quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Rebelião 23: Um Conto de Desespero


A cerimônia já havia terminado. Os corpos de animais sacrificados, o sangue espalhado por todo o chão e as velas negras acesas pelos cantos do recinto serviam de testemunha do fato. Você acorda e não acredita muito no que vê, sua descrença em rituais e coisas do tipo faz com que sua mente rejeite tudo isso. Você percebe que há algo estranho dentro de si... não, não... é mais precisamente na sua mente. Isso! É na sua mente. Sua cabeça gira e a visão ainda meio turva não o deixa perceber muitos detalhes; porém você sabia dos animais, do sangue e das velas. Percebe também vultos indistintos andando pelo local, que mesmo estando um pouco tonto você repara ser um lugar grande.

Então, como um raio que passou ligeiro por sua cabeça entorpecida a verdade lhe atinge.

Dopado. Você está dopado.

A revelação serve para lhe acordar um pouco e fazer uma débil tentativa de se levantar. Apesar do fracasso, foi possível perceber que era uma espécie de cama de pedra a base onde seu corpo repousava.

— Cláudio, tudo bem com você?

Mesmo sob o efeito de drogas não é difícil perceber a suavidade da voz de Adriana e reconhecer a voz da amiga. Também é possível sentir mãos suaves que o amparam e lhe ajudam a se erguer. Contudo, outro par de mãos — mais fortes e ásperas — surgem para segurá-lo assim que ameaça uma queda. Novamente a voz de Adriana:

— Desculpe por fazer você passar por isso, querido, mas foi necessário para evitar algum susto seu.

Você tenta perguntar “Susto? Que susto?”, mas sua voz não responde ao comando que vem de seu cérebro confuso e desiste. As mãos lhe carregam pelo lugar, seus pés arrastando no chão frio e áspero de pedra enquanto você acha divertido ficar descalço e se pergunta pelos seus tênis.

Deixam-no em uma cadeira alta, com as costas grandes e longos braços nos quais você tenta se apoiar... e fracassa. Sua queda é interrompida por várias mãos que o recolocam na cadeira. Alguém diz algo como "ele vai cair, é melhor amarrá-lo" e logo depois isso acontece: correias são passadas em seus pulsos e tornozelos, cintas seguram sua cintura e pescoço e você se sente agradecido por ter algo que o impeça de desabar.

— Desculpe de novo querido, mas não queremos que se machuque.

A voz de Adriana fica ainda mais linda em meio ao seu torpor ao mesmo tempo em que uma explosão de alegria irrompe dentro de seu peito. Ela o chamou de "querido", isso significava que após três meses de tentativas ela iria finalmente dizer sim. Por um momento uma visão dela passa na sua frente: loira, linda, olhos azuis e profundos como o mar e boca carnuda de sorriso de criança; um corpo escultural que deixava a todos na escola enlouquecidos. E ela iria ser só sua.

A visão continua com ela dançando suavemente a sua frente. Veste uma túnica negra semi-transparente onde se pode perceber as curvas provocantes que ela carrega consigo. Surge um homem, também de túnica negra, que começa a dançar com ela. E então surge outro... e outro... e outro. Logo, ela dança com vários homens diferentes. E de repente não é mais dança, é algo obsceno e inadmissível. "Não" — você consegue raciocinar — "Não a Adriana”. Todos na turma sabem que ela não faz essas coisas. É a maior 'jogo duro' do colégio".

E por não aceitar, sua mente desliga a visão.

Depois de algum tempo, todos começam a entoar uma canção estranha, ligeiramente assustadora, lembrando uma fita chata a que seu pai o havia obrigado a assistir Carmina Burana ou algo assim. A cantiga cresce e enche o recinto feito de paredes de pedra. Engraçado, mesmo em torpor você sabe que as paredes são de pedra. A canção deixa de ser ligeiramente assustadora para se tornar apavorante de verdade.

Neste ponto é que você percebe que seus sentidos estão realmente fora do normal. Afinal, aquilo que apareceu a sua frente não pode ser realidade. Coisas assim não existiam, só em filmes.

Tem um Demônio parado à sua frente.

Esta criatura que não existe deve ter uns três metros, a pele fortemente avermelhada não disfarça o fato de aparentar ser feita de couro, os dois enormes chifres saem de sua testa recurvando-se para trás quase não chamam a atenção quando você nota os olhos amarelados de gato neles. Você começa a rir quando se lembra do filme "A lenda" e seu ato passa a ser acompanhado por todos os presentes. Sua risada só acaba quando o Demônio ri junto.

Mas o susto foi apenas passageiro. Você logo se recompõe e começa a achar que o pessoal colocou algo na sua bebida ou comida e que isso está provocando estas alucinações. Que seja! O negócio é se divertir com a viagem.

— Iludido, preste atenção! — o Demônio fala. E você ri: a voz dele lembra a de Darth Vader...

— Eu sou aquele que reinará neste mundo após o Armageddon, carrego o dom de tirar toda a esperança que possa existir e apenas aqueles que servem a mim estarão livres de meu terrível toque. Meu nome é temido em toda a criação, pois eu carrego a força capaz de tirar a força de alguém. Meu nome é impronunciável no seu mundo, mas aqui eu tenho outra denominação e meu toque já foi sentido por todo e qualquer iludido que pisou neste resto de mundo. Eu sou Desespero! — ele se agacha e aproxima o enorme rosto de você, observando-o, o fedor é inacreditável — Sua presença aqui, frente a uma de minhas muitas formas, tem um objetivo. Contudo, você deve antes saber a verdade...

