domingo, 27 de janeiro de 2008

Rebelião 71: Filho do Trovão

Um vento muito frio sacode as montanhas, fazendo as negras silhuetas dos imponentes pinheiros quase tremularem. Na laje fria da cozinha rústica, os pobres, doentes e mendigos se amontoam para chegar mais cedo à sopa quente e borbulhante que escorre da enorme panela de barro. Os frades acolhem os necessitados com carinho, e um deles mergulha a enorme concha no caldo substancioso de carne, legumes e grãos cozidos. Não muito longe dali, um religioso está parado junto ao parapeito da ampla janela, observando a neve que fustiga o vilarejo ao sopé do monte.

— Irmão, a comida já está pronta como pediste, o Irmão Nepomucen cuidará dos desabrigados e eu ficarei alguns minutos rezando na capela — informou o noviço Valeriu ao idoso monge que parecia ter os olhos negros perdidos na tempestade que rugia lá fora.

— Obrigado, Irmão, também vou recolher-me. Está muito tarde para um velho como eu ficar perambulando — respondeu o Irmão Ion-Iacob, enquanto escondia as mãos por dentro das grandes mangas do hábito.

O velho, cujo rosto enrugado era marcado pelo contraste entre o branco da longuíssima barba e o negro das espessas sombrancelhas, caminhou vagarosamente pelo corredor escuro do mosteiro. As passadas eram largas, ainda que sem aparente pressa. Ion-Iacob era o mais antigo dos frades no Mosteiro de Santa Catarina de Siena, situado num ponto esquecido das montanhas da Transilvânia. Talvez fosse o único dos monges a ter nascido naquela região, e todos tinham um grande respeito por aquele simpático e bonachão ancião de 92 anos.

O frei ainda teve que suportar alguns minutos de frio intenso e úmido antes de chegar até a sua modesta e simples cela. Olhou à sua volta, fazendo uma série de gestos não muito bem definidos, e fechou a pesada porta de madeira.

Acendeu uma vela bem grande que ficava em sua mesinha, e uma luz débil banhou o pequeno cômodo. Encostou um dos dedos na chama, cerrou os olhos num ar solene, e o então pálido brilho do fogo tornou-se um radiante candeeiro, tão luminoso quanto umas cem velas. À medida que uma aura azulada parecia banhar os móveis do quarto, a fisionomia severa do ancião começou a se transformar, lentamente.

Rugas foram desaparecendo, a barba escurecia mais a cada segundo, e a postura curvada e cansada foi dando lugar a uma aparência jovem e revigorada. Quando a transformação chegou ao fim, Ion-Iacob havia tornado-se um rapaz de vinte e poucos anos.

Todos no mosteiro pensavam que aquele frade fosse um idoso senhor de quase cem anos. As aparências enganam.

De fato, Ion-Iacob nascera comprovadamente em 1916, um filho indesejado da solteirona Claudia Irinel, e seu nome de batismo era Nicolae Irinel.

Com menos de um ano de vida, fora abandonado no mosteiro, onde passou toda a infância.

Aos doze anos de idade, descobriu que era diferente das outras pessoas. Incrivelmente diferente. Fugiu.

Em sua fuga, passou fome e frio, enfrentou as mazelas das guerras que assolavam o continente. Vagou sem rumo por um mundo enlouquecido onde todos se odiavam, acabou cativo e moribundo numa prisão infecta. Numa noite de tempestade, quando os raios cortavam o céu cor de chumbo, e o trovejar era tão alto que ele não podia dormir, ele pensou ter visto um anjo. A luz que emanava de suas vestes atravessa a estreita janela gradeada e parecia banhá-lo num estranho ritual de purificação. O anjo tinha as barbas de um ser tão velho quanto o tempo, e suas asas pareciam tecidas com a mais viva eletricidade.

Foi quando Nicolae descobriu quem realmente era.

Quando o carcereiro chegou na manhã seguinte, a cela estava vazia, sem nenhum sinal de arrombamento. Jamais se soube como aquele maltrapilho escapara de seu cativeiro.

Deixando que a luz dos relâmpagos o guiasse, ele chegou a Amidaela. O simplório rapaz da Transilvânia ficou um pouco confuso quando aquela bela moça africana revelou ser sua irmã. Mas o véu que cobrira sua vida estava finalmente sendo desvelado, e em breve ele já estava ciente que havia outros como ele.

Aprendeu a controlar seus incríveis poderes que tornavam mais que um simples humano.

E finalmente compreendeu que sua vida estava condicionada a uma importante missão.

Aos dezenove anos, retornou ao mesmo mosteiro onde crescera, e tornou-se um monge recluso. A partir daquele instante, nascia o Irmão Ion-Iacob. Mas, ao mesmo tempo, guardava em segredo seu verdadeiro nome, aquele que recebera de seus verdadeiros irmãos: Boanerges.

Boanerges, “Filho do Trovão”, o apelido que Jesus dera aos irmãos João e Tiago, filhos de Zebedeu. João e Tiago, em romeno, Ion e Iacob, que vieram a compor seu nome monástico, numa sutil homenagem.

O mosteiro recebe muitos visitantes, mas quando estes aproximam-se daquele velho religioso e pronunciam a senha “Foi escrito pelo Filho do Trovão”, ele sabe que não é o Irmão Ion-Iacob a quem procuram, mas sim a Boanerges, o Visionário, o primeiro de todos os Escribas da Linhagem Fúlgida. Foi ele que escreveu sozinho em algumas noites o Index Manifestorum Primus, a primeira compilação classificatória dos diversos poderes que constituem a herança dos Filhos Híbridos dos Anjos Rebeldes. Tudo o que os outros Escribas desenvolveram a partir daí, têm sua fonte primeva na obra fundamental de Boanerges.

Boanerges como todos os Nefilim, é virtualmente imortal e possuem o dom inato de Bachor, a juventude eterna. Contudo, Boanerges, como um dos mais antigos Visionários, preferiu mascarar sua existência simulando um envelhecimento místico, que ele consegue com seus poderes. Manter uma aparência envelhecida compatível com sua idade biológica requer um grande domínio dos poderes. Algo que Boanerges, o Maior dos Escribas, sem dúvida conhece muito bem.

