sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Rebelião 99: Alpha Scorpii


ECOS DE PRAGA IV

Manfred von Burgund, o famoso magnata alemão, proprietário da Financeira Alpha Scorpii, está desaparecido há cerca de um mês, e nenhuma das polícias européias envolvidas no caso tem a menor pista sobre seu paradeiro. Wanda Kerlik, a top model polonesa que fora a última de extensa lista de namoradas do empresário, estava numa profunda crise de depressão, e dizia que achava que seu amado estava morto. Karl Wolfsgruber, o vice-presidente da Alpha Scorpii, quando perguntado sobre o futuro da financeira, garantiu que os negócios continuavam com o mesmo sucesso de sempre, e que não descansaria enquanto não descobrisse o que acontecera com o patrão. Ao contrário de Wanda, fazia questão de negar qualquer suspeita de assassinato.

Quando apareceu mais uma vez a chamada do telejornal para uma reportagem sobre o sumiço de Manfred após os comerciais, Bovidiska desligou o aparelho com raiva. Levantou-se de sua confortável cadeira forrada com veludo cor de vinho, e foi até o frigobar para pegar uma garrafinha de vodka. Não pôde deixar de sentir um certo desprezo pela ignorância de todos, ainda que a esquálida modelo polonesa não deixasse de ter razão em seu palpite.

Manfred estava morto. Assassinado. E jamais encontrariam seu cadáver.

Bovidiska Lenojvk, dono do Albergue U Raka, era um Nefilim, e como Manfred von Burgund, era um Precursor. Ele sabia que Manfred havia sido vítima de uma emboscada, e tinha sido eliminado. Assim que morrera, com certeza — como todo Híbrido — seu corpo-alma inumano deve ter se consumido numa labareda quintessencial de energia sutil, sem deixar nenhuma molécula sequer como vestígio. Malika Zaila, o Guerrilheiro moçambicano, tinha informações seguras sobre o ataque a Manfred, ainda que não soubesse precisar contra quem o Precursor lutara. Um grupo seleto de Guerrilheiros sensitivos tinha vasculhado o lugar onde ocorrera o confronto, e captara fragmentos pós-cognitivos que confirmaram o assassinato, mas que estranhamente não permitiram identificar os agressores. Malika confidenciara com seu amigo particular Lenojvk que também estranhava o fato de alguém intencionalmente buscar o extermínio de um Nefilim, já que tanto as hostes celestes como as infernais sempre buscavam evitar a destruição dos Filhos da Segunda Rebelião, dedicando-se mais a missões de captura, manipulação ou cooptação. O dono do albergue concordava com a análise do Guerrilheiro, e desconfiava de que os inimigos fossem humanos sem vínculos com o Sheol ou o Shamaim.

A Financeira Alpha Scorpii, uma poderosa instituição fundada por Von Burgund há doze anos atrás, movimentava bilhões de eurodólares através de uma rede de filiais espalhadas pelos quatro cantos do mundo, e além disso possuía tentáculos ocultos envolvidos com diversas atividades ilegais, o que provavelmente duplicava ou triplicava seu lucro “oficial”. Sem dúvida haveriam inimigos e rivais, mas Bovidiska duvidava que qualquer competidor humano fosse páreo para os dotes de alguém como Manfred. Não havia forma de banditismo, por mais cruel que fosse, que não pudesse ser repelida ou contra-atacada pela rede de comparsas subterrâneos da Alpha Scorpii. Seria preciso que os assassinos dos Precursores dispusessem de alguma arma “especial”.

Bovidiska estava temeroso que este misterioso inimigo tivesse acesso a outras informações privilegiadas sobre os Nefilim, e que o Albergue U Raka fosse um dos alvos. Era preciso identificar o mais rápido possível quem era o oponente, e de que armas dispunha. Foi até o quarto onde Malika ficava, mas este não estava no albergue. Pensou em contatar outros de seus amigos, mas foi interrompido pelo barulho da campainha. Quando desceu as escadas que levavam ao amplo salão de entrada, viu Anina, a recepcionista, recebendo um envelope de cor escura. Um jovem courier, de cabelos vermelhos arrepiados, estava guardando uma espécie de recibo, e voltando para sua moto estacionada na calçada. A chuva que castigara a cidade de Praga durante a manhã inteira alagara diversos pontos da rua, e as botas elameadas do motoqueiro deixaram grandes marcas no tapete da entrada.

— Carta para o senhor! — avisou Anina, uma imigrante russa que trabalhava no Albergue desde o ano passado. Ela era humana, e não sabia nada sobre a real natureza de seu patrão.

Bovidiska agradeceu à funcionária e levou o envelope contra a luz. Um timbre vistoso de cor dourada e vermelha trazia a logomarca da Alpha Scorpii Financeira. Imediatamente aguçou seus sentidos paranormais, como se buscasse por algum conteúdo perigoso naquele envelope. Rompendo o lacre, puxou uma folha de papel fino, com uma sequência de letras impressas por alguma máquina de fax:

FILHO DAS ESTRELAS VERTEU LÁGRIMAS DE SANGUE.

A expressão “Filho das Estrelas” apavorou Bovidiska, que percebeu que o remetente sabia que Manfred era o filho de um Anjo Ofanim. O restante da frase não era tão claro: podia indicar que o Precursor fora torturado ou morto. Qual seria a importância das lágrimas? Alguém de dentro da empresa teria enviado a carta?

O dono do albergue trancou-se no próprio escritório e pôs a analisar a carta. Seria possível captar algum fragmento sensorial em sua textura? Não identificava nenhum indício de alguma magia ofensiva nela, e pensou em submetê-la a um ritual de purificação a fim de expurgar qualquer ameaça. Sua intenção era rastrear o remetente através das impressões no papel. Já vira Alfeus Tumak, o Primal, seu antigo parceiro de Congregação, realizar algumas proezas memoráveis de rastreamento. Precisava encontrá-lo, mas como ele não tinha residência fixa, não seria uma tarefa fácil. Era hora de pôr todos os seus informantes em ação, e usar todas as ferramentas que dispunha.

Quando Anina bateu na porta de seu chefe para chamá-lo para o jantar, encontrou o escritório trancado, e com as luzes apagadas. Em cima da mesinha no corredor, um bilhete dizia:

VIAGEM DE NEGÓCIOS. NÃO DORMIREI EM CASA. ANINA, CUIDE DO ALBERGUE.

A funcionária russa praguejou em seu idioma natal, chateada por não ter sido avisada. Esperava visitar o namorado naquela noite, mas planos tinha ido por água abaixo. Atravessou o salão com cara de poucos amigos, enquanto que alguns dos hóspedes rumavam lentamente para o refeitório. Ao passar pela porta de entrada, lembrou-se que o entregador deixara marcas de lama no carpete, e viu-se obrigada a se deslocar até o terceiro andar para chamar Belko, o faxineiro. O Sr. Lenojvk exigia que todos os cômodos estivessem sempre impecavelmente limpos. O salário era baixo, mas era o único emprego que Anina Davduk havia conseguido, e ela só contava com ele para sustentar seu filhinho asmático de dois anos.

Com todos os hóspedes jantando, o salão mergulhou no mais profundo silêncio. Longe de qualquer olhar atento, as manchas de barro no tapete de cerdas começaram a borbulhar, como se ganhassem vida. Rastejando como uma criatura primordial, a massa disforme de lama dirigiu-se na direção do escritório, sorrateiramente. Literalmente, foi escorrendo para baixo da porta, mas teve que estancar imediatamente, como se topasse com um obstáculo invisível. Bovidiska Lenojvk jamais fora um homem incauto, e com certeza, tomara todas as precauções para se proteger de possíveis ameaças. Seus aposentos estavam selados misticamente por um ritual defensivo. A mancha amebóide de lodo sentiu-se repelida por uma força invisível, e tentou recuar para algum refúgio na escuridão. À medida que fugia da aura de proteção que cercava o escritório, sua estrutura foi se dissolvendo, ressecando até deixar um círculo empoeirado no chão do corredor. Quando deixara o albergue, Bovidiska nada sabia sobre seus inimigos misteriosos. Mas quando retornasse, seu sistema de defesas etéreas iria acusar a presença dos restos do minúsculo invasor. E com isso, o manto de invisibilidade que ocultava seus inimigos começaria a se desmanchar.

Manfred seria vingado.

ECOS DE PRAGA IV: ALPHA SCORPII foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.


