucou afirmando que se uma mulher não pudesse mais lavar as suas roupas, o que ela faria? A neta então só observou, se perguntando o porquê de ter sido chamada até ali.

Durante um tempo a avó nada disse. Rompeu então o silêncio com um “Quando você casa mesmo?” e voltou a mergulhar nele quando a resposta foi “Dentro de três meses”. A neta começava a se sentir incomodada com o silêncio, pois normalmente sua avó era falante e brincalhona. Perguntava-se se havia feito algo de errado quando finalmente percebeu o sorriso dela em sua direção.

“Você está preocupada?”

“Desculpa, . Eu fiquei preocupada com a possibilidade de ter magoado a senhora...”

“Me magoado? Não... não, minha doçura. Eu apenas estava pensando aqui em como dar o seu presente de casamento...”

“Meu presente? Mas , não precisa...”

A velha senhora repousa um olhar divertido na sua neta. “É claro que precisa! Onde já se viu mulher que não se importa em ganhar presentes?” Sorri mais abertamente. “Olha minha filha; o seu futuro marido — que é um bom homem, Deus o sabe — pode vir com aquelas coisas de cuidar da cabeça dos outros e dizer que tudo é libido — para mim é só uma outra forma de dizer que tudo é sem-vergonhice — mas isso é só na cabeça dos homens. Para uma mulher, tudo é beleza e vaidade... e ganhar presentes envaidece qualquer uma.”, pisca um olho para a neta. “Não existe sensação melhor do que a de segurar um embrulho e querer saber o que tem dentro, né?”

As duas começam a rir o sorriso secreto que as mulheres trocam a sós quando percebem que os homens não conseguiram ainda entrar em seu mundo real. A neta comenta então: “Está bem, . Onde está? Eu não vi você trazer nada...”

“Ah, esse tipo de presente? Esse eu só vou dar no dia. O seu pai fez questão de comprar um para que eu lhe pudesse dar — sabe que sua velha avó não tem muito dinheiro. O outro que tenho é muito melhor...”

A neta fica intrigada mas nada responde, esperando. Sua avó começa:

“Eu morei 10 anos na cidade grande, sabia? Claro que sim, eu já falei isso antes, que tolice de velha faladora a minha. Foi lá que eu conheci seu avô. Deus, que homem bonito e orgulhoso. Assim que olhei para ele eu pensei ‘este é o homem com quem vou casar’. Ele tinha os dois grandes elementos que um homem precisa para conquistar uma mulher: fazia eu me sentir segura quando estávamos diante do mundo e parecia um menininho indefeso quando estávamos a sós. Sei que parece confuso, mas vejo no brilho dos seus olhos que você entende o que digo. Mas estou fugindo do assunto de novo!”

“Quando morei na cidade grande, eu tinha amigos. Amigos... muito especiais. Eles me ensinaram muitas coisas. Eles me ensinaram que todos na vida têm um papel. Todos, sem exceção. Alguns ficam sabendo deste papel, a maioria não. Os que ficam sabendo têm uma chance maior de... conhecer Deus. E Deus reserva dons especiais para estes seus filhos, que não são melhores que os outros mas conseguiram chamar a atenção Dele pelos seus esforços.”

“Mas Deus também exige mais destes filhos. Ele então coloca um anjo que os vigia o tempo todo. Este anjo ajuda ou pune àqueles que estão nesta trilha. As coisas passam a acontecer para eles e recebem dádivas ou punições de acordo com o cumprimento ou não da Vontade Divina. E a primeira preocupação deste anjo é mostrar qual é o papel de que falei antes. Deus, em Sua sabedoria não permite que os anjos falem a mesma língua dos homens, portanto eles devem se comunicar da maneira que podem.”

“Antes que eu me desvie mais do assunto, deixe-me terminar. Um dia, eu ainda era jovem e bonita como você e estava na janela do sobrado em que morei na cidade quando vi um senhor muito bonito e elegante, com um belo e caro terno, sapatos bem lustrosos e um penteado impecável. Seu chapéu era de uma elegância incomum e seu andar era o de um homem que sabe o que faz da vida. Eu talvez o tivesse esquecido se não acontecesse o que aconteceu depois. Um menino, pés descalços, roupinha esfarrapada e carinha triste parou este homem para pedir esmola. O homem sorriu contrito e afirmou não ter um tostão, despachando o menino.”