A luz forte que emana das chamas sobrenaturais provoca reflexos ondulantes nas paredes de alvenaria, e permite que o Visionário observe as suas últimas anotações nas folhas encadernadas. O lápis de traço forte corre rapidamente pelo papel delineando esquemas, símbolos e fórmulas. Algumas páginas com teorias incompletas e hipóteses refutáveis são arrancadas sem pena. Boanerges procura uma nova formulação para os limites do Hálito de Moloch, e compara com alguns dados enviados há algum tempo por sua pupila Rapunzel. Fortes indícios de um novo manifesto merecem melhor investigação.

Um raio corta o céu, e um estranho barulho desperta o idoso de aparência jovem de seus estudos. Por entre as persianas de madeira, um exausto morcego bate suas asas sofregamente. Boanerges imediatamente percebe que algo sobrenatural ronda o inesperado animal.

Em uma de suas patas, amarrado com esmero, um tubo contendo um pequeno bilhete enrolado. É evidente que aquele animal não seria capaz de viajar tanto sem uma ajuda “mística”. O precavido nefilim aguça seus sentidos, toda cautela é pouca. Inimigos podem estar por trás disso.

Mais tranqüilo após fazer um detalhado rastreamento, e perceber que não há entidades presentes no local, ele desenrola o bilhete.

Nada escrito.

Ele observa as bordas do papel com atenção. O padrão de minúsculos cortes é incofundível.

A carta é aproximada da vela ritualística.

O texto começa a aparecer, reagindo ao brilho da chama na forma de caracteres especiais. Boanerges gosta de chamar este alfabeto de Scripta Alba, uma utilíssima invenção da Escriba Veturia.

O conteúdo da carta agora pode ser decifrado:

FOI ESCRITO PELO FILHO DO TROVÃO

É o que diz a primeira linha da mensagem. Já basta.

RUDRAH MORTO, STELLA MARIS NO CÉU, GÜNTER SUMIU, BENITA ATACADA. RAPUNZEL ESPERA PELO MESTRE.

Um último glifo estilizado marcava a assinatura: a mensagem fora enviada por Abrasax, mais um Escriba dos Visionários.

“Stella Maris no Céu”, dizia o texto, ou seja, ela havia ascendido para tornar-se um Paradisio. Todos os citados eram Escribas, e sem dúvida Rapunzel guardava muito mais para ser dito.

Por mais de sessenta anos ele ficou recluso neste mosteiro, ajudando a seus companheiros Escribas por meio de cartas e visitas. Mas agora era tempo de sair da tão duradoura reclusão.

Já era madrugada quando um jovem frei deixou os portões do mosteiro de Santa Catarina de Siena. Ninguém estava acordado para presenciar aquela “fuga”, e de qualquer forma ninguém no local reconheceria naquele rapaz de cabelos pretos o bondoso e velho Irmão Ion-Iacob.

Num bolso da pesada vestimenta, ele carregava um animalzinho alado, previamente reanimado pelos poderes nefílicos. Tamanho esforço não merecia ficar sem recompensa. Na primeira oportunidade, o frágil morcego seria levado de volta a seu habitat original. Mas primeiro era preciso vencer a longa caminhada pela encosta nevada.

Não mais Nicolae, não mais Ion-Iacob, era agora Boanerges quem trilhava o caminho. Por toda a sua vida, devotara-se a entender e elucidar os misteriosos poderes dos Nefilim. Por décadas e décadas os outros Escribas buscaram pela sabedoria e conhecimento do Escriba Boanerges.

Rapunzel e Abrasax foram alguns dos melhores alunos do velho Visionário. Mas agora eles deixavam claro que não iriam até o mestre, mas que esperavam por ele.

E Boanerges partiu, em busca de seus companheiros.



FILHO DO TROVÃO foi escrito por Simões Lopes

Rebelião 70: Um Milhão de Mortes

15 de setembro de 1941.

Esta data ficará gravada em minha memória. Eu me chamava Diego Montesino, e morava em Paris com minha querida mãe Madalena Montesino. Comunista espanhola, fora obrigada a deixar seu país natal para não ser morta pelos soldados franquistas. Anos depois, viu seu país adotivo ser dominado pelos nazistas, e tornou-se membro ativo da Resistência Francesa. Eu, um tanto alheio ao cenário turbulento, era apenas uma espécie de garoto-prodígio, pianista virtuoso desde os oito anos de idade. Ainda me lembro do maldito dia em que os nazistas invadiram nosso apartamento, num ataque fulminante. O comandante do grupo — ele não parava de repetir seu nome — chamava-se Kurt Haller: bigodinho ridículo, “à moda do Führer”, cabelos louros, olhos negros. Assisti minha mãe ser executada com um disparo pelas costas. Sabendo que eu era pianista atirou em minhas duas mãos, antes de me “presentear” com um tiro no peito.

25 de dezembro de 1941.

Três meses após a morte de minha mãe, estava eu vivendo na cidadela subterrânea de Heliopolis. Eu já sabia que era um Acólito e minha existência passada já parecia um sonho distante. A Ruivona me encontrara agonizante no meu apartamento, ajudando-me a regenerar os ferimentos e voltar à vida. Não deixei que minhas feridas nas mãos cicatrizassem inteiramente, e nunca mais toquei piano desde então. Ainda assim ganhei o apelido de Pianista, e quem me chamou assim pela primeira vez foi a minha tutora Fen Lu-Na, chamada de Carmim no meio dos Acólitos.

2 de janeiro de 1971

Foram trinta anos aperfeiçoando meus poderes. Jamais perdi a esperança de descobrir o paradeiro do assassino de minha mãe. E foi nesta data que uma série de eventos levaram-me a descobrir que Kurt Haller não só estava vivo, como se chamava agora Roman Berliner, vivendo na Argentina incógnito. Parti imediatamente em seu encalço.

3 de março de 1971

Encontrei-o morando numa bela casa, com um lindo jardim de rosas vermelhas. Não tive dificuldade em entrar. Encontrei-o dormindo em seu quarto. Ele estava muito mudado: cabelos grisalhos e mais ralos, nenhum bigode, óculos, possivelmente submetido a mais de uma cirurgia plástica.