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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Rebelião 98: Cinza e Azul


ECOS DE PRAGA III

Quando entrou na LAN House Khaos 99, Václava chegou a pensar que o sistema de calefação estava desligado, tamanho o frio que ali fazia. A luz mortiça envolvia tudo em uma penumbra ligeiramente azulada. Num salão que parecia vazio, dois adolescentes obesos com aspecto nerd pareciam mergulhados em um transe hipnótico. Se não fosse o nervoso piscar de olhos, ela podia jurar que os garotos estavam congelados. A silhueta esguia de Vladmir Palovek, o único funcionário da loja, podia ser vista por detrás do grosso vidro fumê que escondia o mezzanino. A altura, a magreza e a postura exageradamente curvada fizeram Václava lembrar-se de um louva-a-deus. Contendo o riso, dirigiu seus olhos para o lado oposto da sala, onde identificou a figura inconfundível de Kamila Fric, a atual proprietária da Khaos 99. Enormes alargadores perfuravam seus lóbulos, um azul e outro verde, combinando com a cor de suas longas unhas e de das mechas de cabelos tingidas e empasteladas de gel brilhoso. Um decote generoso expunha o volume generoso dos seios tatuados com linhas negras imitando arame farpado. Os ombros nus mostravam tatuagens da “Noiva de Frankenstein” em poses sensuais, enquanto as costas da mão esquerda ostentavam um enorme ENDZEIT — fim dos tempos, em alemão — gravado em caligrafia gótica. Na outra mão, havia outra palavra tatuada, mas Václava não se interessou em ler.

O contraste entre ambas não podia ser maior, ao contrário da exuberância de Kamila, Václava vestia uma roupa cinza-escura discreta, e os cabelos negros encaracolados sem brilho estavam cobertos por um gorro surrado de lã azul. Os olhos tristonhos castanhos vasculharam um bloquinho de anotações tirado do bolso do casaco em busca de algo importante. Antes que ela abrisse a boca, Kamila adiantou-se:

— Václava. Eu me lembro de você na Praça Velha. Pode chegar...

A moça de casaco cinzento e jeito tímido sentou-se ao lado da mulher tatuada, que operava um computador no fundo da sala, longe dos olhares vorazes dos nerds do outro lado.

— Estou aqui para fechar o trato. Eu...minha...eu representou alguém que... — as palavras saíam com dificuldade.

Kamilla limitou-se a apontar para a tela do computador, e abri um aplicativo de texto, onde digitou o que parecia ser um início de conversação:

ELIŠKA MANDOU VOCÊ AQUI. EU A CONHEÇO DE LONGA DATA. IMPORTA-SE DE EU RESPONDER ASSIM, POR PRECAUÇÃO?

Václava limitou-se a acenar positivamente com cabeça. Ela mostrou uma folha arrancada de seu bloco, onde havia o desenho de um estranho símbolo místico. Os dedos de Kamila correram pelo teclado, em resposta:

ENOQUIANO OU ALGUM ALFABETO CORRELATO. UM DOS SÍMBOLOS QUE DO ESPELHO DE JOHN DEE.

Václava aproveitou o mesmo teclado e digitou a resposta imediatamente:

ELIŠKA SABE ONDE O ESPELHO DOS QUATRO ELEMENTOS ESTá E QUER FAZER UMA TROCA.

Kamila franziu a testa e torceu o nariz. A mulher de cabelos vermelhos que passava boa parte de sua vida na LAN House era uma nefilim da Linhagem dos Guerrilheiros. Desdenhando da informação, respondeu secamente:

FICA NA CAPELA DOS ESPELHOS. EU SEI.

A outra mulher replicou:

AQUELE ESPELHO É FALSO. O VERDADEIRO ESTÁ BEM LONGE.

Kamila olhou fixamente nos olhos de Václava. Estava usando seus poderes para detectar mentiras. A serva de Eliška estava dizendo a verdade, ou pelo menos acreditava piamente estar dizendo a verdade. Não custava testar.

O QUE ELA QUER DE MIM? — digitou, apagando em seguida.

Václava pensou um pouco antes de responder:

AJUDA PARA COMBATER UM INIMIGO EM COMUM.

Kamila limitou-se a acenar, instando Václava a prosseguir.

VÍBORA PUSTULENTA, A SHEILIM, ACHOU UMA CRIANÇA HÍBRIDA NUM ACAMPAMENTO CIGANO. OS LACAIOS DELA ACHARAM O ESPELHO LEGÍTIMO.

Kamila abriu um sorriso. Václava digitou mais uma frase:

TRAGA-NOS O ESPELHO EM TROCA E NÓS INDICAREMOS O PARADEIRO DA CRIANÇA NEFILIM.

A Guerrilheira refletiu sobre o trato. Sua resposta tinha uma pontinha de ironia:

PORQUE NEGOCIAR COM UMA QUIMÉRICA? QUE GARANTIA EU TENHO DE QUE ELA VAI CUMPRIR SUA PARTE?

A resposta de Václava veio em voz alta:

— Você não tem escolha. Basta aceitar ou negar. Sabemos que você não recusaria um desafio tão tentador. Ou será que você está com medo? Kamila Fric é uma medrosa?

A Guerrilheira bufou de irritação. Inesperadamente, tascou um beijo na boca da emissária de Eliška, que recuou com um ar de nojo. Um dos garotos, que olhava a cena de soslaio, soltou um risinho libidinoso.

— Ofendida? – A garota tatuada abriu um sorriso de satisfação.

— É...isso..não... — Václava procurava as palavras, mas não as encontrava.

— Considere o beijo como um sim à sua proposta. Não pense que tenho algum interesse em você. Fui lésbica nos anos 90, mas enjoei, e agora prefiro algo do tipo hétero, entende? E mesmo que voltasse a gostar de mulheres, você não faz meu tipo.

Václava continuou balbuciando, sem conseguir falar algo.

Game over, baby, se manda! Diga à sua mestra que eu topo o desafio.

A serviçal quimérica saiu apressadamente da LAN House, enterrando o gorro felpudo na cabeça assim que sentiu a lufada gelada de vento nas orelhas levemente pontudas. Puxando um lenço do bolso, limpou a boca esfregando com tanta força que quase arranhou os lábios. Václava recolheu o lenço com cuidado guardando-o num saquinho plástico lacrado que sempre trazia consigo. Mais do que o beijo em si, o que mais lhe causara ojeriza fora o contato com a aberração cósmica que aquela nefilim simbolizava. Os bruxos quiméricos como ela e sua misteriosa mestra Eliška entregavam com uma devoção quase sacerdotal ao estudo dos mistérios do Universo, especialmente aqueles que ultrapassavam todos os limites estabelecidos pela Ciência ordinária. Os quiméricos eram os maiores conhecedores dos segredos mais sombrios da Criação, e nem mesmo os mais sábios dentre eles jamais haviam conseguido encontrar uma hipótese plausível para explicar a presença de seres híbridos caminhando por Adamah, e nem conseguiam entender se seus progenitores eram anjos do Sheol ou do Shamaim. Não eram seus dotes sobrenaturais que provocavam o sentimento de extrema repugnância nos quimérios, mas sim o fato de que sua real natureza não podia ser compreendida ou explicada. Enquanto Václava retornava para o esconderijo de sua senhora, sentia o lenço como uma espécie de trófeu. Nele estavam restos de saliva e de suor, — e com alguma sorte, preciosas células mortas de pele — de uma nefilim, um precioso — e inesperado — espólio a ser analisado e testado minuciosamente. Seus vastos conhecimentos em alquimia lhe seriam de grande valia, e ela esperava fazer algumas descobertas sobre as propriedades bioquímicas daquela criaturas.

Enquanto a mulher de casaco cinzento desaparecia na multidão que embarcava no trem, bem longe, a três quarteirões de distância, a Guerrilheira penteava as próprias mechas coloridas, e pensava nas consequências da inesperada aliança com os quiméricos de Eliška. Sabia dos riscos que corria, mas não podia permitir que aquela criança cigana, sua pequena “irmã”, caíssem nas garras dos inimigos dos Filhos da Segunda Rebelião. Só aceitara o trato, porque sabia — através de outras fontes de informação — que tal criança realmente existia, e que seu nome era Habriela. Ao beijar a quimérica, ela deixara em sua pele uma marca que poderia ser rastreada e detectada a distância, o que permitiria acompanhar os passos dos bruxos mesmo à distância. Kamila lembrou-se de contatar Benita Vernes, a Escriba, para verificar se esse Manifesto recém-manifestado era algo inédito ou já era algum dom catalogado pelos Escribas. Mas isso devia ser deixado para depois. No momento, sua real preocupação eram os dois clientes da loja que insistiam em não sair da loja. Kamila mandou Palovek comunicar aos dois nerds preguiçosos que o horário de funcionamento estava encerrado. Já acostumados com o tom de voz exageradamente arrastada do funcionário, os garotos insistiriam em uma prorrogação do prazo. Para mostrar que qualquer resistência seria inútil, Kamila simplesmente desconectou os cabos de rede. Um dos meninos tentou reclamar, mas a imponência dos 1,85m da dona da loja, associada a um tom de voz convicto e uma fisionomia furiosa, fez com que eles acabassem convencidos a se retirar.

Livre de seus inoportunos clientes, Kamila dispensou seu funcionário e foi para o seu escritório pessoal, para planejar suas futuras ações frente aos perigos que se anunciavam.

Enquanto as luzes azuis de neon do letreiro da Khaos 99 acabavam de ser desligadas, alheios ao frio congelante que afligia os transeuntes da rua, os adolescentes limitaram-se a um breve diálogo.

— A Nefilim não percebeu nada.