Você tenta se posicionar melhor para ouvir o que ele tem a dizer — aliviado por perceber que o torpor está terminando — achando agora que as amarras são um pouco incômodas. Concentrando-se, dentro do possível, tenta afrouxá-las e descobre decepcionado que não tem controle da ilusão.

— Ocorreu uma rebelião no Shamaim, relatada em vários de seus livros religiosos na forma em que cada um acredita ser a verdadeira. Esta não nos interessa. Todavia, iludido, ocorreu uma segunda rebelião — desta vez no Sheol. Vários Anjos caídos resolveram tomar o poder nas fossas abissais. Os Anjos são divididos em classes, sabia, iludido?

Você balbucia uma resposta negativa, jamais se preocupou com Anjos antes e não pretendia começar agora. Só gostaria que a criatura parasse de lhe chamar de "iludido".

— Sim... — ela sibila — ... são. E cada uma delas teve seus próprios motivos para participar da Segunda Rebelião, desde os mais "nobres" até os mais "impuros". Mas, é claro, estavam à beira da derrota quando o nosso temeroso senhor, Sathanael, percebeu neles um boa forma de se livrar do julgo do tirano celeste e enviou uma parcela deles para Adamah!

Você se prepara para perguntar o que é Adamah, mas ele responde que é "o mundo ao qual vocês batizam de Terra" — como se estivesse lendo seu pensamento — e você adora isso.

— Por um tempo eles começaram a andar por este mundo infeliz, perdidos e sem objetivos. Aos poucos isso mudou; uns retomaram os objetivos anteriores, outros descobriram novos e alguns perceberam o óbvio: que não importa o lado vencedor, eles seriam rechaçados de qualquer jeito. Por isso, criaram filhos. Estes seres, híbridos de humanos com Anjos caídos, seriam usados por seus Genitores para que seus objetivos fossem atingidos.

Você percebe um movimento estranho na boca do Demônio e, cada vez mais apreensivo com sua "visão", nota que aquilo está sorrindo!

— O que eles não sabem é que, na verdade, estão seguindo os desígnios do grande Sathanael. Ao criarem mais de seus filhos — os assim chamados Nefilim — eles nos fornecessem matéria-prima para a criação dos maravilhosos diávolos. Eles são os nossos soldados perfeitos: cruéis, enlouquecidos, sem vontade própria alguma. É claro que este não é o único objetivo do nosso monstruoso líder, tudo isto na verdade levará a uma vitória nossa no Armageddon... e meu domínio neste mundo!

Seu torpor está acabando e você nota, um pouco apreensivo, que a pretensa ilusão só está ficando cada vez mais forte.

— É claro que os malditos bajuladores do manipulador da Criação imediatamente tentaram tomar de nós o que nos é por direito, mais uma vez. Eles criaram os seus malditos paradísios — imbecis sem mente e livre-arbítrio — para nos combater e ainda dizem ser do odiado líder deles este plano maravilhoso! Malditos sejam!

Você nota que ninguém mais falou nada desde a chegada do Demônio, porém uma sensação de aprovação pelas suas palavras correu o local.

— Contudo será nossa a vitória. E todos aqueles que não tiverem fé serão punidos.

Ocorre um momento de silêncio enquanto a coisa se mexe de um lado para o outro como um animal enjaulado. Aquilo decididamente o está apavorando e você já acha que é muito ruim ficar preso na cadeira. O suor frio começa a brotar em seu corpo e...

Espere! Suor frio? Este tipo de sensação não é comum em visões, ou pelo menos você nunca tinha ouvido falar nisso. Até que um segundo raio atinge sua cabeça esta noite.

Você não está mais dopado.

E isto significam outras coisas também. Aquele lugar é real, os bichos sacrificados são reais, as velas negras são reais, as pessoas vestidas de negro são reais.

Desespero é real!

A consciência disso o deixa em total pânico. Você começa a chorar e se debater enlouquecidamente, pedindo para sair dali. No fundo, compreendendo que agora sabe demais...

Sua atitude provoca um verdadeiro frenesi nos presentes, todos reagindo num cântico que formou um coro de cacofonia impressionante. O Demônio levanta a mão e todos se silênciam. Ele fala:

— Para manter a minha existência física neste mundo, preciso seguir as regras dele. E entre elas existem os sacrifícios.

Alegre-se, meu jovem...- ele fixa os seus olhos de lagarto (não eram de gato?) em você, que de tão hipnotizado só percebe que está gritando pelo horror que viu dentro deles quando a criatura fala novamente — ...você foi o escolhido!
Você começa a chorar e soluçar como uma criança, gemendo baixinho para que o soltem. Promete que não vai falar nada do que viu ali para ninguém, mas fica sem resposta. Adriana toma a sua frente com uma adaga cheia de inscrições e começa.