“Ah, aquilo me irritou. Como pode um homem tão bem vestido não dar um único trocadinho para um menino necessitado? Me chateou tanto que quando eu percebi lá de cima da janela que dois malandros conversavam na esquina e olhavam para o homem, eu não avisei. Achei que ele merecia o que estava para acontecer. Eles abordaram o homem, tiraram sua carteira e — Deus sabe como também fiquei surpresa — perceberam que ele realmente não tinha um tostão.”

“O pobre do homem pôs-se a explicar que estava voltando de uma entrevista de emprego. Que pegara o único terno que ainda tinha e foi e estava voltando a pé por não ter o da passagem... e não havia bonde para a sua casa. Os malandros se irritaram, felizmente uma dupla de policiais chegou a tempo e os malandros tiveram que fugir. Mas não sem antes passarem o canivete no pobre homem que saiu ileso, mas com o terno estragado.”

“Fiquei vendo o pobre homem chorar como uma criança por ter seu único terno de procurar emprego estragado e percebi que poderia ter evitado isso. Mas, na minha irritação, não o fiz. E meu anjo me mostrou isso. Foi quando percebi o peso real do kharma maduro.”

Diante da expressão confusa da neta de ver um termo oriental surgir na boca da avó sempre tão simples, a senhora sorriu de novo e respondeu rápido: “Existem pequenos erros do dia-a-dia e nossos anjos nos permitem cometê-los, mas eu cometi um bem grande naquele momento...” Seu sorriso se amplia. “Contudo, foi bom assim. Aprendi a grande lição que me mostrou o meu papel na vida.”

A neta ficou observando sua avó por um tempo. Então, não conseguiu mais manter a curiosidade: “Vó, a senhora falou em kharma...”

“Minha querida, com tanto para te ensinar e você se preocupa com isso?”, alisa o rosto da neta com um carinho genuíno. “Nem seu avô percebeu o mundo que conheci...”, um laivo de saudade bateu em seus olhos, “... e foi melhor assim. Que homem maravilhoso”, completou, sorrindo abertamente.

Então tirou um pedaço de papel do bolso do avental. “Assim como eu trouxe seu avô para cá, seu marido irá levar você para a cidade. Não conte para ele que tivemos esta conversa — é um bom homem, mas não entenderia. Se te interessar, visite este endereço e diga que eu te enviei. Não devem se lembrar mais de mim, mas diga que meu nome está no livro... você sabe a data em que estive na cidade. Não quero falar em voz alta para não me lembrar do quanto estou velha”, sorri novamente. “Você tem potencial, minha querida. O potencial que não vi em sua mãe, você irá entender se for aonde indiquei.”

“Mas vó, como pode se sentir culpada? A senhora não podia fazer nada...”

“Nada?” Os olhos dela manifestam um brilho estranho. “Acho que posso afirmar que imaginei uma saída diferente para aquela situação a cada manhã. Mas talvez tenha sido melhor assim, meu anjo soube me ensinar a lição certa.” Assumiu uma rara expressão triste em seu semblante. “Espero que o pobre homem tenha sido feliz... e que o que fiz depois o tenha ajudado.”

A neta não sabia o que dizer. Então afirma emocionada: “Obrigada, , pelo presente!”

“Isto? Oh, o endereço não é o presente. Você pode ir lá ou não conforme o seu desejo. O verdadeiro presente foi a lição que recebi naquele dia. Ali, apesar de ter sido duro e doloroso às vezes, foi o momento que comecei a deslumbrar o meu papel. Aquela lição me guiou para tudo o resto da vida.”

A neta perguntou: “E qual foi a lição?”

A avó solta um sorriso cândido e diz: “Que Onisciente somente Deus. Portanto, não julgue ninguém... nunca.”

Ela volta a limpar a sua roupa no rio. A neta fica por um tempo pensando no que lhe foi dito. Então, ajoelha-se ao lado de sua avó e começa a esfregar as roupas na pedra.



O PRESENTE
foi escrito por Danilo Faria


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