— Johana estava certa.

— Como sempre.

ECOS DE PRAGA III: CINZA E AZUL foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Rebelião 97: A Gema do Capricórnio


ECOS DE PRAGA II

Poucos são os frequentadores do Mosteiro de Strahov que conhecem aquele túnel estreito e comprido que se parece avançar rumo às profundezas da Terra. Dois vultos caminhavam devagar, os pés calcando no piso de rocha escura e coberta de limo. Um monge magro, de cabelos ralos e barba alourada, conduzia a outra pessoa através da densa escuridão, carregando um bastão luminoso que emana uma luz fria verde-azulada. O vulto esguio que o acompanhava, coberto por um manto branco com capuz, não trazia boas notícias para os moradores daquele mosteiro.

Aquele que os mendigos e necessitados das sarjetas de Praga conheciam simplesmente como o Irmão Pavel, agora apresentava-se como Pavel de Tharsus, o mais velho dos doze Cavaleiros da Cruz Resplandecente que residiam incógnitos entre as paredes do Mosteiro de Strahov, na capital da República Tcheca.

Quando a exaustiva descida parecia ter chegado a seu fim, um cômodo simples, de assoalhado de madeira, e onde uma pequena imagem sacra dos Reis Magos apoiava-se em uma coluna de ferro enegrecido. Assim que adentrou o recinto, Pavel fez o sinal da cruz, ajoelhou-se e trouxe o bastão junto ao peito, provocando um intenso clarão. À medida que a luz esmaecia, os contornos objetos moldavam-se plasticamente até se reduzirem a um grosso bracelete com aparência metálica que ele enfiou no pulso e escondeu sob as grossas mangas da túnica. Enquanto ele parecia conduzir este estranho ritual, seu acompanhante desceu as dobras do capuz, expondo um rosto feminino de longos cabelos ruivos e grandes olhos tão negros quanto a gema que carregava pendurada em um colar.

A mulher, que no território mundano dos homens era apenas Jolana Rozinova, voluntária em uma pequena igreja na parte leste da cidade de Bratislava, aqui era Jolana de Pathmos, uma das mais renomadas integrantes da Ordem da Cruz Resplandecente, como seu colega Pavel de Tharsus. Jolana nascera há cinquenta anos atrás na então Tchecoslováquia, mas ainda conservava praticamente a mesma beleza de sua juventude. A beleza daqueles olhos negros, terrível para as hordas de lacaios do Inferno, só encontrava rival em sua faiscante arma mística, a Gema Negra da Fênix. Jolana chegara naquela noite da Eslováquia para trazer mensagens preocupantes a seus irmãos de fé em Strahov.

Boatos circulavam pelas bocas mais sujas do submundo, contando histórias de monstros rastejando pelas docas no rio Vltava, de filhos de anjos caídos e de prodígios celestes e terrenos. A mais sombria indicava que o abjeto Antony Rothschild, monarca sem coroa de uma vasta legião de criminosos, assassinos e cafetões, estava de posse de objetos miraculosos, e incluía em sua vasta rede de contatos infames uma corja de satanistas e bruxos malditos, recém-chegados das terras geladas da Polônia e Rússia. Da distante terra ensolarada da Espanha chegavam notícias agourentas, anunciando a morte do virtuoso Estéban de Tartessos.

Quanto mais Jolana narrava os acontecimentos, mais contrito ficava Pavel em suas orações aos Santos Reis Magos. Era preciso avisar o Abade Ferdinand de Mênfis, o mais velho dentre os cavaleiros do mosteiro, e aguardar pelas suas ordens. Pavel escoltou Jolana até a saída, concentrado em proteger aquela passagem secreta que se escondia atrás da dispensa vazia da velha cozinha abandonada. Ao contrário de outras Ordens celestes, a Cruz Resplandecente possuía muitas mulheres em suas fileiras, e nem todas precisavam dissimular-se de freiras ou monjas. Jolana escondia-se sob a anônima e quase invisível máscara de pacata voluntária em uma secretaria de igreja, mas à noite, livre dos grilhões sociais, era uma ativa combatente do Mal, e circulava incógnita sob mil disfarces pelos mais perversos recantos da cidade.

Pavel imediatamente tentou procurar pelo Abade Ferdinand, mas o frei Miroslav — um pacato ermitão antissocial que sequer desconfiava que aquele mosteiro era o esconderijo de guerreiros eclesiásticos — respondeu que o abade não era visto desde a noite de anteontem. O Irmão Pavel optou por sentar em um dos bancos do templo. Sua gema verde-azulada, a Pedra do Capricórnio, fonte de seu poder resplandecente, agora transmutada em um tosco bracelete de metal escuro, pulsava suavemente em contato com sua pele pálida. Ele tentou, com a máxima concentração, buscar um contato com seu mestre, mas foi em vão. As energias emanadas do cristal eram capazes de deste tipo de proeza sensorial, mas naquele momento, algo estava impedindo o contato. Talvez Ferdinand estivesse por demais distante, ou talvez Pavel estivesse muito cansado para conseguir o grau de focalização suficiente.

Derrotado pelo desânimo, o cavaleiro-monge de cabelos claros retornou ao seu humilde quarto, de cuja janela estreita era possível divisar as águas distantes do Rio Vltava. Quanto sentou em seu leito, sentiu um odor estranho, semelhante a ferrugem, com um leve toque de enxofre. Um calor intenso passou a emanar de seu bracelete e, de prontidão, olhou ao seu redor, percebendo que o vidro da janela estava rachado de cima a baixo, e que uma grande mancha escura borrava o canto da parede, espalhando pelo chão de tábuas largas. Seguindo o rastro de sujeira, descobriu um embrulho ensanguentado, junto à escrivaninha. Do bracelete agora pulsava uma luz bruxuleante, indicativo de que os fluxos de energia sutil no recinto estavam perturbados.

Cutucou o embrulho com cuidado, e antes de abri-lo, seu bracelete já se transmutara em uma longa adaga radiante. Envolvido nos panos ensanguentados, coberto de uma trilha de gosma amarelada, havia uma mão humana decepada. Em sua palma, gravada com profundas incisões podia-se ler em letras minúsculas: O ABADE VIVE. Virando-a, Pavel leu nas costas da mão: CATIVO E MUTILADO.

“Cativo e mutilado”, os pelos da nuca de Pavel se arrepiaram. Deixou que sua arma celeste vasculhasse os arredores com sua luz mística, não encontrando mais traço algum de presenças ocultas. Se algum inimigo esteve por ali, não estava mais presente. Para piorar a situação, a Gema do Capricórnio confirmara a identidade do braço ao ler sua aura residual. Pavel só tinha duas certezas: o invasor era alguém muito poderoso, capaz de desmembrar um Cavaleiro e de penetrar em seu santuário sem ser detectado; o invasor sabia onde os Cavaleiros residiam.

A guerra não estava começando, pois ela jamais terminou. Entretanto, o início de uma nova batalha já se anunciava.

ECOS DE PRAGA II: A GEMA DO CAPRICÓRNIO foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.

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terça-feira, 3 de novembro de 2009

REBELIÃO 96: Vitória ou Morte

ECOS DE PRAGA I

Sua presença no restaurante provocava um indisfarçável desconforto nos clientes. A enorme figura, de quase dois metros de altura, com os ombros larguíssimos cobertos por um casaco negro, e um chapéu da mesma cor realçava ainda mais seu porte imenso, passou silenciosamente por entre mesas e cadeiras, alheio aos olhares fugazes e comentários abafados.

Um homem jovem, de cabelos castanhos, comia avidamente um prato de carne de porco com molho de aspargos e purê de batatas. Os talheres cortavam grandes nacos de pernil que eram enfiados goela abaixo com uma pressa inexplicável. Ele percebeu que o rabino vinha em sua direção, e respondeu com uma saudação curta:

— Salve, rabino.

O homem de barbas de porte titânico nada falou, limitando-se a puxar a cadeira e sentar-se. Sua barba ainda era bem negra, apesar da idade avançada.

— Este porco está delicioso, mas lamento que sua religião o impeça de juntar-se a mim...

O rabino continuou sem esboçar nenhuma reação.

— Não se ofenda. Perdoe-me, mas estou faminto — deu mais uma garfada, enfiando mais uma fatia gordurosa pela boca. Tomou um gole de vinho tinto.

— Considere-se meu convidado, peça o que quiser — tentou um gesto amistoso, esperando agradar seu companheiro de mesa.

— Obrigado, Nepomuceno, mas isto não é uma visita festiva. A voz era tão rouca que mais parecia um trovão abafado.

— Mais um cemitério judaico foi violado, e a duas sinagogas em Brno foram incendiadas — disse ele, num esforço tremendo para que o tom fosse de um sussurro.

— Os neonazistas andam agitados ultimamente. Esta cidade está com muitas cabeças ocas circulando por aí, e temos muitos idiotas para preencher o espaço vazio com idéias simplórias — João Nepomuceno continuou sua refeição, alheio ao tom sombrio do rabino Joab. Encheu a colher com purê de batata.