****

As últimas 3 horas de sua vida foram, sem dúvida, as piores. Sentiu dores e viu horrores que jamais imaginou na sua existência que pudessem existir. Quando Adriana terminou a primeira hora de sofrimento, fazendo as inscrições rituais no seu peito, você tentou balbuciar algo. Ela aproximou o ouvido de você, que conseguiu balbuciar uma frase:

— Eu sempre te amei! De verdade...

Ela recuou chocada e não participou mais do ritual. Quando você foi pendurado de cabeça para baixo acima do altar profano e lhe deram o golpe final, a última coisa que você viu foi uma lágrima caindo dos olhos dela.

Mas, enquanto morria, uma voz terrível ecoou dentro de sua mente dizendo: "Ela se arrependeu, o que significa que perdeu a utilidade. Eu agradeço, jovem tolo, pelo fornecimento de nova matéria-prima para outros sacrifícios."

E você partiu, para algo que certamente não é o descanso final.




UM CONTO DE DESESPERO foi escrito por Danilo Faria

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Rebelião 22: Antípodas


O sol brilhava forte. Nas árvores frondosas, macacos de pelagem amarela pulavam pelos galhos, enquanto enormes morcegos dormiam dependurados de cabeça para baixo. Um búfalo ruminava preguiçosamente na relva alagada. Uma grande cabeça de pedra, quase inteiramente coberta pela vegetação, parecia vigiar a entrada de uma gruta. Lá dentro, o corpo miúdo de Gauri Ingavat banhava-se ao brilho pálido de uma pequena fogueira. Sentada em posição de lótus, a pequena tailandesa entoava um misterioso cântico, enquanto derramava o conteúdo de uma pequena tigela de barro no fogo. À medida que o líquido pingava e fervia, fazendo um suave chiado, o fogo alterava sua cor, passando do amarelo ao verde, e deste ao verde-azulado escuro. Uma fumaça escura embaçava os óculos de aro fino da mulher, que olhava fixamente para o teto. As pupilas se dilatavam. Uma fenda no teto da gruta projetava um fino facho de luz que refletia em suas lentes. Os olhos brilhavam agora com o mesmo matiz das chamas.

* * *

Os picos nevados da cordilheira dos Andes dominavam a paisagem, iluminada pelo brilho da Lua Cheia. O silêncio era absoluto. A vários quilômetros abaixo da linha da neve, uma fileira de arbustos espinhosos de folhas negras crescia na borda de um penhasco. Rodeada pelos arbustos, erguia-se uma solitária árvore de casca ressecada. Os tons cinzentos do cenário contrastavam com o padrão multicolorido de um poncho. Coberta pelo poncho havia uma índia, sentada no chão desconfortável, bem embaixo da árvore morta. Os olhos de Soledad Ucayali estavam brancos, a pele morena castigada pelo ar frio que soprava das montanhas. Estava lá, imóvel, já há bastante tempo – horas? dias? - os olhos vidrados mirando o abismo. Dentre as dobras do poncho, puxou um copo cheio de um líquido ralo vermelho-escuro. Bebeu de um gole só o chá amargo. A respiração da peruana se acelerava cada vez mais, seu coração pulsando com força. No fundo do copo se depositavam sementes amarelas. Mastigou uma a uma. Olhou fixamente para o abismo.

* * *

Gauri estava agora flutuando num mar revolto e escuro. Pensou, por um breve momento, estar vendo sua amiga Soledad Ucayali, debatendo-se junto a ela. Torvelinhos muito fortes a repeliam. (Uma rápida imagem da fenda na caverna) Estava agora no alto de uma indescritível torre de marfim, como se vigiasse algo. Além do mar revolto, erguia-se a perder de vistas um compacto bosque de arbustos negros. (Uma rápida imagem da fenda na caverna) Sua visão projetava-se agora para além do mar, e agora podia ver a tenebrosa praia de perto, onde uma multidão permanecia imóvel, entoando um cântico monótono, como se tentassem gritar algo a ela. Tentou, mas não conseguiu descobrir quem eram eles. (Uma rápida imagem da fenda na caverna)

* * *

Soledad também se viu à deriva num mar revolto de águas escuras. Por um momento, teve a nítida impressão de avistar sua amiga Gauri Ingavat. Sentia correntezas muito fortes puxando-a com violência. (Um rápido relance do abismo) Estava agora em pé, numa espécie de praia, coberta de espinheiros de cor negra. Além do mar revolto, além do imenso mar de trevas, uma enorme torre branca projetava-se ao fundo, rumo ao céu negro. (Um rápido relance do abismo) Podia sentir seus sentidos ultrapassando o oceano, e ganhando uma visão de perto da majestosa construção. Um multidão se postava junto às muradas do colossal edifício. Ela podia sentir que gritavam algo para ela, mas não via quem eram. (um rápido relance do abismo)

* * *

As imagens da caverna e das montanhas se fundiam gradualmente numa só. A selva ensolarada da Tailândia e a paisagem noturna dos Andes se mesclavam como um enorme caleidoscópio de luzes e sombras. As duas se viram de novo à deriva nas águas tenebrosas. Suas mãos quase se tocaram. Então o manto do esquecimento cobriu tudo.