Enganara a todos.

Menos a mim.

Eu jamais esqueceria aquele rosto.

“Boa noite, Herr Haller” – disse eu, acordando-o. Ele não pareceu demonstrar medo, tão seguro que estava, me disse que não era aquela pessoa e ameaçou chamar a polícia. Mostrei as cicatrizes em minhas palmas, “Lembra-se do garoto pianista? Estou aqui para a vingança!”

A arrogância do maldito desapareceu por completo, ele parecia agora uma criança assustada. “Eu andei meio mundo à sua busca! Estou aqui para saciar meus desejos de vingança!”, gritei, agarrando-o pela gola do pijama. Usei de todos meus poderes, assumindo uma forma demoníaca, e o apertei seu rosto. “Implore agora, nazista! Implore como a minha mãe fez!” Senti que ele tremia, e as calças já estavam borradas. Ele chorou, chorou e chorou. Eu o olhei bem nos olhos:

“Preste atenção. Pode ter certeza que eu voltarei. Pode ser amanhã, ou no próximo mês, ou no próximo ano. Eu o segui até aqui e posso segui-lo aonde quer que você vá. Fique aqui no seu refúgio, imaginando como será sua morte, nas inúmeras e terríveis maneiras como eu poderei acabar com você. Enquanto isso, pense em minha mãe e em todas as suas vítimas.”

Larguei-o com força na cama, despedindo-me:

—Até logo.

8 de agosto de 1974.

Já se passaram três anos. Kurt saía pouco de casa, eu observava às vezes sem que ele percebesse. Ele tinha pesadelos terríveis, e vivia com medo de tudo e todos. Calvo e emagrecido, andava escorado numa bengala. Eu continuo na espreita.

29 de junho de 1975.

O jornal local sequer noticiou a morte do esquecido doutor Roman Berliner. Debilitado pelo horror permanente em que vivia, acabara sucumbindo. No cemitério, apenas uma pessoa assistiu ao corpo baixar à sepultura.

Eu.

Ao decidir não matá-lo, eu o condenei a um milhão de mortes.

30 de junho de 1975.

Após tantas décadas, voltei a tocar piano. É maravilhoso perceber que tanto tempo, eu ainda tenho o dom. Estou tocando a música preferida de mãe. Durante boa parte da minha vida, eu desejei ter morrido junto com ela, e de certa forma, sentia uma espécie de culpa por ter sobrevivido, sem poder salvá-la. Mas agora eu percebo que de certa forma, Diego Montesino realmente morreu junto com sua mãe naquele fatídico ano de 1941.

Agora eu sou apenas o Pianista, um dos mais antigos e renomados membros da linhagem dos Acólitos.



UM MILHÃO DE MORTES foi escrito por Simoes Lopes

Rebelião 69: Guerra Fria

A prisão era fria e suja. Mercio Barón estava deitado no chão de pedra, coçando a atadura que lhe imobilizava o ombro. Se não estivesse tão preocupado com a segurança de Miguelita e Francisca, teria conseguido desviar-se da rajada de metralhadora. Antes de desmaiar, ainda viu sua grande amiga Miguelita Barrios Pérez caída no chão, com a cabeça arrebentada, e os olhos vidrados. Os outros militantes comunistas já deviam estar presos ou mortos. O rapaz já não fazia idéia de por quantos dias estava preso, e seu raciocínio estava muito confuso. A noite anterior fora a pior de todas. Álvarez foi torturado em alguma cela ao lado, e Mercio sentiu vontade de arrancar as próprias orelhas para não ter que ouvir a agonia do colega. O ano de 1974 estava sendo horrível para os comunistas no Chile. O governo militar que tomara o poder não media esforços em eliminar toda e qualquer resistência ao regime. Mercio era equatoriano, mas viera em 1971 juntar-se a amigos chilenos em projetos de alfabetização. O golpe, liderado pelo General Pinochet, fora extremamente bem planejado, e toda resistência foi fulminantemente dizimada.

Felizmente, nenhum dos militares viera interrogá-lo ou maltratá-lo ainda, e Mercio tentava coordenar suas idéias a fim de pensar numa saída para tão desesperadora situação. Não tinha parentes no Chile, e todas aquelas pessoas que conhecia, provavelmente também estavam presas. Ou mortas.

Os soldados voltaram ao corredor principal da cadeia. Um corpo era arrastado, aparentemente sem vida. Mercio fingiu estar dormindo, mas pôde ver com os olhos semicerrados a silhueta esguia de Agostín Álvarez sendo arrastada por dois soldados muito fortes. Faltavam-lhe dentes na boca, e as mãos estavam enfaixadas. Seu rosto parecia coberto por um enorme hematoma roxo, e ele balbuciava palavras desconexas.

“Eu não falei...nada...eu não...vou falar...”, eram suas palavras. Quando Mercio escutou, viu que não eram tão desconexas assim. Pensou em reagir, erguer-se e libertar-se, mas sentiu uma grande dor percorrendo-lhe o tronco. Sinal de que os músculos ainda não estavam inteiramente regenerados.

Mas as unhas que foram arrancadas três dias antes já haviam começado a nascer de novo, protegidas de olhares curiosos pelas ataduras. Este era seu segredo. Podia sentir que as costelas partidas já estavam reconstituídas. Até quando conseguiria mantê-lo, ninguém sabe.

As portas da cadeia abriram-se mais uma vez, com um estrondo desagradável. Uma fileira de militares de baixa patente adentraram o corredor, e foram direto na direção da cela de Mercio. Este respirou fundo.

— Mercio Barón! Levante-se! — gritou um dos soldados, com tom arrogante.

A porta foi aberta, e armas foram apontadas na sua direção. Algemas foram colocadas de forma não muito confortável — como era de se esperar — e o jovem militante marxista foi escoltado para fora do corredor. Ao passar pelas outras celas, notou que Agostín estava deitado, aparentemente desmaiado, e que a cela onde estivera Marcelino estava vazia.