— Kalaew está envolvido.

— Ele está morto, Joab. Os próprios nazireus de Viena me garantiram isso.

— O maldito sobreviveu, encontre-me amanhã na Sinagoga Pinkas, após o pôr do sol, e eu explicarei melhor.

O rabino Joab ben-Abraham ben-Saul levantou-se e deixou o restaurante em ritmo acelerado. João Nepomuceno conhecia o rabino há muito tempo, e sabia que aquele homem mantinha-se sempre muito bem informado.

Na tarde seguinte, quando o sol poente tingia as vidraças dos prédios de vermelho, um carro velho, mas de lataria impecavelmente branca, estacionava na viela lateral que margeava a Sinagoga Pinkas. Aquele veículo, que poderia ser considerado uma relíquia, remontava ao tempo das indústrias comunistas, e ainda rodava incólume ao tempo graças aos talentos em mecânica de seu dono.

João Nepomuceno fechou a porta do carro, e dirigiu-se à entrada principal da sinagoga, já quase totalmente coberta pela sombra do espigão vizinho. O atendente, um jovem rapaz de barbas ruivas encaracoladas, levou-o até os aposentos do Rabino Joab.

Após a quarta batida, o velho de barba escura abriu a porta, recebendo seu hóspede com seu ar taciturno característico.

— O Profanzeichen está agindo em toda a Europa Central. Kalaew retornou à República Tcheca, e virá atrás de nós.

— Seus confrades austríacos garantiram...

— Os Nazireus de Viena se enganaram! — o impacto do grito foi completado por um soco na mesa tão forte que a tábua de madeira reforçada rachou. — Absalon ben-Ludwig está morto. Josef ben-Caius está agonizante. Os aliados do nazista intervieram e salvaram o maldito.

João Nepomuceno limitou-se a fechar os olhos, como se entoasse uma prece silenciosa. Joab ben-Abraham interpretou a mudez como um sintoma de perplexidade, e preferiu traçar uma estratégia de ação.

— Devemos evitar o confronto direto com os soldados de Satã. Os redutos do Profanzeichen em Praga são bem conhecidos. Vamos buscar um refúgio seguro, e planejar a melhor defesa!

— NÃO.

O tom da voz do jovem guerreiro estava inteiramente modificado. Ele não parecia mais o rapaz descontraído do dia anterior. Seu olhar parecia vidrado, como se fitasse dimensões invisíveis além dos sentidos humanos.

— Devemos aguardar por eles. Eu sei que Kalaew virá atrás de mim.

— Você não pode enfrentá-lo sozinho!

— Talvez não possa. Mas não posso deixar que o medo me impeça de agir.

— Isto é uma sandice. Não posso permitir.

A mão pesada do Nazireu pousou sob o ombro de João, imobilizando-o com a força de um torno mecânico. Nepomuceno não esboçou nenhuma esquiva.

— Você pode ter vários séculos de vida, mas nem mesmo você pode enfrentar sozinho os ubermenschen!!!

Nepomuceno continuava imóvel, incapaz de se livrar do abraço sobre-humano do rabino. Joab ben-Abraham era um nazireu, cujo estilo de vida ascético e extremamente regrado garantia habilidades físicas sobrenaturais. Jamais cortara o cabelo, e mantinha uma dieta pontuada por diversas restrições. Era um legítimo continuador da linhagem de Sansão.

João, ao contrário, era um Triunfante, e o Rabino Joab pouco sabia sobre as origens daquele misterioso rapaz. Mas sabia que há quase oitenta anos atrás, quando era apenas uma criança, sua vida fora salva pelo mesmo João Nepomuceno, que mantinha as mesmas feições joviais de quase um século atrás. Nepomuceno abaixou a cabeça, e relaxou o corpo, capitulando diante da força irresistível do nazireu.

— Eu salvei sua vida, Joab, deixe-me ir, você me deve isso... — suplicou o Triunfante.

— Justamente em prol de nossa longa amizade é que eu não devo deixá-lo ir. Seria suicídio esperar pelas bestas-fera de Kalaew. Perdoe-me.

Os dedos nodosos do gigante envolveram o pescoço de João, pressionando-o para interromper o fluxo sanguíneo. O corpo do Triunfante relaxou, os braços pendendo inertes. Joab sustentou o corpo do amigo, com cuidado, e preparou-se para carregá-lo para o outro quarto, onde colocaria seus dois aprendizes, também nazireus, para vigiá-lo.

O súbito descuido foi o suficiente para que João Nepomuceno, despertando de seu fingido torpor, se desvencilhasse do abraço hercúleo, e com uma pirueta, abrisse caminho até a janela. Joab, igualmente dotado de uma agilidade sobrehumana, alcançou o amigo com um pulo, mas antes que pudesse agarrar com o Triunfante pelo calcanhar, sentiu-se a vista nublar-se, como se coberta por um véu. Os cacos minúsculos de vidro no assoalho indicavam que Nepomuceno lançara alguma cápsula no chão, libertando algum tipo de substância gasosa, inodora e incolor. Antes que o metabolismo imune do nazireu neutralizasse o efeito de cegueira, João Nepomuceno já fugia pela viela, em desabalada correria.

Já em seu carro, o Triunfante seguia para a mina de prata abandonada, em cujos túneis residia. Pressentia que os guerreiros demoníacos do Profanzeichen já conheciam seu paradeiro, e que não tardariam em encontrá-lo. Contava com a Sorte Divina para guiá-lo, e não havia bênção maior do que colecionar adversários invencíveis.

“Vitória ou Morte”, era o lema dos Triunfantes. João Nepomuceno era um soldado em uma guerra sem fim. Não lutava para garantir a própria segurança, mas sim para mantê-la eternamente sob risco.

Por seiscentos anos, ele foi feliz em viver sob este lema.

Por mais seiscentos ele lutará, se for preciso.


ECOS DE PRAGA I: VITÓRIA OU MORTE foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.

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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Rebelião 95: Dando Milho aos Pombos


Os pombos aglomeravam-se ao redor do sujeito vestido como um frade franciscano, rodopiando como se presos a uma hélice invisível. Os grãos de milho jogados no chão de cimento despareciam muitas vezes antes de tocar no solo. O som dos arrulhos era tão alto que sufocava até o barulho do alto-falante da pracinha que anunciava vendas na loja de móveis da cidadezinha.

Elísio Paulino, 27 anos, sergipano, tinha o topo da cabeça calva coberta por um penacho avermelhado de cabelos ralos, uma barba rala, e enormes dentes amarelados. Os olhos caídos, de cor de jerimum, chamavam a atenção dos passantes, pelo seu aspecto incomum. Alheio à chuva fina que começava a molhar a rua, continuava atirando punhados de grãos aos pássaros que esvoaçavam de alegria diante do banquete.

Um homem alto e magro se aproximava, e Elísio reconheceu o velho amigo de uma extinta Congregação na distante cidade do Recife. Leutério Jaguarana, o Venerável, com seu farto bigode e os longos cabelos negros e encaracolados que o tornavam inconfundível. Os enormes óculos escuros escondiam ajudavam a dissimular a verdadeira expressão do homem.

— Elísio, os Jórgios estão vindo em seu encalço. Rosilene está desaparecida, acho que pode ter sido capturada — as palavras eram cuspidas, quase sem pausa.

— A Congregação está terminada, Jaguarana, não tenho mais vínculos com vocês. Uma mistura de arroz e milho foi arremessada no chão, junto às raízes de um enorme jacarandá. As aves corrigiram seu vôo e se atiraram enlouquecidas atrás do jantar. A resposta de Elísio soou insuportavelmente gelada. Ele ainda completou, em tom de despedida:

— Sinto muito.

Leutério respirou fundo, pensando em algum trunfo na manga para dobrar a vontade férrea do Primal. Sabia que o amigo era teimoso como um jegue.

— Você não pode se defender sozinho, precisa de seus amigos por perto.

— Eu não tenho amigos.

Leutério cuspiu no chão, num tom de irritação. Chegou a pensar em arrastar Elísio pelos braços, mas sabe que não conseguiria. Resolveu optar por uma estratégia mais sutil.

— Nós estaremos por perto, amigo. Vou chamar Cenira e Mattione, e...

— CHEGA! — os pombos voaram para bem longe ao ouvir o grito que reverberou pela praça quase deserta. O sol já começava a se pôr no horizonte, fazendo com que os dois Nefilim mergulhassem na sombra projetada pela torre única da igreja.

Eu posso sentir seus pensamentos, Jaguarana, eu consigo captar seus planos de ficar rondando e esperar que outros venham aqui fazer o mesmo”, a frase telepática brilhou na mente perturbada de Leutério.

— Apenas me deixem em paz... — suplicou o Primal, que tornou a cobrir o chão de grãos de milho. Os pássaros criaram coragem e retornaram.

— Seu recado já foi dado, Jaguarana, pode ir embora... POR FAVOR.