* * *

Como se um poderoso jato de luz cortasse a paisagem ao meio, Gauri via agora o céu escuro começando a clarear, à medida que sentia-se cada vez mais leve. Supreendeu-se sobrevoando em alta velocidade um imenso oceano de águas verdes e fosforescentes. (Uma rápida imagem da fenda na caverna). As ondas tranqüilas no imenso mar luminoso banhavam um arquipélago de ilhas que reluziam como esmeraldas. Um tapete de flores translúcidas cobria o terreno, com uma suave melodia emanando de cada pétala. (Mais uma rápida imagem da fenda na caverna). À sua frente agora estava uma mulher erguida, com os braços esticados junto ao corpo. A cabeça era inteiramente raspada, com símbolos tatuados nas têmporas e os olhos fechados. Uma túnica branca brilhante e cobria-lhe o corpo. Era um Paradisio, um nefilim que ascendeu. (Uma rápida imagem da fenda na caverna) A mulher abre os olhos. Gauri grita com o que vê (Outra rápida imagem da fenda na caverna).

* * *

Soledad sentia seu corpo cada vez mais pesado. As águas turvas ficavam cada vez mais espessas e viscosas. Suas forças pareciam sumir, e ela afundava sem parar. (Um rápido relance do abismo). Um aterrador cenário inteiramente novo se descortinava. Caudalosos rios de lava corriam por entre massas disformes de rocha negra. Ventos carregados de odores sulfurosos sibilavam com violência ao redor de uma enorme palácio em forma de catedral. Vitrais cor de sangue reproduziam com uma nitidez horripilante figuras demoníacas. (Mais um rápido relance do abismo) Ela se encontra agora numa passagem estreita. Um cheiro fétido e animalesco emana de uma gaiola, onde uma mulher encontra-se acocorada, de olhos fechados. Seus dentes são amarelos, a língua pende para fora. Os cabelos são sujos e chegam até o chão. Algumas das unhas são grandes como garras, outras estão roídas. O corpo nu está coberto de cicatrizes e placas de pus e sangue coagulado. Correntes de ferro prendem os tornozelos. Assim é a triste imagem de um Diavolo, um nefilim que foi tragado por seu lado infernal. (Um rápido relance do abismo). A criatura sub-humana abre os olhos. Soledad grita. (Outro rápido relance do abismo).

* * *

Gauri está agora olhando para si mesma. Sua contraparte celeste lhe diz: - NÓS SOMOS UM SÓ. LIBERTA-TE DA MATÉRIA. NÓS ESTAREMOS À TUA ESPERA. Só agora Gauri pode visualizar o panorama inteiro. Ao lado da mulher celeste, enfileiram-se muitas outras. Em Todas ela só consegue ver o seu próprio rosto. Começam a entoar em uníssono um cântico de vitória. Estão dispostas em formações concêntricas ao redor de uma magnífica pirâmide de luz. Ela sente uma vontade incontrolável de juntar-se ao coro. Mas não consegue emitir nenhum som.

* * *

Soledad olha para o monstro na jaula e reconhece a sua própria imagem, como se refletida por um espelho maligno. A criatura nada diz, apenas grita. O barulho faz o seu corpo tremer, e ela agora sente todas suas células transbordando de ódio, medo e desejo. Então olha para baixo e vê: gaiolas e mais gaiolas, incrustadas num paredão de pedra. Em todas as jaulas ela vê cópias de si mesma, todas agora reunidas num mesmo alarido frenético. Ela sente a gritaria como uma espécie de convite, sente sua mente desaparecendo, capitulando. Quer gritar também, se juntar à algazarra demoníaca, mas não consegue.

* * *

Ambos os pesadelos se desfazem ao mesmo tempo. Gauri desperta em sua caverna. O raio de luz agora brilha sobre as brasas restantes da fogueira. Soledad seve deitada no solo, embaixo da mesma árvore de antes. Ambas então compreendem porque de seu mestre proibí-las de tentar o ritual. A sensação de querer se juntar aos Paradisi em sua canção de guerra vai perseguir a pequena Guardiã tailandesa pelo resto da vida, enquanto que a algazarra infernal dos Diavoli ainda continuava ressoando nos ouvidos da Guardiã peruana.

Em dois pontos opostos do planeta, uma misteriosa simetria do destino fez com que duas Guardiãs tentassem desvendar os mistérios de sua existência, partindo em direções diametralmente opostas. Na sua busca pelos extremos, compreenderam que lugares tão longínquos como o Céu e o Inferno estavam na verdade bem próximos, escondidos dentro delas.



