Rosemary Melgar ligou a lanterna apontando o facho de luz azulada para a fenda entre as placas de pedra cobertas pelo tapete de grama molhada. Jovilio, seu parceiro, estava imerso no lago até a altura do umbigo, alheio ao frio de outono. Era madrugada, e o orvalho cobria o tapete florido naquele recanto pouco visitado do Jardim Shukkeien da cidade reconstruída de Hiroshima. Angelina Kure, alta e de silhueta esquálida, observava a insólita com um palmtop freneticamente carregado com novos dados, vigiando o perímetro e confiante na proteção de seu talismã africano de conchas marinhas. Embora não duvidasse dos poderes mágicos do talismã, Rosemary sabia que o principal feito de Angelina Kure fora subornar os guardas-noturnos, “convencendo-os” a fazer a ronda numa praça bem distante dali, e utilizar seus contatos dentro da administração municipal para conseguir a interdição da ponte estreita que era a única forma de se alcançar aquela minúscula clareira quase oculta pelo pomar de cerejeiras.
Quem olhasse para Rosemary, aquela porto-riquenha de quadris voluptuosos e os cabelos crespos tingidos de um amarelo forte quase alaranjado, com seu ar eternamente blasé, jamais imaginaria que ela era uma pesquisadora ávida por mistérios arcanos desde a pré-adolescência. Rosemary tinha cerca de 12 anos quando seu avô assassinado em circunstâncias misteriosas deixou-lhe uma vasta biblioteca de obras raras, basicamente focadas nas áreas mais sinistras do conhecimento humano. Salvando o legado de seu avô Casiodoro do esquecimento, a menina dedicou os melhores anos de sua insípida vida tanto ao resgate daquelas teorias tão menosprezadas, como à criação constante de novas linhas de estudo, ainda mais obscuras. Fluente em hebraico, aramaico, grego bizantino, eslavo eclesiástico e nos dialetos regionais menos conhecidos do idioma arábico, a obstinada moça de olhos negros ainda arranjaria tempo para acumular graduações incompletas em Medicina, História, Psicologia e Arqueologia. Jamais quis diploma algum, e se não concluiu nenhum dos cursos, foi porque as informações absorvidas já eram o suficiente para seus objetivos. O casamento precoce com um oficial da Marinha de família abastada só serviu para conseguir o sustento necessário para prosseguir em suas linhas de pesquisa secretas. Entediada por casamento de conveniência, colecionou muitos amantes, enquanto gastava despudoramente a fortuna do esposo em viagens e presentes cada vez mais valiosos. Depois de um período relativamente muito curto de uma vida matrimonial morna e sem filhos, o marido de Rosemary - prestes a ser promovido a tenente-coronel - morreu vítima de um ataque terrorista no Iêmen, deixando sua jovem viúva inteiramente livre, e obscenamente rica.
Casiodoro Capistrano Melgar y Lluci, o nome completo do avô dela, fora um ex-bispo excomungado pelo Vaticano, e terminara seus dias como um anônimo funcionário aposentado de um cemitério público num vilarejo costeiro em Porto Rico. Seu único legado era uma compilação de estudos tortuosamente confusos e contraditórios sobre o que chamava de Heptagrama de Haniel, um signo cabalístico que cria ser um símbolo primordial que remontaria a milênios e milênios anteriores à existência do povo hebreu e de seus antepassados semíticos mais remotos. Aquele símbolo, escrevera Casiodoro, “era basicamente o mesmo que a seita maldita dos bogomilos da Bósnia chamava de Selo do Anjo Verde, na forma de uma estrela de sete pontas. Compilando uma série de tradições difusas, Casiodoro asseverava que a dita figura era conhecida pelo alquimista helvético Gruentallius como heptaculum smaragdinum, correspondendo à mesma Flor de Sete Pétalas dos teodoritas prussianos , um ramo renegado da franco-maçonaria, e à Cruz Sétupla pintada no teto da capela em ruínas dedicada a Santo Onofre, na Galícia polonesa, e reproduzida com perfeição nos glifos misteriosos de uma estela sem nome encontrada em 1902 por exploradores belgas nas profundezas do Congo.