Leutério percebeu que era inútil insistir. Deu meia-volta e foi embora, sem falar mais nada. “Por que você afasta todos os poucos amigos quem tem?”, pensou ele, com uma sensação mista de raiva e compaixão.

Pare de bancar o anjo protetor, Jaguarana. SUMA!” O Venerável acelerou o passo, vencido. “E isso vale pra você também, Cenira! Não pense que que não percebi você invisível!”. Leutério pôde ver o vulto esguio e ainda etéreo de Cenira deslizando pela copa florida do jacarandá, enquanto o efeito de seu Manifesto Repouso de Haniel diluía-se aos poucos.

Quando Elísio Paulino finalmente sentiu-se confortavelmente sozinho, estirou-se no velho e enferrujado banco da praça e tirou uma soneca. As ameaças de Leutério não o assustavam. A chuva começa a parar.

Já passa da meia-noite quando Elísio abre os olhos. Basta um pouco de focalização e ele percebe que três pessoas aproximam-se sorrateiramente. Ele não consegue ler os pensamentos com clareza, mas percebe que há forças espirituais envolvidas. Ele não demonstra o menor temor. Limita-se a sentar no banco, e esperar pelos misteriosos visitantes.

Os três homens altos, trajando roupas escuras, parecem um pouco surpresos pela inexplicável calma de sua vítima. Um deles puxa uma adaga. À medida que a lâmina move-se no ar, parece desenhar uma linha de luz escarlate no ar. Elísio percebe alguns símbolos místicos gravados no metal brilhante. O seu companheiro, bem mais alto, traz um pingente cristalino em volta do pescoço. O terceiro inimigo, um anão de barbas grisalhas, entoa um cântico em grego bizantino. O Primal não consegue entender nenhuma palavra, mas sente com seus dons sobrenaturais que uma energia muito poderosa está sendo emanada. Ele sente o corpo tomado gradativamente por uma paralisia cada vez mais intensa. Tenta mover-se mais não consegue. O mais alto dos três chega mais perto. Sem tom de voz é insolente, e traz um sotaque afrancesado.

— Os solitárrios são prresas bem mais fáceis. Seus amigos não estão aqui para defendê-lo, abominação.

— O ritual vai exaurir o maná da criatura para que possamos prendê-lo — disse o homem com a adaga, pressionando a ponta afiada no peito de Elísio até que um filete de sangue começasse a escorrer. O ancião de baixa estatura permanecia concentrado em sua ladainha extática.

Eu não estou sozinho, senhores”, os três Cavaleiros de São Jorge estavam ouvir a mesma mensagem telepática do Nefilim, que permanecia imóvel, com os olhos bem fechados. “Tenho muitos amigos e eles estão aqui”, os guerreiros jórgios se entreolharam, e começaram a notar uma algazarra de arrulhos ao seu redor.

Elísio Paulino, filho do anjo Nasrel, abriu os olhos, que brilharam com um fogo alaranjado. Neste exato momento, dúzias de olhos abriram-se por toda parte, repetindo o mesmo brilho mágico.

Todos os dias eu os alimento com os melhores grãos...”, a voz do Primal parecia retumbar dentro das cabeças do trio de cavaleiros, que oraram pelos seus proterores.

MAS NESTA NOITE, ELES VÃO MUDAR A DIETA”.

Uma nuvem de bicos e garras furiosas envolveu a praça, transformando as orações em gritos de agonia.

Elísio podia ser uma pessoa de poucos amigos, mas os poucos que tinha eram extraordinários.

AMIGOS DE LONGA DATA foi escrito por Simões Lopes


terça-feira, 22 de setembro de 2009

Rebelião 94: Amigos de Longa Data


A Catedral de Nossa Senhora Madre de Deus estava vazia, como de costume naquela hora do dia. Umas poucas pessoas rezavam em silêncio, e um trio de senhoras acendia velas do lado de fora. Um homem impecavelmente barbeado e de têmporas raspadas, com uma enorme cicatriz na metade esquerda do rosto escuro, olhava fixamente para a imagem do Cristo crucificado no altar, enquanto esperava por alguém. Já fazia mais de uma hora que tinha chegado, e seu amigo de longa data ainda não aparecera.

— Chico!!! — gritou uma voz possante, vinda de fora da Igreja.

—Chico!!!! — a voz de trovão era insistente.

Antes que os paroquianos começassem a reclamar do súbito importúnio, "Chico" decidiu ir ao encontro daquela voz que lhe soava cada vez mais familiar.

Um homem baixo mas incrivelmente robusto, com a barba espessa de um castanho muito escuro e olhos azul-celeste, acenava com os braços musculosos e um tom de alegria quase frenética no semblante.

— Chico, há quanto tempo! Você não sabe como foi difícil localizá-lo, guerreiro!

— Ildebrando? — disse Francisco Xavier, em tom de reconhecimento.

— Claro que sim... Quem mais poderia ser?

Enquanto recebia um abraço forte o bastante para fraturar costelas, o capitão Francisco Xavier da Luz se lembrou de quando conhecera Ildebrando, há mais de um século e meio atrás, nos dias sangrentos dos Farrapos. Ildebrando Carraro acabara de chegar da Itália, acompanhando Giuseppe Garibaldi, em busca de emoções fortes e combates sem fim.

— Por onde andas? — perguntou Francisco, trocando a alegria por um ar mais compenetrado.

— Antes de tudo, há muito que não sou o "Ildebrando". Hoje em dia ando sendo chamado de Márcio Martins, ou Alex Monte, dependendo da situação.

— Situação? — estranhou Francisco.

— Isto não vem ao caso, velho amigo... Para você, eu continuo sendo o mesmo Ildebrando de sempre.

A conversa com o amigo começava a provocar um bombardeio de memórias na mente de Francisco. Ele se viu novamente em 1840, quando era Chico Luz, o melhor dos Lanceiros Negros do coronel Teixeira Nunes, e lutava ferozmente ao lado do rebelde florentino (acusado às vezes de ser um anarquista enrustido) Ildebrando Carraro. As tropas imperiais perderam muitas vidas pelas armas daqueles dois homens. Chico e Carraro eram Triunfantes, e embora Chico já fosse bem velho para os padrões dos mortais, com 172 anos, seu colega italiano era bem mais antigo, e nem mesmo o ex-Lanceiro sabia ao certo quanto anos ele tinha na verdade. Deveria já passar dos seiscentos anos, o que era bastante até mesmo para um Triunfante. Um sinal de que sua missão em Adamah estava longe de terminar, ou que seu prazer em guerrear conseguia se traduzir em uma vitalidade inesgotável.

— Faz muito tempo, heim? — disse Ildebrando, evitando arriscar um palpite.

— Desde a Revolução Constitucionalista de 32... — completou Chico.

— É. Alistei-me na década seguinte e fui lutar na Europa, você também?

— Fui, atuei como mercenário, lutei em ambos os lados.

— Com teu passado anarquista e carbonário, não imaginaria tu ao lado dos fascistas...

— O Vaticano estava com eles!

— Não oficialmente!

— Estar do lado “errado” pode render uma boa gama de ótimos inimigos. Há muito tempo que não me prendo a ideais ou bandeiras. Fui à guerra pelo prazer de lutar, sentir o gosto de escapar da sombra da Morte a cada instante.

— Enquanto isso, acabei engajando-me em uma nova identidade como policial, e graças a isso, ganhei esta cicatriz.

— Só voltei ao Brasil para me juntar aos grupos armados no Araguaia. Ajudei a desencarnar muitos soldados e oficiais, mas hoje não caço mais humanos — explicou Ildebrando, num tom quase professoral.

— Eu estou no BOPE, e continuo "caçando humanos", e diversas vezes o “caçador” quase tornou-se a "caça" — pigarreou Francisco.

— Na Europa conheci alguns Triunfantes que viraram justiceiros, caçando criminosos sem distintivo ou farda. Porque se ligar a uma instituição? Não se sente tolhido pelas “leis” que jura defender?

— Claro que sinto. E são justamente estas limitações que tornam minhas guerras mais emocionantes e arriscadas.

— Entendo...

— Por que quiseste marcar este encontro?

— Quero fazer uma proposta... digamos.... de "emprego"...

— Ahn?

— Como já disse, não caço mais humanos. São presas fáceis demais. Estou caçando Nefilim, não para destruí-los, mas para capturá-los. É tão difícil que se torna uma proeza de grande renome.

— Sucessos?

— Alguns.

— Derrotas?

Ildebrando não falou nada. Limitou-se a mostrar a mão esquerda espalmada. Dois dedos tinham suas pontas mutiladas. Sorriu, escancarando três dentes de ouro. Desabotoou um pouco a camisa, mostrando uma enorme marca de queimadura no peito, meio encoberta pelo tecido.

Chico Luz coçou a cabeça, e sentiu o celular o tocando. Não atendeu.
— Os malditos são quase invencíveis, Chico. Tu não imaginas do que são capazes... Aceita o desafio?

— Sempre em busca do triunfo mais improvável, velho amigo. Assim vivemos e assim morreremos...

O aperto de mão foi forte e caloroso.

— Pode contar com o velho Chico Luz!