Os soldados o levaram até uma sala com porta de vidro, com uma mesinha de cerejeira e duas cadeiras com pernas de ferro. Acomodaram-no numa das cadeiras, de frente para a janela, e ele até notou uma certa falta de truculência nos atos dos militares. O sol estava nascendo por entre as montanhas nevadas ao longe, e mesmo aquela luz mortiça chegou a seus olhos como um clarão ardente, já que estava há dias na escuridão da cela suja.

Os mesmos homens que o trouxeram retiraram-se da salinha, deixando-o sozinho por alguns minutos angustiantes. Era chegado o momento de iniciar sua fuga? Já sentia sua mão plenamente regenerada, mas o estado das costelas e pulmões ainda o preocupava.

Pouco depois, um homem entrou na sala. Era muito alto, com cabelos louros cortados à “escovinha”, e um bigode eriçado. A grande quantidade de insígnias no peito indicava tratar-se de um oficial importante. Ele puxou a cortina com violência, fechando a janela.

— Sou o Major Clodomiro Joaquín Contrero y Villeblanc, eu sei quem você é, Mercio Barón! — disse, com indisfarçável tom arrogante. Mercio permaneceu calado.

— Ou deveria, dizer, como vai, Gripe? — a menção a este apelido provocou arrepios no rapaz, que se levantou. Seus olhos negros clarearam até reluzir num branco incandescente.

— Acalma-te, Acólito! — gritou com a voz rouca e grave o oficial, e seus olhos brilharam como estrelas azuis num céu negro. — Estás diante de um “primo”. Permanece sentado e escuta-me — completou, baixando o tom de voz até quase um sussurro.

— Sou um Precursor, e estou aqui para libertá-lo. Já solucionei os entraves burocráticos, e vou dar-te um salvo-conduto para que saias do país imediatamente.

— Exijo que meus companheiros sejam libertos. — sussurrou Mercio, isto é, Gripe, com tom ameaçador e sem aparentar a mínima gratidão.

— Não. Estou aqui apenas para libertar um parente. A escória humana que busque seus próprios salvadores. Cabe a mim levar-te para fora desta prisão.

— Sem eles, eu não sairei. Não posso trair meus camaradas — o tom de Mercio ainda era o mesmo.

— Não me interessam as crenças estúpidas dos Acólitos. Vim aqui para consertar as bobagens que andaste fazendo. Aceite tudo como está, e tudo acabará bem. Não banque o samaritano, Acólito. Não fica bem para um Nefilim rebaixar-se tanto.

— Sinto muito, Precursor, mas não posso trair meus companheiros e minha causa — respondeu o Acólito, com convicção.

— “Tua causa”, “camarada”, que palavras são essas? Isto não é “tua causa”, imbecil. Ideologias humanas só servem para tanger o rebanho humano de um lado para o outro. Apenas isso. Os filhos dos Kerubim misturam-se demais à carne podre. Temo que vocês desejem tornar-se iguais a eles.

— Nós devemos liderá-los a fim de conduzi-los a um futuro melhor. Estamos aqui para...

— Cala-te. Não agüento mais ouvir chavões de cartilhas políticas. Nós somos superiores a eles, esquece os humanos. Esquece! — um soco na mesa denunciou sua revolta. O Acólito abriu um largo sorriso.

— Por que o riso? — espantou-se Contrero.

— Ora, meu amigo Precursor... Vocês falam mal dos humanos, mas vivem do dinheiro deles. Desprezam os humanos, mas sobrevivem às custas da ideologia capitalista que aprenderam com eles...

— Capitalismo, Marxismo, Trabalhismo...não importa quantos “ismos” os humanos inventem, nós Precursores usaremos de todos os meios possíveis para estar no topo da pirâmide! Nos dê uma sociedade capitalista, e nós seremos os donos do dinheiro; nos coloque num país comunista, e nós estaremos nos altos escalões dos partidos governantes. Não temos “preconceitos”. Há muitos de nós até na União Soviética e na China, meu caro “primo”.

Mercio Barón, o “Gripe” ficou calado.

— O silêncio anuncia minha vitória, então — comentou o Precursor. Venci o debate. Disseram-me que teu apelido é “Gripe” porque seus argumentos são contagiantes. Mas parece que estou imune a estas “doenças” humanas.

— Há ideais que transcendem a tudo. Quando o Armageddon chegar, vocês descobrirão que os Acólitos estão certos. Sua arrogância não valerá nada no Final dos Tempos.

— Ora, meu amigo, mas Armageddon será provocada pelos próprios humanos! Teu pai de asas luminosas não falou-te disso, ainda? Os humanos são criaturas desprezíveis, que rastejam no barro onde foram criados. Agimos apenas como ceramistas. Cabe a nós moldar este barro amorfo para nossos próprios fins. Dar utilidade a tais bestas inúteis. Quando não forem mais necessários, que sejam exterminados. Isto, é claro, se não matarem-se uns aos outros, antes da Grande Batalha.

Clodomiro Contrero levantou-se e entregou os documentos a Gripe, que pegou-os com uma certa relutância.

— Fico feliz que tenha aceito minha ajuda, Mercio — disse o oficial, ajeitando as abotoaduras.

Mercio abriu todos os envelopes e leu tudo. Quando Clodomiro já estava pegando sua pasta para ir embora, o Acólito rasgou os papéis de um movimento só.

— Idiota!!! — o oficial gritou tão alto que foi ouvido do lado de fora. Agarrou o filho de Kerubim pela camisa esfarrapada.

— Sem a minha ajuda tu morrerás aqui, abraçado aos teus amados humanos. É impossível ajudá-los.

— Desafie sempre o impossível — disse Mercio, já se levantando e rumando para a porta.

— Quem disse isso, algum Acólito caquético?

— Não. Che Guevara.

— Ah. Nada como a sabedoria de um morto. Adeus, Mercio, eu fiz o que eu pude.

Mercio Barón não falou mais nada, e foi reconduzido à sua cela.