ANTÍPODAS foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 21: Temperança


Barbudo estava sentado, contemplando as estrelas, quando tudo começou. Ele se sentia triste e melancólico, porque as luzes da cidade ofuscavam o céu. No interior, a colcha escura do firmamento ficava salpicada de pequenos furos luminosos; aqui, uma claridade baça dava ao céu noturno um tom doentio e fantasmagórico. Foi quando ele a viu — era uma menina magra e suja, com olhos brilhantes, intensos. Ela sorri, mostrando dentes amarelos, e baixa uma das alças de seu top, deixando um seio à mostra. É só um pedaço de carne que mal cobre seus ossos, mas por algum motivo isso o deixa muito excitado. Mas alguma coisa está errada, terrivelmente errada. Ela passa uma língua escura sobre os dentes, como se isso devesse ser algo bem sensual. Aí Barbudo entende: feromônios. Seu faro sensível conseguiu captar conscientemente o que a maioria dos homens de barro só percebem a nível subconsciente, e por isso acabam caindo na armadilha — estes não são feromônios humanos. Esta é uma loba em pele de cordeiro. Ela caminha na sua direção, gingando seus quadris ossudos, quando ele se levanta em guarda, totalmente em prontidão. A coisa pára, com um ricto de ódio no olhar. De repente, sua pele começa a esticar como borracha, até que se rompe em alguns pontos, deixando tufos grossos e hirsutos de pêlos aparecerem. Antes que o nefilim possa reagir, o Versipellis ataca, o arremessando a dois metros de distância — suas costas batem num poste baixo de metal, o fazendo envergar. A lâmpada cai no chão com um estouro barulhento, e nas choupanas próximas os mortais apagam as luzes. Provavelmente estarão se escondendo em baixo de suas camas — o bom senso lhes diz que é apenas mais um tiroteio entre traficantes, mas seu instinto sussurra em seus ouvidos que são titãs, deuses monstruosos se enfrentando. A mulher-coisa começou uma risada estridente como o ganido de uma hiena, mas parou quando viu Barbudo se levantar, as costelas quebradas voltando para o lugar, os olhos brilhando freneticamente.

Existe em seu peito uma cavidade escuro e rija, do tamanho de um punho, dentro da qual mora algo — é a coisa mais próxima de Deus que Barbudo conhece. Ela é como as tempestades que derrubam as árvores e limpam o ar; é como a loba que luta até a morte por seus filhotes, ou como o tigre saltando sobre o fogo. É lava e tremor, e corre por suas veias, vitalizando seu corpo, tornando-o forte. O miserável homem cresce, desdobra-se: seus músculos estalam por baixo de seu couro lustroso e brilhante, enquanto chifres de alvíssimo marfim brotam de sua cabeça, curvilíneos e pontiagudos. Seus pés rompem os sapatos rotos, e são cascos fortes e pesados. Uma crina negra desce de sua cabeça e une-se à sua barba lanzuda. A besta rosna incrédula — a fera ergue-se e a encara. Mais uma vez, o Versipellis investe contra Barbudo, mas encontra seus chifres ao invés de seu peito. Num movimento rápido a besta é arremessada para cima, dois furos profundos, um em sua garganta, outro em seu ombro. Antes que ela toque o chão, a fera invoca Tenacidade, centuplicando sua já prodigiosa força. Quando ela aterriza, rachando o asfalto com seu peso medonho, a fera já está sobre ela, com punhos rijos como bolas de demolição esmagando seus ossos. Seus cascos arrancam pele e fraturam membros — a fera espuma e ruge, castigando a besta antinatural. Mais uma investida e seus chifres a arremessam a meio quarteirão de distância. Ele observa sua oponente descrever um arco longo e demorado contra o céu, e quando ouve o baque surdo de sua queda, salta com os punhos cerrados. A coisa tentava levantar-se quando ele a atingiu, cascos e punhos de uma só vez, e uma gofada de sangue quente e viscoso manchando seu pêlo lustroso. A besta se contorce, como se algo estivesse saindo de dentro dela, até que um par de mãos abre caminho através de seu peito. A menina magra e suja se arrasta, alquebrada e ferida até a quase morte, para fora de seu corpo sobrenatural.

Tão rápida quanto surgiu, a fúria de Barbudo se vai, porque assim são as coisas na natureza — não há excessos. Ela veio quando era necessária, e partiu quando não precisava mais dela.

"E… eu era… um monstro tão bonito… tão feroz…" — sua voz é quase um sibilo chiado através de uma glote partida.

"Não havia beleza. Ferocidade não é crueldade. Você estava doente". O olhar da moça pareceu então muito triste e cansado, como se finalmente tivesse se dado conta de que adorava a uma coisa falsa e suja. Contemplando aqueles olhos (baços como o céu urbano) Barbudo entendeu o que os Acólitos falam da humanidade. A brevidade de suas vidas cheias de dúvidas, o terrível sentimento de solidão, de abandono, as perguntas lançadas contra um cadáver de louça pendente num madeiro, e as respostas que nunca vinham... tantas oportunidades de errar, e tantas pedras no caminho. Ele sentiu uma profunda piedade por aquela raça de perdidos, com todos os motivos do mundo para cair.

"Há muito... tempo... não articulo... palavras..."

"Gostaria que eu a tirasse dessa situação?"

"Não... não. Deixe-me... aproveitar a claridade... enquanto... as sombras..."

Ela nunca chegou a terminar esta frase, porque num gorgolejo de sangue e dor ela sufocou suas últimas palavras. Uma coisa escura como breu escorreu de seu corpo para as sombras. Barbudo sabia o que era — os Visionários e Precursores os chamavam Damnati, danados, feras abissais que tomam os vivos. Numa gargalhada rouquenha o monstro voltou para o inferno, e Barbudo sabia que não havia ido só.

Os Veneráveis dizem que algo dos humanos sobrevive à morte de seu corpo, e esse algo é imortal de uma maneira que mesmo os nefilim não são. Barbudo não sabia se era esse algo que o mastim infernal tinha arrastado consigo para o Sheol, mas enfim, não importava. Se isso era realmente imortal, mesmo os piores tormentos do Tártaro seriam apenas um momento, um pequeno instante, numa existência que se estenderia ao infinito. Esse pensamento é acolhido por sua mente com grande conforto — por baixo de toda dor e tristeza, toda alegria, paixão e júbilo, a natureza se mantinha em paz.