Ildebrando sorriu.

— O que tu fazes com os Nefilim após capturados?

O sorriso sumiu da face barbuda.

— Tudo a seu tempo, meu amigo. Tudo a seu tempo. Primeiro vamos comemorar nossa longa data. É uma pena que tenhamos mais o vinho forte do Bar do Figueiró.

— O Figueiró morreu em 1892. Se tivermos sorte, os descendentes talvez tenham mantido o bar.

— Sorte é o que jamais falta a um Triunfante, amigo! — soltou uma gargalhada, que assustou as colegiais que atravessavam a rua.

— Com certeza, Ildebrando, com certeza. Se lembra em qual rua ficava?

O sorriso decorado com dentes de ouro indicava que sim.

Ele se lembrava.


AMIGOS DE LONGA DATA foi escrito por Simões Lopes

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Rebelião 93: A venerável trilha da solidão


Satyabhama é muito mais velha do que aparenta. Quando ela nasceu, morena e coberta de cabelos negros bem espetados, recebeu seu nome em homenagem à princesa indiana, filha do Rei-Urso e uma das esposas de Krishna. Órfã de pais, foi criada numa comunidade espiritualista da Califórnia liderada por um grande mestre indiano, que a considerava como sua melhor aluna.
Satyabhama descobriu antes da maioridade que não era uma pessoa comum, mas a filha de um anjo em forma feminina com um amante humano. A real identidade de seu pai, desconhecida para ela, não atraiu seu interesse por muito tempo, até que ela soube, através de sua “mãe”, o anjo de asas cristalinas Makiel, que era filha daquele a quem chamava de “mestre”. Sua concepção foi o fruto de uma breve noite de amor que para o grande guru não passara de um fugaz sonho erótico, e assim, ele sequer desconfiava de que aquele bebê abandonado às portas de sua comunidade fosse sua própria filha. É verdade que a semelhança entre ambos era notável – o que muitos de seus seguidores já haviam percebido – mas o professor jamais desconfiaria de algo tão improvável.
A menina deixou a comunidade e correu o mundo, com suas convicções reforçadas pelos próprios ensinamentos de seu pai-professor, de que “nenhuma organização ou credo era o caminho para se chegar até a verdade, mas sim a própria busca espiritual e intelectual. Acolhida por um grupo de irmãos, sobre-humanos como ela, ascendeu às mais altas hierarquias da linhagem dos Nefilim Veneráveis – os Filhos de Makiel espalhados pelo mundo – mas quando estava prestes a atingir o mais alto Patamar, Diamante, preferiu partir mais uma vez, ávida em desbravar uma nova trilha, mais uma vez preferindo a solidão.
Quando completou 38 anos de idade – com a mesma aparência imortal de uma jovem de vinte e poucos anos —, Satyabhama já havia participado de várias Congregações ao redor do mundo, e ficou sabendo que seu pai padecia de um câncer terminal. Foi a única vez que desejou contar a verdade a ele, e partiu para os Estados Unidos. Quando chegou à Califórnia, soube telepaticamente que ele já falecera, e não teve coragem de falar com ninguém de sua antiga comunidade, partindo com a alma em frangalhos.
Satyabhama tem agora 61 anos, e como sempre faz em todos os aniversários da morte de seu pai, ela realiza um ritual silencioso, um réquiem particular que a faz pensar em sua própria imortalidade. Seu pai ensinava que o tempo era o grande inimigo dos humanos, e que os pensamentos faziam deles escravos do passado.
A moça de cabelos nigérrimos está sentada na posição do lótus, em um estado profundo de relaxamento que já dura quase o dia inteiro. Ela medita em tudo que aprendeu em sua longa vida, nos ensinamentos de seu pai humano, nos mistérios revelados por sua mãe incorpórea, na experiência de seus irmãos híbridos, e em si mesma.
“O Tempo é inimigo do Homem”, pensa ela, inspirando o ar com força, “mas por não ser humana, eu aprendi a enfrentar e derrotar o Tempo, e faço isso a cada dia”.
Ela pensa em tudo o que aprendeu ao longo de seis décadas, e expira.
“Derrotar não é o bastante. Tenho que fazer do Tempo meu aliado, mas como?”, inspira de novo.
Ela abre os olhos, luminosos como diamantes gêmeos.
“Como?”, a pergunta permanece sem resposta.

A VENERÁVEL TRILHA DA SOLIDÃO foi escrito por Simões Lopes

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Rebelião 92: Invocação (Parte 1 de 2)

Já há muitos dias a tempestade se tornava cada vez mais causticante; o ar estava pesado, saturado de fluidos pestilenciais que dificultava a respiração. O zimbório celeste era de um negrume horripilante. A noite castigava, raios voejavam em todas as direções se chocando com os edifícios. Qual não foi o espanto quando o relógio já marcava próximo do meio-dia e a luz do sol não dava mostras de sua presença beatífica.

Pessoas andavam por todos os lados não entendendo o que estava ocorrendo. Apesar de amanhecer apenas no relógio a escuridão ainda era total. Não se ouvia o gorjear dos pássaros, somente a turba de transeuntes que ocupavam as ruas em discussões estéreis sobre o que estava acontecendo. Já no final do dia a tempestade diminuía consideravelmente, o tempo oferecia uma tranqüilidade momentânea.

Enquanto isso, do outro lado da cidade alguém caminhava por um beco escuro, poças de água eram espirradas a cada passo, e por onde passava a escuridão era ainda maior. Ratos deslizavam pelos cantos do beco passando por cima de mendigos que se protegiam do frio e da chuva que já cessara.

Um mendigo que acabava de acordar deu uma pequena espiada sobre seus trapos imundos. O que ele vê deixou-o estarrecido, todos os seus pelos se eriçaram, fazendo com que seu coração parasse de bater, deixando o corpo inerte. A visão congelada em sua íris era de um ser envolto em nuvem negra a ponto de não ser possível ver nada além de seus pés.

No subúrbio um grupo de homens guardavam alguns símbolos místicos e saiam encapuzados por corredores secretos para a via pública, deixando naquele ambiente um corpo mutilado por algum ritual maléfico.

Horas mais tarde em uma galeria nos subsolos, o mesmo grupo, se reunia a espera de alguém. A impaciência era visível pelo tempo que estavam ali. Era possível observar as tochas tremulando e as sombras dos presentes dando um ar mais terrível. De forma irresistível, todos lançaram-se ao chão, gritando de forma lacinante, como que sentindo uma dor imensurável. Rolavam e debatiam-se estrepitosamente.

Apenas o que parecia ser o chefe permanecia de pé sem nenhum sintoma aparente. Olhando para a porta, onde estava parado a estranha figura, disse:

- Pare com isso, não foi por isso que eu te trouxe.

Nada se podia ver dela, a não ser uma escuridão que o envolvia.

- Você terá que me obedecer. Disse o chefe tentando parecer firme.

A figura de escuridão, abriu a boca e dela saíram sons guturais, como que de trovões, gritos lancinantes de dor ou coisa pior. Porém, uma frase foi inteligível, como expressando sua intenção.

- Você me trouxe, mas eu tenho meus próprios propósitos, e um deles é o seu fim.

INVOCAÇÃO foi escrito por Marcel Herrero

Iniciativa RAQ

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domingo, 30 de agosto de 2009

Rebelião 90: Rebeka


O suor escorria pela testa. Já havia algum tempo que Rebeka vinha resistindo contra o cansaço. Lutar com aqueles dois homens não estava sendo fácil. Fora pega em uma armadilha, uma ação ardilosa. Foi um vacilo, e ela sabia muito bem disso, mas era tarde. Agora tinha que resolver tudo sozinha.

Rebeka tenta de todas as maneiras quebrar a defesa dos dois, mas eles são ágeis, exímios lutadores. Só tinha uma maneira de vencer, ir com tudo que tinha.

Ela se concentra por um momento. Encontra dificuldade, a dor e o cansaço do combate não a deixa ter foco. Mas teria que tentar, era a única salvação. Uma energia mística começa a nascer de dentro de Rebeka, dominando-a por inteiro. Seus olhos se irradiam. De suas costas nasce um par de asas com penas brancas. Era como se elevasse naquele momento. Mas algo deu errado, o resultado não fora alcançado. Rebeka sente seu corpo ser rasgado, de dentro para fora. Uma dor intolerável toma conta dela, e ela perde os sentidos.

Ao abrir os olhos, vê diante de si uma grande criatura demoníaca. Tenta fugir, mas é atraída por uma força maior que ela. A criatura penetra em sua mente. Rebeka não tenta resistir, deixa-se invadir por aquela força sobrenatural.

- Bem vinda minha pequena. A criatura sussurra em sua mente, mas Rebeka sente como que sendo violentada por aquela voz. – Finalmente você será nossa. É a melhor coisa a fazer. Nossas hostes estão se fortalecendo, o fim é certo. E o nosso lado será o vitorioso.