Meses depois, Clodomiro Contrero y Villeblanc estava em seu gabinete quando recebeu um comunicado. Uma fuga de prisioneiros havia ocorrido na prisão onde estava encarcerado Mercio Barón. Dos treze prisioneiros fugitivos, cinco há haviam sido recapturados, e sete haviam sido mortos durante a tentativa. Faltava um na lista, e Clodomiro — recém-promovido a Tenente-Coronel — tinha absoluta certeza de que este sobrevivente era Mercio Barón, o Gripe dos Acólitos.

O Tenente-Coronel Contrero recostou-se na cadeira acolchoada e deu uma demorada pitada no cachimbo. Soltou um sorriso, enquanto olhava para as estrelas que brilhavam forte no céu noturno cor de chumbo.

“Será que o Acólito saberá que fui o responsável em facilitar a sua fuga? Que abri brechas na prisão inexpugnável que o guardava?”, meditava o astuto filho dos Ofanim. “Sabia que ele não aceitaria minha ajuda, por isso tive que ajudá-lo sem que ele soubesse”, pensava Clodomiro enquanto terminava de ler o relatório sigiloso.

“Que os Kerubim velem por seu filho, e que ele sobreviva às pequenas batalhas dos homens, para participar da grande guerra dos deuses”, recitou sua prece sincera.



GUERRA FRIA foi escrito por Simoes Lopes

Rebelião 68: Tique-Taque

Tique.

Taque.

O pesado relógio de parede bate sem parar, seus ponteiros marcando 3:12 da madrugada. Meu coração pulsa num ritmo que agora parece infinitamente mais acelerado. A fome que me consome é imensa, já comi tudo o que havia na geladeira, e agora procuro sofregamente na despensa mais alguma coisa. Provavelmente deve ser o efeito da Gula — Agathe havia me alertado sobre isso. Manter o equilíbrio sempre foi muito difícil para mim, e foi ela, Agathe Leandridis, a Visionária, a responsável por me salvar do descontrole por diversas vezes. Eu era ainda criança quando nos conhecemos, e inegavelmente aprendi muito com ela.

Tique.

Taque.

Tudo começou naquela tarde chuvosa de anteontem, quando acordei exausto, após um sangrento combate com uma Sheilim. Por um simples golpe da sorte, escapei da morte certa, e a maldita vagabunda dos infernos acabou fugindo ilesa. Dormi por ininterruptas 32 horas, o que me parecia simplesmente um efeito da queima excessiva de maná ao curar minhas feridas. Mas agora, sinto que era o espectro da Queda rondando... envolvendo-me em suas tentações pecaminosas.

Tique.

Taque.

Eu tento não ligar para o tinido irritante do relógio, mas não consigo tirar o maldito barulho da mente, preciso pensar em outra coisa. A imagem de Agathe mais uma vez me vem à cabeça, e penso em seus cabelos negros e encaracolados. Ela não me procurou mais, temo que algo de pior tenha acontecido a ela. Ela jamais abandonou os amigos. Penso em seus maravilhosos olhos verdes, em seu corpo perfeito. Fico excitado, e penso em como seria maravilhoso vê-la inteiramente nua. Minhas mãos passeando por suas coxas carnudas. Beijá-la. Possuí-la. Ela aprovaria?

Tique.

Taque.

Não, ela não aprovaria. É claro que não. Mas eu a tomaria à força, e ela sentiria toda a intensidade de meu amor. O que estou dizendo? Como posso pensar em Agathe desta forma? Isso... não... está certo. Não pode... Sentimentos confusos... Sinto que meu corpo está entregue a impulsos selvagens de forma cada vez mais descontrolada. É preciso deter a loucura.

Tique.

Taque.

Tique.

Taque.

A imagem do estupro de Agathe não sai de minha mente, e remôo cada detalhe mais uma vez. Não posso estar desejando... Um calafrio percorre minha espinha quando algo me ocorre. Não são desejos represados... são lembranças!!! Sim, maldito seja eu, eu violentei minha melhor amiga, eu fiz isso, sim! Ou não?! Lembranças confusas.... por um momento, eu gostaria de ter o autocontrole de Agathe, sua nobreza, sua inteligência. Por que eu não consigo ser assim!!! Por que jamais pude aprender com Agathe?!!!

Tique.

Taque.

Tique.

Taque.

Ouço o barulho de um carro estacionar à frente de minha casa. São eles! Só podem ser eles!!! Sim, meus amigos estão aqui para me ajudar a puxar-me para fora deste abismo!

Eu corro até a porta, e passo pelo espelho. Dou passo atrás e olho-me mais uma vez. Eu, Martin Skelter, 22 anos, nascido nas terras geladas do Alaska. Meus olhos azulados, meus cabelos negros e compridos. Alguém assim tão belo não merecia o destino tão cruel... Fico absorto em meu súbito e recém-desperto narcisismo. Ouço alguns passos na entrada, mas sequer penso em atender. Admiro meus belos olhos azuis refletidos e lembro-me de minha infância, quando eu corria livre pelas ruas geladas daquela minúscula cidade de que mal recordo o nome. Recordo-me da imagem etérea de alguns anjos flutuando acima dos galhos dos pinheiros. Entre eles, sei que um deles era meu pai.

Tique.

Taque.

Tento desligar o relógio, mas não lembro mais como funciona o mecanismo.

Tique.

Penso em meu pai. As asas abertas como um gigantesco pássaro, a cabeça imponente com o bico recurvo e os olhos vermelhos parecendo me fuzilar. O porte celestial de tão impressionante criatura. Suas penas brilhavam prateadas à luz do luar.

Eu quero ser tão poderoso quanto Ele.

Não, eu já sou tão poderoso quanto Ele.

E meu poder será muito, mas muito maior ainda.

Taque.

Eu penso nele uma última vez, e ele não me parece mais tão impressionante. Penso em seu corpo disforme e com braços desajeitados, como os de um macaco. O bico recurvo assume um aspecto que prima pela feiúra. As enormes asas resumem-se agora a dois toscos pedaços de membrana esticados sobre ossos pontudos, como se fossem os apêndices de morcego das profundezas do Inferno. Ele continua me olhando com seus olhos vermelhos.

Tique.

Ainda posso ver aquele par de olhos de fogo no espelho. Estou olhando para meu pai?

Taque.

Não. Estou olhando para mim mesmo.