Tudo estava bem.

Barbudo olha novamente para as ruas, e lhe ocorre que realmente a Natureza é muito sábia. Talvez os humanos não tenham feito mais que trazer as estrelas, que estavam tão distantes, para mais perto, onde poderiam ser contempladas. Sujo com o sangue de uma abominação, ele se senta no topo de uma comunidade de miseráveis e esfomeados, e observa o lençol de luzes que se estende por toda cidade, coriscando suavemente como as estrelas escondidas no céu.

É tudo tão lindo, tão empolgante.

No meio do clamor da luta pela vida, da morte e da violência, Barbudo encontrou a única coisa que está em silêncio no meio de um universo louco de som e luz, em constante conflito e mudança.

E acariciando suavemente este sentimento em seu peito, ele está em paz.


TEMPERANÇA foi escrito por Renato Simões

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Rebelião 20: Ira


Sempre começava assim. Ardia horrivelmente a partir do ponto em que foi mordida, e depois ia se espraiando por todo seu corpo. A dor lhe causava uma espécie de tesão absurdo, um tipo de prazer doloroso que a deixava cada vez mais e mais ligada, até não se agüentar mais. Quando sua pele humana começava a se romper e tufos hirsutos e volumosos surgiam das frestas, ela quase delirava. Era um tesão tão grande, tão intenso que ela ficava louca — tesão causado pela dor, pela vontade de infligir dor, de matar devagarinho, com crueldade. É isso aí: ira era tesão de matar. E ela "trepava" muito — como louca! Às vezes se empregava num puteiro qualquer quando estava chegando a época, e rezava para a casa estar cheia quando acontecesse, e freqüentemente estava. O primeiro era sempre o melhor — no meio da transa sua pele explodia, deixando o babaca cheio de pedaços ensangüentados de carne, com um monstro lupino de mais de 2m e 200kg lhe enganchando com as pernas! Era bom demais... ela até tentava ser silenciosa, para matá-los um por um, mas não dava, era muita loucura, todo aquele sangue quente em seu corpo, e as tripas e todo o resto. Ficava empapuçada, com os pelos pegajosos. Mas isso é normal: o amor é sujo.

O problema é que começou a ficar diferente... mais intenso. Ela continuava matando alucinadamente, desesperadamente, mas estava ficando cada vez mais rápida, mais insaciável. Antes, depois de uma chacina ela voltava ao normal e se masturbava no local da matança, toda suja de sangue mesmo, mas com uma sensação boa de saciedade. Mas a sensação não perdurava mais. Às vezes, ela voltava a se transformar e procurava mais gente para matar. Ira era o tesão de matar muito.

Há seis meses, ela começou a trocar de pele fora da lua cheia. Matou um monte de gente, a noite toda, e quando o dia raiou e ela voltou ao normal, não se masturbou — se agachou e começou a comer os pedaços que haviam sobrado de suas vítimas, chupando o tutano dos ossos e descansando sobre suas carcaças sujas e gordurosas. Ira não era mais tesão. Era fome.

Há uma semana, de carona com um caminhoneiro, às 15h45min, enquanto o velho tentava comê-la numa parada à beira da estrada, aconteceu. Ela se transformou e matou todo mundo no pequeno motel. A fome era insaciável, e quando não tinha mais ninguém pra matar, começou a destruir os veículos. Não era mais fome, era fogo.

Hoje, ela se mudou para uma favela. Acha que não queria fazer isso, mas não se importa, não mesmo. Ela quase não fala mais, está esquecendo as palavras. Antes, tinha medo de ser pega, mas vê que tem alguma inteligência em seus atos bestiais: ela nunca deixa testemunhas, e mata erraticamente, sem chamar muita atenção. Até porque não sobra muita coisa de suas vítimas. Acha que come uma parte e enterra ou queima o resto quando volta ao normal, mas não se lembra.

Agora ela tem um campo enorme para ceifar, mas precisa de mais cuidado ainda. Quando não troca de pele, fica louca, angustiada, andando de um lado para o outro. Seu corpo parece um mosaico estranho, pois quando não tem ninguém para matar, fica se cortando, arrancando grande e dolorosas tiras de pele que se regeneram em poucos minutos, só para ela cortá-las novamente. Suas unhas vivem sujas, cheias de pedaços sangrentos de sua própria carne.

Mas hoje ela entende. Apesar de sua mente ter regredido a um nível imensamente primitivo, ela vê que ira não é tesão, nem fome, nem fogo. Ira é como um câncer — um enorme tumor que infecta tudo com o que entra em contato, destruindo cegamente, sem prazer, só com uma necessidade urgente e enorme como o vazio, impossível de ser saciada.

Um câncer que consome a tudo, mas principalmente ao seu portador.