Ao terminar de falar, o demônio adentra mais na mente de Rebeka, transporta-a para um futuro próximo. E ela percebe isso, pois a cidade de Londres onde mora está totalmente destruída. O caos tomara conta de tudo e de todos. Anjos Celestiais empunhando espadas flamejantes lutam corpo-a-corpo com horrendos demônios sobre um mar de sangue e corpos. O fim que temera tinha chegado. E o que mais a assustava, estava lutando ao lado deles. Sim! Estava lado-a-lado daqueles que antes mais detestava, os Adoradores. Era membro das hostes infernais. Tinha se tornado uma escrava do inferno, um Diavolo.

Rebeka acorda assustada. Tinha mais uma vez tido aquele pesadelo. O mesmo.

Ela olha ao redor pelo quarto. Sente-se um pouco melhor, o susto diminuía. Estava em casa, “era só um sonho”, pensa.

- Rebeka, está na hora de ir para a escola. Uma voz feminina ressoa atrás da porta.

- Já vou mamãe. Ela responde, levantando e se arrumando.

Rebeka na mesa do café da manhã já não se lembrava mais do pesadelo, já estava entretida com outros pensamentos de sua própria idade. Ela tinha apenas 13 anos.

Rebeka foi escrito por Flauberth Carvalho

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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Rebelião 91: Negro Gato


O temporal é intenso e já cai por mais quatro horas. Enrique Royo caminha com dificuldade pelo chão lamacento e pegajoso do pântano. Nuvens de mosquitos enxameiam sob a proteção de um enorme tronco disforme, cuja proteção garante uma área de terra seca suficiente para abrigar um pequeno exército. Protegido da chuva inclemente, o cadáver de um soldo fita o vazio com suas órbitas vazadas. Um enorme gato de pêlos inteiramente negros, com exceção de algumas marcas vermelhas específicas espalhadas pelo corpo. Para um bom conhecedor de símbolos místicos, cada mancha cor de sangue seria identificada como uma crux ansata invertida.
Cazador, o desencarnado está próximo?
Vestido com um longo manto negro, um homem mascarado acabava de atravessar a mata. Era ele quem gritava com uma voz rouca e sombria para o animal. O gato piscou os olhos brilhantes e fez alguns ruídos ríspidos.
Enrique Royo, o homem que trajava a máscara de caveira, compreendeu o que Cazador tentava lhe comunicar. O espírito do cadáver ainda estava por perto. O enorme gato negro, que Enrique chamava de “ocelote”, numa referência ao felino selvagem nativo de seu país natal, na verdade era um gato-selvagem africano, cuja vida corpórea transcorrera no Egito há milênios. Enrique seguiu as indicações do animal e conseguiu identificar o fantasma que pairava junto a uma enorme figueira. A silhueta imaterial translúcida guardava uma vaga semelhança com o cadáver putrefacto, e Enrique sabia tratar-se da alma de Nilo Arturo, militar porto-riquenho.
— Nilo Arturo, quem te matou? — inquiriu Enrique, com os olhos fixos no espectro que levitava.
— Matou? Eu... não morri... isto é um... pesadelo.
Enrique sabia como a morte era um trauma poderoso demais para qualquer ente, e compreendeu que Nilo ainda compreendera o que estava acontecendo.
— Sou amigo, não tenha medo — a frase não pareceu surtir o efeito esperado, pois o espírito de Nilo começou a levitar, numa espécie de impulso involuntário.
— Está...tá fri-o...fri-ooo... eu...
Negar a própria morte era uma reação esperada em mortes súbitas. Enrique mandou Cazador atrás do espectro. O felino arqueou sua coluna flexível e começou a galgar os galhos das árvores com uma agilidade sobrenatural. Por um breve instante, chegou a desaparecer no ar, reaparecendo metro adiante, no encalço do fantasma.
Cazador era o filho mais velho de um casal de gatos que haviam crescido no palácio de um faraó. Quando o Egito foi vítima de uma temível praga que exterminou todos os primogênitos, ele foi levado por Azrail, o Anjo da Morte. Como todas as vítimas inocentes daquela praga, tornou-se um up-en-khat, um celícola do Quarto Firmamento. Quando Enrique iniciou-se no ritos da sociedade mística conhecida como Golgotha tornou-se espiritualmente conectado ao celícola felino, que ganhou o nome batismal de Cazador.
Era este gato que agora perseguia pela floresta chuvosa a sombra diáfana de um espírito atormentado. O Golgotha estava investigando uma série de misteriosos assassinatos numa região obscura das florestas guatemaltecas. Cazador aferrou suas garras na perna etérea do fantasma, que gritou de agonia. Enquanto notava que o morto estava "capturado", Enrique corria apressado, ansioso em inquirir necromanticamente Nilo Arturo sobre a identidade dos assassinos em ação naquele recanto escuro.

Enrique apontou um amuleto em forma de cruz para a testa do fantasma, proferindo uma frase ritual em latim. O espírito balbuciou, e suas palavras não eram mais humanas. Enrique insistiu:

—O teu assassinado precisa ser punido. Quem é ele?

O corpo astral de Nilo Arturo ficou cada vez mais transparente, até desaparecer por completo. Enrique acabara de perder o contato necromântico que tentava manter. O gato soltou um miado longo e tristonho.

— O assassino continuará incógnito... que Deus tenha piedade da alma de Nilo, e que o Diabo receba em breve a visita de seu lacaio, quem quer ele seja!

Um barulho de galhos quebrando-se estourou por detrás dele. Em seguida, veio o som de algo pesado caminhando. Por fim, um grito horrendo, um misto de rugido e mugido.

Um pedaço de tronco—pesando mais de cem quilos—passou rente à cabeça de Enrique, que pôs -se em alerta. Cazador miou rispidamente e dissolveu-se no ar úmido tropical.

Um brutamontes mostrava os dentes amarelados em um sorriso animalesco de escárnio, sedento de sangue e violência. Os músculos inflados e o corpo artificialmente intumescido mostrava ser um Abominável, um lacaio dos Inferno, possuído por forças malignas mais antigas que a Terra.

Sua cabeça pavorosa devia chegar a uns 2,20m de altura. Ele brandia um matacão de pedra como se fosse um tacape. Ele gritou de novo.

Foi quando Cazador reapareceu, cravando suas garras no rosto do gigante.

Enrique não precisava mais investigar nada. O assassino acabara de aparesentar-se a ele, sem medo do confronto direto.

Chegara a hora do confronto tão esperado.


NEGRO GATO foi escrito por Simões Lopes


sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Rebelião 89: A Quarta Tentação


Um homem está sentado no chão pedrento. Seus olhos vidrados fitam o céu estrelado, como se buscassem enxergar através dele. A pele tostada pelo sol escaldante do deserto agora arrepía-se com o vento frio que sopra de noite. A fome e a sede o afligem, mas ele segue imóvel como uma estátua. As barbas longas e crespas, negras como carvão, estão salpicadas pela geada. Há quarenta dias ele peleja contras as mais duras provações, buscando no martírio uma forma de transcender as limitações daquele corpo frágil de carne e sangue.

Ele veio da distante Galiléia em busca de Deus mas não o encontrou. Em vão, buscou-o nas fontes, nas árvores, nos espinheiros e nos picos das montanhas. Gritou seu nome pelos vales, onde o som ecoou apenas como uma triste pergunta sem resposta. Ele sabe que uma grande missão espera por ele, mas sabe que os obstáculos serão os maiores possíveis.

Entorpecido por uma quarentena de flagelos e mortificações, ele busca no sofrimento a chave para abrir as portas do Reino dos Céus. O mundo inteiro parece mergulhado em guerras, pragas, morte e cobiça. O forte pisando o fraco, uns poucos guardando para si o que deveria ser de todos, e o Amor, a única lei de Deus, jaz como uma palavra vazia aprisionada em templos de pedra e rolos de pergaminho.

Aquele homem de cabelos longos sonha em salvar o mundo. Aquele nazareno sonha acordado, ignorando a dor em suas juntas cansadas, imerso numa atmosfera delirante. Ele escuta passos na areia à sua esquerda: os olhos injetados de sangue se movem lentamente na mesma direção.

Uma criança envolvida em trapos fita-o com olhos banhados em lágrimas. Sua pele, assim como os cabelos curtos, é negra da cor da noite. Negros também são os farrapos que cobrem-lhe o corpinho esquelético. Ela abre um sorrisinho tímido, e seus dentes tortos também estão inteiramente pretos.

— A fome está me matando, senhor. Transforma estas pedras em pão para que possamos comer.

O homem ergue-se, com sua sombra ao luar projetando-se sobre a criança famélica. Ele toma uma grande pedra na mão, e leva-a para junto de si.

Ele aperta a rocha com as mãos, fazendo-a brilhar como uma estrela. Quando brilho se apaga, a pedra fez-se pão.

O menino sorri, e arreganha os dentes numa bocarra semianimalesca.

— Vamos saciar nossa fome, agora, Filho de Deus. Este é o seu poder sobre a matéria. Os elementos te obedecem, o mundo ficará a seus pés.

O homem segura as mãos do menino, que cai de joelhos, chorando de dor.