Tique.

Minhas mãos tornam-se garras afiadas, e sinto o calor aumentar embaixo de meus pés.

Golpeio o relógio antes que ele faça mais um de seus malditos barulhos. Com a força de meu golpe, o objeto parte-se ao meio, muitos cacos de vidro fincam-se em minha pele, mas a dor não me incomoda.

Ouço gritos indefinidos. Não consigo identificá-los.

A porta de minha casa é derrubada.

Vejo vultos indefinidos. Um homem de barbas negras grita comigo, enquanto uma mulher de pele morena, aos prantos, fala algo para mim numa língua estranha.

Tique.

Taque.

O relógio, apesar de partido ao meio, ainda insiste em seus últimos acordes. Minha fúria torna-se ainda maior, e eu piso no que restou das engrenagens com toda a minha força. Peças de todos os tamanhos saltam voando por todos os lados.

Não haverá mais tiques e taques.

Minha hora chegou.

Sou atingido por uma descarga elétrica, derrubando-me.

Caído, lanço um breve olhar para aqueles estranhos invasores.

Por um breve momento, penso estar vendo meus amigos de Congregação, Agathe Leandridis e Neal Moore. Agathe está aos prantos.

Tique.

Isto não pára nunca!!!! Pisoteio compulsivamente a sucata metálica até que não reste mais nada inteiro. Ainda espero ouvir por mais um taque.

Mas ele não vêm.

Não... enxergar... Neal ou Agathe ... não entender... apenas barulhos... e sombras.

O calor aumentando... espelho... quebrado... apenas... a imagem... do demônio furioso... dentes salientes... garras de animal... fogo nos olhos.

Estou sozinho.

Eu.

Apenas Eu.

Apenas a Queda.

Tique.

Taque.




TIQUE-TAQUE foi escrito por Simoes Lopes

Rebelião 67: Exército de um Homem Só

Uriel Thelin corria pela neve fofa à toda velocidade. A respiração era entrecortada e seu coração pulsava em um ritmo alucinante. À sua frente o lago congelado cobria-se de uma fina camada de gelo. Um barulho forte cortou o ar frio, denunciando a presença de um helicóptero. Atrás dele, um jipe aproximava-se em ritmo acelerado.

O Guerrilheiro sabia que não havia tempo para pausas. Com suprema concentração, invocou a Pele de Meri’im, tornando seu corpo maleável. Dilatando a sola de seus pés descalços, conseguiu manter-se correndo pela superfície de gelo, sem quebrá-lo. O helicóptero deu uma rasante, e no ponto de máxima aproximação, uma saraivada de dardos tranqüilizantes choveu sobre Uriel.

A carga narcótica derrubou-o, com sua forma retornando à original — com isso, a crosta que cobria o lago partiu-se sob o peso do nefilim dinamarquês. Alto e magro, sem pêlos no corpo, trazia runas tatuadas no peito e nos braços. Os olhos grandes e saltados, de cor cinzenta, estavam fixos no horizonte, como se estivesse esperando por algo.

“Onde estão eles?”, pensava Uriel, procurando desesperadamente por sinais que denunciassem a chegada de seus amigos Desiderio Rubicán e Gypsy Queen.

Bastou consumir um pouco de maná para neutralizar o efeito dos dardos, mas a placa de gelo não foi capaz de suportar seu corpo. Caiu na água gelada, afundando como se fosse de chumbo. O jipe, que já estava estacionado nas bordas do lago congelado, despejou uma pequena legião de agentes. Pertenciam às forças paramilitares do Departamento Ômega da R.A.M., e embora agissem de forma ilegal, o grande poderio da mega-empresa permitia-lhes todo o acobertamento necessário.

As várias armas que estavam apontadas na direção de Uriel foram baixadas, quando eles perceberam que seu alvo caíra na água. Sua missão era capturá-lo a todo custo.

Capturá-lo — se possível — vivo.

Do helicóptero saíram duas sondas prateadas, propelidas por alguma espécie de dispositivo eletromagnético. Pairaram por um tempo na atmosfera úmida e gélida, e então mergulharam na fenda aberta no gelo, atrás de sua presa.

Sensores de infravermelho e de movimento varriam as águas escuras em busca do homem submerso. Em menos de três segundos a silhueta térmica dele já aparecia nas telas de rastreamento do helicóptero. Localizar um homem de 1,91m e 36,5°C de temperatura era extremamente simples para artefatos tão sofisticados. A equipe de busca, confortavelmente instalada a bordo da máquina voadora, chegou a ensaiar uma comemoração, mas rapidamente seus gritos viraram expressões de incredulidade, quando aquele mesmo homem simplesmente desapareceu da tela dos sensores.

Consciente de seus poderes, Uriel havia apelado para o manifesto Nadando com as Ondinas a fim de se mesclar ao elemento líqüido. Voltando à tona, viu-se obrigado a assumir mais uma vez sua forma física real. “Chega de esperar por ajuda, eu mesmo dou conta do recado!”, pensava o filho da arqueóloga Megara Thelin. Os soldados da R.A.M. demoraram um pouco a reagir, mas finalmente perceberam o ressurgimento de seu alvo.

O Guerrilheiro nórdico não deu tempo a seus perseguidores: usando a Dispersão do Silfo, transformou seu corpo em ar e fluiu com velocidade na direção do pelotão.

O primeiro dos homens armados foi nocauteado sem sequer perceber de onde vinha o soco.

O segundo, percebendo que Uriel mais uma vez voltara a tornar-se “sólido”, tentou disparar uma rajada de dardos à queima-roupa, mas o nefilim esquivou-se com inteligência, fazendo com que o disparo atingisse o terceiro soldado, que só não foi derrubado por que seu capacete e colete detiveram os projéteis. A vitória só não foi completa porque o último de seus inimigos, que estava mais distante, urrou triunfante quando conseguiu alvejar o Guerrilheiro com uma descarga laser, levando Uriel a cair de joelhos. Mais soldados desceram do jipe, seguidos por seu suposto comandante-de-campo. Armas foram apontadas para o alvo. Uma ordem foi gritada com ênfase: “baixem as armas agora, todos, código verde!”