O fascínio pelo sobrenatural fizera de Rosemary um verdadeiro ímã para temas heréticos, mas a principal tese de seu avô ficaria reduzida a notas de rodapé esporádicas em seus cadernos de anotações se não fosse a descoberta esterrecedora do filólogo galego Jovilio Mendoça ao traduzir as inscrições tirrenas em uma catacumba decorada com a Rosa de Fufluns, outro nome para a mesma misteriosa figura de sete pontas. Fufluns, o nome etrusco de Baco, é citado nas inscrições como "Pai e Mãe das Flores", e esta mesma frase estava reproduzida em um papiro copta do século III, mas associada a outra divindade, o Arcanjo Haniel. Movidos por interesses comuns, Rosemary Melgar e Jovilio tornaram-se colaboradores e amantes, e em sua sede por mais descobertas, viajaram ao redor do planeta, participando de forma volúvel e dissimulada das mais diversas sociedades secretas, desprovidos de qualquer escrúpulo que os impedisse de roubar até mesmo matar quando necessário. Enquanto participavam como espiões de uma seita orgiástica entranhada no baixo escalão da burocracia soviética, Rosemary foi a primeira a entender corretamente o símbolo marcado no fundo seco de um poço, ao redor do qual florescia um exuberante jardim de rosas de proporções anormalmente descomunais.
Quando essa mesma região veio a ser contaminada pelo acidente na usina nuclear de Tchernobyl, com toda área vizinha ao poço demolida e soterrada sob toneladas de concreto metal, o casal de ocultista estavam bem longe, aproveitando seus milhões de dólares com exibições de futilidade explícita nas mansões mais luxuosas de Miami, quando Jovilio terminara consumindo boa parte da fortuna da amante para impressionar alguns de seus mais recentes amigos de ocasião, pseudo-maçons pertencentes a uma minguante comunidade de alpinistas sociais frustrados. Foi justamente numa destas festas regadas a cocaína e vodka, em uma mansão à beira-mar em Boca Raton, que vieram a conhecer a talentosa Angelina Kure, uma professora de Linguística brasileira, que nas horas vagas dedicava-se a comparar mitologias e textos sacros de povos extintos.
Angelina, na época, frequentava as turbulentas festinhas na casa do político de raízes hispânicas Bonny Cabalete, cuja devassidão era escondida dos eleitores por meio de uma teia de influentes amigos na mídia local, que transformaram aquele corrupto e mentiroso deslavado em um dos ícones venerados da moralidade mais puritana. Sua meia-irmã, a paranóica e deprimida atriz bissexual Gypsie Cabalete, na época estava apaixonada pela exuberante Rosemary, que manipulava a carência afetiva da artista para amealhar contatos importantes na high society norte-americana, a fim de obter informantes poderosos em algumas novas seitas que teriam a chave para reabilitar o prestígio de seu avô. A aproximação com a nissei Angelina foi então mais do que natural, e assim que esta combinou sua poderosa inteligência com os esforços da dupla Rosemary e Jovilio, as pesquisas sobre o enigmático Heptagrama avançaram com grande progresso. Foi Angelina que trouxe a informação essencial de que o símbolo havia sido fotografado em um trecho aberto pelas obras de canalização em um jardim de em Hiroshima.
Jovilio ficou entusiasmado o bastante para partir para o Japão, e comentou com Rosemary sua contrariedade com fato de que uma galeria subterrânea relativamente rasa tinha sido capaz de resistir à explosão atômica que devastara por completo a mesma área há mais de cinquenta anos. Rosemary não seguiu de imediato — tinha assuntos financeiros a resolver em Nova Iorque — e desconfiava que o galego e a brasileira estavam escondendo um relacionamento de natureza mais sexual que intelectual. Não que ela se importasse: todos os seus relacionamentos afetivos não passavam de distrações passageiras que não lhe traziam o mesmo prazer que a busca pelo conhecimento do Oculto representava.
O homem saiu da água lamacenta carregando uma máquina fotográfica compacta apropriada a fotos subaquáticas. Assim que conferiu a imagem reproduzida no visor largo de cristal líquido, ajustando o brilho e contraste para tornar as linhas apagadas mais nítidas, soltou sua risada sincopada caractéristica.
Não restava dúvida de que aquele era o mesmo heptaculum, a mesma flor de sete pétalas, o mesmo símbolo talhado na capela de Santo Onofre. As sete pontas representavam o número sagrado associado ao Arcanjo Haniel, o protetor da Vegetação, segundo um versículo do herético Liber Joannis Sapientiae, e suas asas eram “verdes como a folha da tamareira", e seu hálito divino "preenchia os campos com o aroma candente das rosas silvestres", conforme escrevera o místico medieval Salomon Kordoba. Rosemary não tinha dúvidas que a presença de um símbolo difundido em locais e épocas tão díspares não se explicava por uma simples transmissão cultural ou por hipótese de inconsciente coletivo, tampouco se devia a uma coincidência fortuita em escala global. Salomon e seus escassos seguidores ensinaram que o Arcanjo Haniel passeara pelo mundo deixando sua marca em diversos locais sagrados, mas a natureza fragmentária do que restou de seus textos não deixava compreender mais nada.