IRA
foi escrito por Renato Simões


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Rebelião 19: Deus Ex Machina (Parte 1 de 3)


Imponente, o prédio pairava à frente deles. Verticalmente, não era tão impressionante, deveria ter uns três andares. Mas horizontalmente, ele se destacava na paisagem, estendendo-se por cerca de três quilômetros no enorme terreno em que se apoiava, numa saída da estrada que leva para Seropédica. As cercas de arame farpado acima do muro de concreto, com câmeras instaladas estrategicamente de maneira a observar todo o movimento local e as guaritas com guardas nos portões e nas quebras dos muros indicavam claramente que este não era um lugar para visitantes inoportunos.

Para Thiago e Gilda, não impressionava nem um pouco.

Eles já tinham tudo planejado. Já haviam adquirido informações sobre a estrutura do prédio e os mapas que eles riscaram eram bem definidos. Claro, haviam sido feitos com as informações tiradas de um alto funcionário de lá de dentro. As informações foram adquiridas por Primevo (era assim mesmo que ele gostava de ser chamado), um Primal que se utilizou de meios pouco ortodoxos para isso e que pediu como pagamento “provocar a maior quantidade de danos possível à aquele local artificial” (observação esta acompanhada de um sorriso estranho). Eles sabiam que o primo deles da Linhagem dos Primais teria acompanhado a dupla na invasão se não tivesse outros assuntos a tratar. Na verdade, eles ficaram um pouco aliviados quando souberam disso.

O que importava era que eles tinham o que precisavam e ainda confirmaram suas suspeitas: Clow se encontrava prisioneiro deles e seus amigos não deixariam de resgatá-lo.

Enquanto se aproximavam, o primeiro a falar foi Thiago. Seu instinto de membro pertencente à Linhagem dos Guerrilheiros não o deixou passar em branco as defesas e a tecnologia local.

— Tremendo sistema de defesa, não? As câmeras, se não me engano é da marca...

— Certo, certo. – Gilda não conseguiu evitar o corte – por onde entramos?

Thiago não consegue deixar de pensar em como os Veneráveis são fúteis. Tão misteriosos, cheios da sua história de “mãe para cá e mãe para lá”, mas no fundo são vazios. De qualquer maneira, são Nefilim e devem ser considerados como tal.

Gilda sabia o que seu amigo pensava, mas ignorou. Fazia parte de qualquer amizade pensarem que são melhores do que nós e que as respostas que servem a um servirem à todos. Além do mais, deve ter sido desagradável levar um corte desses na empolgação de descrever as máquinas modernas de defesa e destruição que um Guerrilheiro típico tanto adora.

Mas eles precisavam resgatar Clow.

— De onde será que ele arrumou esse apelido? Ela perguntou em voz alta enquanto eles caminhavam em direção ao muro.

— O quê?

— De onde será que ele inventou esse apelido: Clow?

Thiago nem se preocupou em pensar no assunto.

— Não sei. Coisa de Acólito. Você sabe?

— Não — Ele simplesmente devolveu o questionamento dela, sem pensar. Ela fingiu não ter percebido isso.

O Guerrilheiro observou sua amiga. O rosto dela demonstrava alguma tensão. Ao contrário dos Guerrilheiros, os Veneráveis não eram chegados a um confronto direto, com explosões e barulho. Apesar do prazer de antecipar a luta e de lamentar intimamente como seus primos ignoravam esse prazer, ele achou que deveria ficar atento para proteger a sua amiga se fosse necessário.

— Pronta?

Gilda estava realmente preocupada. Entre as táticas de subterfúgio dos Veneráveis e as táticas de combate dos Guerrilheiros, era muito mais fácil que as últimas estragassem as primeiras numa situação como essa. Todavia, isso não a tornava uma covarde. Ela não iria fugir da luta e não deixaria Thiago correr este risco sozinho por Clow.

— Sim. Estou.

Eles olham em volta. Nenhum movimento. As câmeras não alcançavam onde eles estavam, mas eles sabiam que aquele ponto era importante. Afinal de contas, abaixo deles o complexo se estendia por mais um quilômetro.

Thiago pisca o olho para a Venerável. Sua roupa preta, de couro brilhoso, com rasgos nos joelhos e correntes penduradas, aliados a um cabelo parcialmente pintado de roxo e piercings na narina esquerda e nas orelhas, lhe davam um ar bem “chamativo”. Contudo, os quase dois metros de altura e 95 quilos ajudavam a manter os piadistas a distância. Carregava uma maleta de mão preta.

— Te vejo daqui a 15 minutos.

Ela sorri de volta. Chamava a atenção exatamente pelo oposto. Usava um vestido simples e leve e sandálias. Seus enfeites eram uma gargantilha, algumas pulseiras e uma correntinha no tornozelo. Seu cabelo ruivo, cortado bem curto e com uma mecha caindo sobre a testa e a maquiagem muito leve, realçavam sua beleza de uma maneira incomum. Tinha uma mochila nas costas.

— Estarei lá.

Ele se concentra e mergulha literalmente no chão. Gilda, por sua vez, se concentra e transforma todo o seu corpo e roupas em ar, ficando invisível para quem não a procurasse ativamente. Assim transformada, passeia tranqüilamente pelo complexo e — a não ser pelo fato de ter que esperar sempre que alguém lhes abra as portas — não enfrenta nenhum obstáculo à seu intento.