Os milicianos baixaram a guarda, surpresos pela inesperada atitude de seu superior, que paradoxalmente aparentava estar tão surpreso quanto eles. Ninguém foi capaz de compreender que tratava-se do próprio Uriel Thelin usando magistralmente o Eco de Bala’am, o manifesto que permitia criar ilusões sonoras. Quando o próprio comandante gritou que não havia gritado — o que só contribuiu para aumentar ainda mais a confusão do grupo —, Uriel já havia mais uma vez transformado-se em vento e alcançara o helicóptero pousado. Materializou-se na cabine, cuspiu uma baforada de gás tóxico — o famigerado Hálito de Moloch e conseguiu derrubar todos os agentes da R.A.M. que estavam no veículo. “Será que ainda me lembro como se faz?”, perguntou para si mesmo, quando utilizou-se de suas habilidades inatas como piloto para fazer decolar o aparelho, ao mesmo tempo que arremessava os corpos dos agentes para fora.

“Vamos ver do que você é capaz...”, pensou, enquanto verificava os instrumentos à sua disposição. Deu uma rasante sobre os soldados remanescentes, obrigando-os a atirar-se no chão nevado. Os agentes do Departamento Ômega pareciam hesitantes em atirar no próprio helicóptero, e o seu comandante acionou um dispositivo na pulseira eletrônica.

Uma tecla começou a brilhar no lado esquerdo do console do veículo.

A explosão foi tão forte que iluminou o vale. Pedaços de metal e plástico caíam por toda a parte.

O comandante da operação — Sved Suter era seu nome e seu cargo era o de Coordenador de Operações — respirou aliviado. Sabia que o dispositivo de autodestruição do helicóptero evitaria que ele fosse roubado ou usado por outros. Mas a morte do PPE, como aquele homem era chamado no documento sigiloso expedido pelo Departamento Epsilon, seria um grave golpe para a carreira de Sved. Um dos agentes já estava verificando se o jipe fora danificado por algum dos destroços, e deveria retornar à sua base o mais rápido possível. Felizmente a tecnologia avançada da R.A.M. garantia que os destroços seriam rapidamente consumidos, devido a um sistema de degeneração molecular desenvolvida pelos químicos da Célula 11 do Diretório Europeu. A explosão provavelmente seria notada por alguém, mas não seria tarefa difícil plantar a versão de que um helicóptero da empresa fora atacado por um grupo de ecoterroristas fanáticos. Sved entrou em contato com seu superior imediato no Departamento Alpha, responsável pela Supervisão dos agentes especiais de segurança. A tela de cristal líquido em seu celular mostrou o rosto redondo e avermelhado de Knut Sigfridsen, que pareceu estar enfartando ao ouvir as más notícias. Knut havia garantido aos cientistas do Departamento Epsilon — o departamento responsável pelo estudo dos indivíduos chamados PPE, “Peter Pan Elements”, o nome com o qual os cientistas da R.A.M. chamavam os Nefilim — que bastaria uma pequena unidade de Operadores para executar o serviço, já que o Departamento Omega tinha acesso a ultratecnologia bélica.

“Eu quero cada milímetro de neve varrido! Não parem até encontrar nem que seja uma maldita célula deste maldito cadáver!”, gritou Knut ao celular.

Mais reforços chegaram para ajudar à equipe de Sved em sua infame busca. Apesar da incessante varredura, eles ainda não haviam detectado nenhum vestígio do PPE. Era como se o morto tivesse sido completamente pulverizado.

À uma distância segura, bem longe dali, o suposto “morto” Uriel Thelin observava tudo com atenção redobrada. A seu lado, estavam seus colegas, Desiderio Rubicán, um Guerrilheiro espanhol, vestindo uma jaqueta sem mangas, um boné verde, e uma calça repleta de bolsos e apetrechos; e a Visionária conhecida como Gypsy Queen, nascida em um acampamento cigano na Inglaterra, com compridos cabelos negros e magnéticos olhos azul-escuro, envolta em um felpudo casaco de pele sintética e fumando um cigarrinho de odor penetrante.

— Como você conseguiu escapar da explosão? — perguntava a atônita Gypsy Queen, ainda sem entender direito a história.

— Sorte, pura sorte — enfatizou Uriel, enquanto coçava o ombro.

— “Sorte”, meu caro? — debochou o espanhol Desiderio — Estás falando como um Acólito, agora! — terminou a frase com uma gargalhada bem forte.

— Minha idéia era usar a Dispersão do Silfo, escapar pelo ar, e deixar o helicóptero cair. Logo após eu me desmaterializar, o bicho simplesmente explodiu. Se isso não é sorte, eu não sei dar outra explicação — levantou-se, sacudindo os flocos de neve da roupa. — Aliás, por falar nisso... — ao dizer Uriel olhou para seus dois amigos com uma certa fúria no olhar — porque diabos vocês não me ajudaram se já estavam aqui assistindo à perseguição toda? Pensei que vocês estavam longe!

— Você lutou muito bem para quem estava sozinho, Uri — respondeu o outro Guerrilheiro. — Não queríamos interromper sua performance — pontuou com mais uma gargalhada, sob protestos da amiga, que garantiu que eles iriam interferir se necessário. Uriel acabou perdoando o gesto de seu colega espanhol, afinal de contas, adorou a emoção do combate. Sentia-se muito empolgado.

— Não é engraçado? — falou Desiderio, enquanto olhava o grupo de agentes da R.A.M. perambulando pelo sopé da montanha onde estavam escondidos por entre os arbustos. “O quê?”, quis saber Gypsy Queen, que já estava tremendo de frio

— Por mais tecnologia que eles tenham, os humanos jamais serão páreo para a gente. Jamais! — afirmou o espanhol com convicção.

— Não devemos subestimar a R.A.M., Guerrilheiros, apesar das derrotas, eles estão aprendendo com seus próprios erros. Mais cedo ou mais tarde, vão acabar nos causando sérios problemas.

— Duvido — contestou Uriel, confiante.

— O futuro dirá — disse a cigana, com ares de fim de discussão —, mas agora, por favor, vamos embora daqui? Já estou quase congelando, e a “sorte” pode não durar para sempre. Vamos embora, agora!

