segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 25: O Rito Dionísico


Fora eu levado para um terreiro de umbanda, nos fundos de uma antiga casa. O responsável pelo lugar, um senhor simpático de uns sessenta anos (Hélio era seu nome), respondeu-me a saudação com um sorriso afável. Ele e meu mentor cumprimentaram-se e conversaram por uns minutos, ao que fui deixado só com nosso anfitrião.

— Pode perguntar.

Hesitei alguns momentos, olhando o terreiro ao meu redor — uma pequena cerca, de meio metro de altura, separava o terreiro propriamente dito da assistência, onde havia cinco fileiras de bancos de madeira; no altar, imagens de diversos santos católicos: São Sebastião, Sant’Ana, o Arcanjo São Miguel, São Jorge e, é claro, Jesus Cristo. Figuravam também imagens diversas de índios, ciganos, budas, além de pedras e velas.

— Isso tudo não é... astral demais? — perguntei timidamente.

O sr. Hélio sorriu e se dirigiu ao altar, acendendo as velas.

— O astral, como sabe, é terreno do corpo emocional. O desenvolvimento da maior parte da humanidade está sendo deformado aqui. Já leu Admirável mundo novo? — respondi que sim, e ele prosseguiu — É mais ou menos por aí. As pessoas são erotizadas, estimuladas à violência, incentivadas à cobiça, tudo isso o dia inteiro, através de diversas mídias. Você sabe, é claro, que há grupos associados a Avydia, a egrégora da ignorância.

“Pois então! As pessoas ficam irresponsáveis e imaturas quando seu intelecto é tolhido e seu lado emocional, estimulado. O que fazemos aqui é disciplinar o corpo astral das pessoas, para que seu intelecto, em paz, possa desenvolver-se.

Mas há também o estudo simbológico, para os iniciados deste templo. Veja, por exemplo, o ícone de São Jorge — há uma simbologia sublime contida nesta imagem.”

Ele acende um turíbulo, sopra vigorosamente o carvão até a brasa arder e joga pitadas de um incenso forte, de cheiro acre.

“Como deve ter sido advertido, nossa casa pratica o Rito Dionísico — concordo levemente com a cabeça; meus olhos começam a se encher de lágrimas por causa da fumaça —; os rituais de Dionísio iniciam através da dor e do terror: confrontados com o poder da Natureza, os postulantes, em êxtase, abandonavam suas individualidades por poucos momentos. Transcendiam-se. Mas se você quer saber, acho que a natureza confrontada e terrífica era, em geral, a própria natureza dos que participavam dos rituais...”

Minha cabeça estava pesada, demorei a perceber que o lugar estava iluminado apenas pelas velas acesas do altar. Por efeito de uma fantasmagoria, todas as imagens pareciam meio nubladas, exceto a de São Jorge. Parecia bela, sob a luz bruxuleante das velas.

— Sr. Hélio?

Fiquei admirando o cavalo: branco, imponente. As patas dianteiras erguidas no ar. O animal parece fogoso, mas o cavaleiro o controla com apenas uma das mãos, uma vez que, com a outra, ele segura um lança, que subjuga o dragão aos seus pés. Cavalo e cavaleiro como um só.

— Sr. Hélio...?

As sombras dançam hipnoticamente nas paredes (tenho a sensação de que algo me espreita, às costas), e uma coisa me chama a atenção na base da imagem: uma carta de baralho. O ás de espadas. Chego mais perto, para pegar a carta, quando os pêlos de minha nuca se eriçam — instintivamente me encolho, e alguma coisa morde a estátua, fragmentando-a em pequenas lascas de gesso. Rolo no chão e, ainda caído, olho para cima. Um enorme dragão, de sombras e fumaça, arreganha suas fauces para mim. Seus olhos brilham sinistros, esverdeados, e seu hálito tem o fedor ferroso de sangue. O impacto do inusitado me deixa completamente gelado e, para meu maior pânico, vejo que estou simplesmente paralisado de terror. A cabeça rachada de São Jorge olha para mim a poucos centímetros de distância, o olhar vazio de todas s imagens barrocas.

Vendo o trapo inútil aos seus pés, o dragão levanta a cabeçorra e sorri; labaredas negras saem de sua boca. Somos agora a antítese do ícone jorgeano: o réptil dantesco subjugando o homem. Ele me olha com uma perspicácia terrível, um esgar escarninho no canto da boca. E fala.