O trio de ocultista continuava assim mergulhado no Mistério. Assim que deixaram Hiroshima, e recolheram-se provisoriamente em um luxuoso quartode hotel em Tóquio, Jovilio Mendoça divagou palpitando que como o número sete representa Haniel, deveriam haver sete locais sagrados ao redor do mundo marcados pelo heptagrama. Sete também eram as plantas sagradas, as sete primeiras citadas no Gênesis: a figueira, o espinheiro, o cardo, o trigo, o cipreste, a oliveira e a videira. Mendoça completou seu raciocínio afirmando que os seguidores do Arcanjo Verde zelavam pelos sete pontos místicos espalhados pelo mundo. Os arquitetos desconhecidos na capela polonesa de Santo Onofre com certeza estavam vinculados aos hereges que reuniam-se no poço ucraniano, cujo símbolo era uma duplicata perfeita do signo japonês. Acreditava Mendoça que grandes poderes zelavam pelos sete locais, mas que não era capaz de precisar quem eram os tais seguidores.
Rosemary deixou que seu namorado terminasse de falar, e esperou mais um pouco para que ele terminasse de dar sua desagradável risada. Não contestou as hipóteses dele, mas acrescentou alguns elementos novos à complexa equação ainda inconclusa.
“O mesmo símbolo apareceu em uma clareira no sul do Brasil. Meu avô esteve por lá nos anos cinquenta, e fez uma série de desenhos dele em um caderno. O local hoje jaz sob as águas de uma gigantesca hidrelétrica”, disse Rosemary, sob os ouvidos atentos da dupla. Angelina confirmou que tratava-se a usina hidrelétrica de Itaipu, na divisa entre Brasil e Paraguai. Entre um trago e outro de saquê, a brasileira soltou um gritinho de euforia, e parabenizou a porto-riquenha pelas informações. “Isto só confirma a virtual ubiquidade do signo do heptagrama.
Rosemary não demonstrava nenhuma alegria ou satisfação. A preocupação estava estampada em seus olhos cansados. “Prestem atenção num detalhe que não está sendo levado em conta”, disse ela, gesticulando como se desenhasse algo no ar. “O acidente nuclear na Ucrânia, a explosão em Hiroshima, o alagamento de Itaipu: não percebem o padrão?”, ela deixou o corpo cair no sofá, num gesto que combinava raiva e cansaço. Concluiu que se existia uma força agindo através dos heptagrama, que atribuímos a estes “servos” arcangélicos, existia outro poder misterioso em atuação, interferindo no sentido contrário, para destruir ou tornar aqueles nódulos de energia mística inacessíveis.
“Estamos no meio de uma guerra, de proporções cósmicas”, berrou Rosemary para uma Angelina já inteiramente embriagada de aguardente de arroz, e para um Jovilio absorto em cálculos numerológicos envolvendo o nome Haniel, e pensando nas vantagens que poderia obter com a manipulação destas informações.
Rosemary percebeu então que a partir daquele momento, seu caminho afastava-se cada vez mais dos de seus dois parceiros. Enquanto eles pensavam apenas numa simples aquisição de mais conhecimentos e recursos arcanos, ela despertara para uma nova realidade inteiramente assustadora. Via-se como um simples peão indefeso num xadrez de proporções cósmicas, onde dois exércitos travavam uma guerra eterna.
Uma guerra invisível, pois ela não sabia quem estava lutando.
Não sabia pelo que lutavam, e consequentemente não sabia qual lado apoiar, se é que deveria apoiar um deles.
Naquela noite, a neta de Casiodoro foi dormir sob o efeito de calmantes, pois seus olhos, ávidos por enxergar a face mais sombria do Mundo, haviam visto demais. Ela sonhou com anjos verdes e flores de sete pétalas. Sonhou que estava trancada em uma caverna, e que formas horrendas desenhavam-se nas sombras das paredes, mas ela não sabia de onde eram projetadas. Uma voz taciturna dizia que o Heptáculo de Haniel iria protegê-la, enquanto outra gritava que o símbolo traria a sua morte.
Na manhã seguinte, quando Jovilio e Angelina acordaram, encontraram Rosemary Melgar morta na cama, os olhos vidrados e vazios, a pele gelada, o coração em silêncio. No lençol ela deixara sua última mensagem: um heptagrama rudimentar, riscado no pano com as unhas afiadas de uma mulher que morreu sabendo demais.