— OK! OK! A mais velha tem sempre razão! — que eles fiquem lá embaixo recenseando os flocos de neve — sussurrou Uriel, fingindo estar com medo dos agentes.

— Tudo bem, chefinha. Você é quem manda, minha Rainha Cigana... — disse Desiderio, dando o braço à amiga. — A gente tem que respeitar quem já passou dos cinqüenta...

— Isso mesmo, afinal de contas, eu não sei se consigo tomar conta de duas crianças ao mesmo tempo... — disse ela, rindo. — Ei! — ela parou, de repente.

— Eu não tenho mais de cinqüenta, quem disse isso?!! — seu olhar era abrasador, agora.

Os Guerrilheiros apenas desconversaram e começaram a descer a montanha, numa velocidade bem maior do que a esperada, sem sequer olhar para trás.

Enfrentar um exército é fácil. Difícil mesmo seria enfrentar o furor da amiga Visionária.



EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ foi escrito por Simoes Lopes

Rebelião 66: Romano, Venerável

Porra, Romano, outro?

O homem encostado no balcão apenas fez sinal para que o barman enchesse o copo. Queria aconselhá-lo a tomar conta da sua vida, mas sua boca estava por demais dormente para articular qualquer palavra.

— Sério, cara — o barman era um senhor dos seus cinqüenta anos, magro e simpático. — As coisas acabam. As pessoas mudam. É a porra dessa vida. Lúcia nã.....

— Ca...la a boca, Bira! — conseguiu rosnar Romano. Sua mão tateou dentro do bolso, como se certificasse que algo ainda estava ali. — Porra! Um cara vai dormir... o mundo é perfeito! Uma esposa maravilhosa...

— Eu sei, Romano.

— ...e, de manhã, onde ela está? Evaporou! Sumiu! E o quê ela deixou?

— Eu sei, você já contou, um bilhete...

— É, a porra de um bilhete! — suas mãos tremeram, e ele deixou cair o copo, que se estilhaçou em mil pedaços no balcão. O barulho chamou a atenção de três homens sentados numa mesa pouco atrás. A forma como olhavam para uma moça que usava o orelhão do bar, em consonância com seus sorrisos e gestos, despertou os instintos de Romano, ao menos subconscientemente. O álcool, no qual o cérebro nadava, não permitia que ele fixasse o pensamento por mais de cinco segundos.

Bira apressou-se a limpar os cacos, enquanto o bêbado exigia outro copo. Parecia não se importar com a gravata e a blusa encharcadas de cachaça.

— Romano — o barman parou de passar o pano no balcão —, te conheço há quinze anos. Você não é essa merda. Você é um — nesse ponto sua voz tornou-se apenas um fio — policial.

— Isso, esse tipo de merda. Falou tudo — ele levantou bambeante. — Bota logo outra pinga aí!

Ele foi de tropeção em tropeção ao banheiro. A garota passou espremida por ele e logo atrás vieram os três homens, que trombaram nele sem pena. Jogado na parede, ele observou as lindas pernas brancas da moça saindo do bar, seguidas pelos sorridentes homens.

Foda-se. Minha bexiga vai estourar.

Entrou no banheiro pisando na beira da calça, que logo se molhou nas poças de urina. A perícia para abrir o zíper lhe faltava, então fez assim mesmo. Tudo que entra tem que sair. A sensação era boa. Quente.

O brilho da privada lhe lembrou outro brilho. As pernas brancas. Ainda estariam brancas? Ou pintadas de vermelho?

Porra!

Atravessou o bar empurrando as mesas. Como se fazia mesmo? Ah, o distintivo. O bar se abria para um beco escuro. Lá estava a jovem caída, rodeada pelos três. Um lhe segurava os braços esticados atrás da cabeça, enquanto outro deitava por cima dela, mantendo-a com as pernas abertas. O terceiro ria e apalpava os seios fartos já despidos.

Cadê a porra do distintivo?

Romano desistiu de apalpar os bolsos e pulou sobre o que realizava flexões em cima da garota. Os dois rolaram e colidiram com os sacos de lixo, espalhando o cheiro de peixe no ar. Em dois segundos o homem já havia se levantado, enquanto o bêbado mal conseguia se ajoelhar. Os três então começaram a chutá-lo, sem nem deixá-lo respirar. O corpo se contorcia ante os golpes, e um distintivo de metal e uma foto de uma mulher sorridente, abraçada com ele, caíram dos bolsos.

Ah, aí está você.

A surra não cede, mas se alguém com percepção um tantinho acima da média observasse a cena, veria o brilho prateado emanando repentinamente dos olhos de Romano, assim como as asas — magistrais, poderosas, surreais — que brotam de suas costas, provocando uma lufada de vento com sua abertura.

Dois latões de lixo ergueram-se no ar e projetaram-se — não há descrição melhor — sobre dois atacantes, lançando-os no chão. O outro interrompeu a torrente de chutes e arregalou os olhos para o homem já ensangüentado. Por um segundo ele percebeu a luz prata dos olhos dele, e todas as células do seu corpo pareceram estar ordenadas para um único fim: expulsar todo o obscuro conteúdo de seu estômago. Imponente, acometido de espasmos, ele ajoelhou-se e emporcalhou ainda mais o beco.

Logo seus dois companheiros o agarraram pelos ombros e saíram em disparada para as luzes da rua principal, sem nem olhar para trás. Da garota, então, nem cheiro; já há muito devia ter fugido.

Romano levantou-se escorado na parede, enquanto uma energia percorreu sua pele, cicatrizando os ferimentos e dissolvendo em seguida a cicatriz. Em menos de um minuto o único resquício da dura surra é o sangue em seu terno amarrotado. Ele guardou o distintivo e a foto, enlameada, no bolso.

Preciso de um drink, pensou, ao retornar ao bar.

No beco vazio, as sombras se comportaram de modo anormal: moveram-se, juntaram-se, dando forma a uma figura grotesca, uma figura grotesca de chifres.

Você não sabe o quanto.

ROMANO, VENERÁVEL foi escrito por Andre Esteves