— Certamente preferiria esperar mais alguns anos, até que germinasse. Mas não recusarei o banquete que me é oferecido agora...

Vou morrer e minha única testemunha é a cabeça de gesso ao meu lado. O dragão crava suas garras em minha barriga, causando uma dor horrenda. Eu até queria gritar, mas dói demais! Até que, do fundo da dor, eu percebo — a cabeça não está olhando para mim. Ao seu lado, está o ás de espadas. E me lembro das palavras de Hélio. Num claro instante, tudo se revela. Faço todo esforço que posso, me elevando acima da dor, e estico o braço, pegando a carta. A criatura arremete sequiosa, pronta para me devorar. Ataco também, enfiando a carta bem fundo, na goela da coisa. Ouço um grito assustador, e, meu Deus! acho que foi meu.

***

— Ei, guri, acorda!

Abro os olhos e estou deitado de costas no terreiro. Meu corpo está todo suado e meu braço está dormente. Viro a cabeça e vejo São Jorge, inteirinho, no seu lugar.

— Você entende o que se passou?

Levo um tempo para organizar as idéias, mas assim que consigo, tudo faz sentido.

“Fui atacado por um dragão. Aos pés da imagem havia uma carta de baralho, o ás de espadas. A fera teria me matado, mas usei a carta para derrotá-la.”

— Agora interprete.

“Quando o dragão me atacou, fiquei apavorado. Lembrei então do ícone e do que você tinha dito. O símbolo é muito simples: São Jorge, o homem, é a razão. O poder de sua magia mental é simbolizado pela lança; o cavalo é o corpo astral, e o dragão, o psiquismo inferior. Domando o cavalo, suas emoções, S. Jorge, o homem, consegue usar seu poder mental para subjugar o psiquismo inferior, o dragão. Ora, como os naipes do baralho representam os quatro planos e tem correspondência com o tarô, logo me toquei que espadas é o naipe do plano mental, e o ás de espadas corresponde ao mago do tarô. Controlei meu medo e minha dor e empunhei a espada contra o dragão.”

O Sr. Hélio sorriu satisfeito e me ajudou a levantar. Trouxe uma sacola plástica de supermercado, me entregando. Tinha uma calça e uma blusa branca. Na blusa, um emblema formado por um selo de Salomão com três flechas em seu interior.

— Seja bem vindo ao Antigo Rito Dionísico da Escola Filosofista. Sou seu mentor a partir de hoje. Você teve uma revelação reminiscente; despertou um conhecimento que já possuía de outras vidas. Sob a direção desta casa, você poderá alcançar todo o seu potencial.

“Mas existem duas coisas que você deve saber: primeiro, todos os métodos iniciáticos trazem em si um porquê e uma aplicação prática. Logo, não descarte nenhum método antes de ter certeza de que sua vivência não poderá torná-lo melhor do que é.

Segundo: aquele não era um dragão. Era seu dragão. Ele te espreita desde o momento em que aspirou o primeiro hálito de vida neste mundo. Ele te persegue há incontáveis vidas, desejando sorver sua shaya — vitalidade. Ele já teve sucesso muitas vezes antes e este êxito o encoraja a caçá-lo até conseguir sua derrota mais uma vez. E pode ficar certo: ele não está morto e nem foi derrotado, agora. Só está aguardando uma melhor oportunidade de atacá-lo novamente.”

Quebrando repentinamente a gravidade da situação, o Sr. Hélio sorri e me pede para comparecer à noite, pois há sessão às sextas-feiras e ele quer me apresentar aos meus confrades.

Antes de ir embora, meu novo mentor me presenteia com uma medalhinha de prata. “Não tem qualquer poder, é só para inspirar”. Um pouco sem graça, agradeço e entro no carro. Meu antigo tutor não faz perguntas, apenas dirige seu carro em silêncio, ouvindo as músicas que tocam no rádio do veículo. Meto minha mão no bolso e pego a medalha que ganhei; no centro, uma minúscula gravura de São Jorge derrotando o dragão. Neste momento, acho que não por coincidência, começamos a ouvir, no rádio:

“Jorge sentou praça

na cavalaria.

Eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia...”



O RITO DIONÍSICO foi escrito por Renato Simões

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