Nem só de pão vive o homem, Lúcifer. Isto não é para mim, mas para teu escravo — o tom da voz é sereno, e ele faz com o que o menino esquálido coma um pouco daquele pão.

O homem torna a sentar-se na areia, e assiste ao garoto, agora livre do domínio demoníaco, desaparecer nas sombras.

O galileu respira fundo, sentindo no peito as palpitações de um coração que bate acelerado. O gosto de sangue na boca, o cheiro acre do suor seco de suas vestes, parecem cada vez mais acentuados. Fecha os olhos e ora mais uma vez. Clama pela proteção de seu Pai.

Quando abre os olhos, à sua frente, vê uma mulher trajando uma armadura de metal escarlate. O cabelo, vermelho como o fogo, é rapado curtíssimo, e tem o corpo elegante coberto por uma armadura de placas escarlates, cravejada de rubis cintilantes. Carrega duas enormes espadas, guardadas em suas respectivas bainhas.

Ela agarra-o pelo pescoço, arrastando-o com violência até a beira de um penhasco. O galileu não esboça a mínima reação.

— O Céu não vai escutar-te! O Deus Onisciente está dormindo e não vai te ajudar! Queres a ajuda das hostes celestes? Pois então clame por elas! Atira-te deste penhasco, e que eles te salvem com suas asas de luz!

A mulher brandiu as espadas, gritando com a voz possante.

— Tu desejas tanto o Reino dos Céus! Pois que venha a ti, agora! Lança-te, ou eu mesma irei derrubar-te!

Ele mergulhou no abismo, e sentiu o tempo congelar-se, enquanto o vento uivava em seus ouvidos. Em sua longa descida, e sentiu-se acompanhado por uma revoada de pombas selvagens. Ele podia ouvia as asas delicadas batendo, os arrulhos sinfonicamente preenchendo o silêncio das escarpas rochosas. Ele pensou nos anjos, e uma esfera de luz envolveu-o.

A mulher gargalhou triunfante: — Exerce teu poder sobre os anjos, e eles te obedecerão. O Reino dos Céus revelar-se-á, e tu será teu Rei Eterno.

A esfera de luz se apagou, e um horrível estalo foi ouvido quando o corpo bateu no chão.

O grito de fúria da guerreira mais pareceu o rugir de uma leoa, e ela desceu as escarpas íngremes com a agilidade de uma cabra dos montes. Alcançou o homem agonizante, com o sangue espumando em sua boca, as costelas partidas, e uma das pernas esmagadas.

Com os dedos ensanguentados, o nazareno marcou uma cruz na testa na guerreira infernal.

— Não tentará o Senhor Teu Deus, Samael. Pelo sangue derramado, eu liberto tua escrava.

A mulher lançou fora as placas de metal que cobriam seu corpo e ajoelhou-se perante corpo caído. Com suas espadas formou uma cruz, e fez com que dela emanasse uma jato de luz envolvendo e restaurando a forma original do corpo alquebrado. Os ossos partidos regeneraram-se, e os órgãos esmagados pulsavam agora com toda vitalidade. De seus olhos vermelhos rolaram lágrimas de sangue, e ela galgou as encostas escarpadas e também desapareceu.

O homem de barba crespa sabia que a batalha ainda estava longe de terminar, e orou pela misericórdia de Deus. Com suas mãos riscou o chão poeirento até que os dedos sangrassem. Chorou como um bebê faminto. A noite estava agora cada vez mais escura.

Mas então a luz apareceu, na forma de um ancião de cabelos branquíssimos como a neve, os olhos resplandecendo com o brilho do relâmpago. Uma túnica de linho cingia-lhe o corpo rotundo, e seu sorriso era terno e confortante.

— Meu filho único. Eu vim para tirar-te desta cova imunda e fétida. Libertar-te desta prisão.

Ele sentiu-se tomado em espírito, e viu-se voando por sobre o deserto, chegando a alturas impossíveis de calcular. A seu lado, o velho indicava-lhe, em tom paternal:

Tudo isso te darei se, prostrando-te, me adorares.

Ele viu palácios majestosos, e montanhas de riquezas, templos suntuosos repletos de adoradores em êxtase, e exércitos dos mais bravos guerreiros entoando seu nome, dóceis e a seu dispor.

Tudo isso te darei se, prostrando-te, me adorares”, a frase pareceu ser repetida muitas vezes.

Ele beijou a face do ancião, e fitou-o nos olhos.

— AFASTA-TE, SATHANAEL.

Um raio cortou ao céu, atingindo-os em cheio.

Um redemoinho de poeira envolveu-os, e o galileu se viu mais uma vez sobre a terra árida do deserto da Judéia. Ao teu lado, o corpo do velho estava reduzido a uma massa carbonizada.

— Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás. Não podeis servir à Riqueza e a Deus ao mesmo tempo.

O cadáver enegrecido reviveu, com as órbitas vazias emitindo faíscas de luz negra, que serpenteavam pelo ar como criaturas vivas. A pele recuperou sua brancura original, de um tom que lembrava o mármore dos palácios, e o Arqui-Demônio Sathanael bateu suas enormes asas infernais, zumbindo como um pavoroso inseto. Sua pele enrugada e encarquilhada acentuava suas feições decrépitas, e os dentes afiados, em carreiras múltiplas, rangiam com um barulho desagradável.

— Deus criou o Homem para ser um simplório jardineiro, mas eu sempre tive planos maiores! Veja o que esta inglória raça feita de barro tem feito ao redor do mundo: eles matam, eles roubam, eles mentem! Somente eu compreendo sua real natureza, e é por isso cada vez mais eles me seguem. As almas dos homens pertencem a mim, governa-os!

O Arc’Anjo tornou-se ainda maior, e à sua volta foram surgindo legiões de seguidores, homens e mulheres, soldados e sacerdotes, mendigos e príncipes. Eles gritavam o nome do nazareno.

— Sacia tua sede de poder, não em meu nome, mas em teu próprio! Somente o Criador exigia adoração exclusiva. Eu não tenho estes caprichos.

— Afasta-te, Sathanael.

— O teu Deus te abandonará.

— Afasta-te, Sathanael.

— Aqueles que te seguirem negarão conhecer-te ou preferirão vender sua fidelidade por um punhado de moedas.

— Afasta-te, Sathanael.

— Aqueles curados por ti ansiarão por vê-lo pregado em uma cruz. Até mesmo os Anjos celebrarão a tua morte, Filho de Deus.

— Afasta-te, Sathanael.

O demônio desapareceu, deixando em seu rastro uma pilha de ossos humanos espalhados ao redor do ermitão, como se formassem uma mandala gigantesca.

Ele virou-se para a direita, e ouviu um canto melodioso vindo de uma gruta, escondida nas sombras da noite.

Ele levanta-se cambaleante, sentindo os membros estremecerem. O suor escorre gelado, as pupilas dilatam-se.

— Amai-vos uns aos outros — dizia uma voz feminina, insinuante. — Meu amor é todo teu, Filho do Homem!

Uma mulher magnífica aproximou-se, os quadris largos balançando graciosamente, a pele bronzeada pelo ardor do sol mediterrâneo, os cabelos cor de ouro esvoaçando com a brisa noturna.

O homem tentou impedi-la de se aproximar, mas sentia-se indefeso diante de tamanha sensualidade.

— SHEMHAZAI, POLUIDOR DE ANJOS E HOMEM, EU POSSO SENTIR SUA PRESENÇA DIABÓLICA. Meus outros inimigos não prevaleceram, e tu não prevalecerás! — gritou ele, desviando os olhos da nudez sedutora daquela serva do Inferno.

— Eu sou sua inimiga, meu senhor? — sua voz era límpida e musical, mas era possível perceber um leve ruído difuso, como se vários seres invisíveis falassem ao mesmo tempo em que ela. — Ama a teu inimigo, como a ti mesmo, assim tu ensinarás.

Ele suava e tremia.

— Eu te ofereço o poder sobre o Inferno e sobre todos os demônios! — gritou ela, enquanto sombras ameaçadoras rodopiavam ao seu redor. Cada frase dela era reforçada por uma sutil cacofonia de sete vozes entrelaçadas. Em cada palavra pronunciada, ele captava diferentes timbres combinados. Às vezes, uma sílaba soava como um grito, outras vezes, o som era sibilante. Enquanto a mulher falava, pela atmosfera ecoavam impressões de urros, uivos, zumbidos, gargalhadas.

Ela sorriu mais uma vez, saboreando a vitória possível. As sete sombras infernais que emanam da fêmea aprisionam o macho numa câmara de trevas intransponíveis. Protegida e revigorada pela Escuridão a quem serve, a mulher prossegue em seu estranho ritual de acasalamento, onde os opostos se atraem. Macho e fêmea. Êxtase e Agonia. Céu e Inferno. Amor e Ódio. Luz e Trevas.

Três tentações. Três Arquidemônios derrotados.

A quarta tentação seria a mais difícil de todas.


A QUARTA TENTAÇÃO foi escrito por Simões Lopes