Quinze minutos depois, quando Thiago se desmaterializou e saiu do teto, em uma parte mais obscura do complexo subterrâneo, ela já estava lá, esperando por ele. Ele imediatamente tira roupas de servente de sua maleta e as veste. Ela volta ao normal e faz o mesmo com as roupas da mochila, depois a mochila é amassada e colocada dentro da maleta. Começam a caminhar pelo corredor, sabendo exatamente para onde ir, pois haviam memorizado o mapa do local. Finalmente, no setor de alocação extra-humanas (nome pomposo para o setor onde faziam experiências com Nefelim e “sabe-se lá mais o que” que não fosse considerado humano) chegaram de frente para a porta onde se lia “Experimento XII – Somente Pessoal Autorizado” .

O momento das sutilezas havia acabado.

Usando novamente seu manifesto, Thiago atravessa a porta e antes que alguém lá dentro se tocasse do que ocorria, abriu para sua amiga. Esta entrou e trancou novamente a porta por dentro. Quando seus olhos percorreram a sala ficou estarrecida.

— Pela Grande Mãe...

Clow, estava parado sobre um tablado, olhando para eles. A luz que vinha do tablado iluminava o seu amigo por baixo, dando um aspecto fantasmagórico à cena que se desenhava diante deles. Era o seu amigo... e não era. Seus olhos estavam embaçados, como mortos. Partes mecânicas cobriam seu corpo, numa aberração monstruosa que transformara um dos seus em algo parte máquina, parte... parte o quê?

— Eis a maravilha da Criação! — a voz que veio do comunicador pegou os dois amigos de surpresa e eles não conseguiram evitar a reação de susto – Nós ainda não descobrimos que coisa vocês são, mas acho que conseguimos achar uma utilidade para vocês.

Eles entram imediatamente em posição de defesa. A voz no comunicador continua:

— Acredito que ele seja amigo de vocês. É claro que já sabíamos da presença dos dois em nosso complexo, mas deixamos acontecer. Fazemos questão de deixar nossa guarda atrás da porta, pois não queremos arriscar a vida de nenhum ser humano, não é mesmo?

Thiago observa rapidamente o local onde se encontravam. Não havia muito espaço para fuga. Como eles levariam Clow dali? Mas tudo se tornou irrelevante quando o comunicador soou novamente;

— Cobaia 37. Atenção para as ordens...

Gilda sabia que ordens seriam e, num lampejo de fé que apenas uma criatura que tem o céu, o inferno e a humanidade misturados em si, sussurrou:

— Não, por favor. Não nos obrigue a isso...

Mas a voz no auto-falante saiu implacável:

— Elimine os intrusos!

Como se fosse um robô que de repente ligou, Clow se move, girando na direção deles. Seus movimentos mecânicos e o som provocado pelas peças artificiais enxertadas em seu corpo, criaram um assustador clima de exterminador do futuro. A voz no comunicador, com um profundo tom de júbilo, dá seu último toque na dança macabra, como se fosse um vilão de histórias em quadrinhos:

— Assim vocês aprendem a não invadir um prédio que pertence a nossa organização. Não se brinca com a RAM.

A batalha entre amigos iria começar.

Continua...

DEUS EX MACHINA (Parte 1) foi escrito por Danilo Faria

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Rebelião 18: O Alfarrabista


O velho está sentado numa confortável poltrona, folheando um livro antigo de capa verde. Pela janela, ele pode ver os bosque de árvores baixas que cercam a mansão. Uma leve neblina emoldura a típica paisagem inglesa. Jordan Bolton é extremamente zeloso com sua biblioteca, um legado secular que acompanha há várias gerações sua família. Existem pessoas que pagariam qualquer fortuna para ter algumas das obras raras que enfeitam suas prateleiras. Mas nenhum dinheiro do mundo faria os Bolton abrir mão de sua coleção.

Súbito, uma pontada dolorosa no peito, faz Jordan Bolton largar o livro, que cai no chão atapetado sem fazer muito barulho. A dor aguda o paralisa. Ele se contorce, tenta respirar, mas é inútil. O coração pára de bater.

A mancha de luz que o luar projeta na parede agora delineia a silhueta de um homem. Ele paira no ar, observando o quarto com atenção. Seus pés finalmente tocam no tapete, ele se inclina sobre o corpo do velho, pegando o livro caído com muito cuidado.

- Que ironia. Morrer justo agora, quando era eu quem devia matá-lo.

Folheia carinhosamente o livro, abrindo um largo sorriso de avidez. Aumenta a intensidade do foco da luminária, apontando-a para a estante mais próxima.

- Isto é um verdadeiro tesouro!

Títulos de obras raríssimas lhe saltavam aos olhos: Opus Renatorum, a versão latina da obra do feiticeiro bizantino Anastasios Morea, autoproclamado descendente de Simão o Mago, sobre seus encontros com membros de sociedades místicas; o fantástico Signa Geminorum, uma compilação de fórmulas alquímicas tão secretas, que os autores, os irmãos Ludovic e Eliézer Cordeleon, inventaram um silabário hieroglífico para escrevê-lo; De Malitia Versipellium, uma descrição pormenorizada dos Versipelles feita pelo enigmático ocultista castelhano J.X.L.; Daemonarchia Sotonae, uma compilação minuciosa dos demônios do Nono Círculo feita pelo pervertido monge inglês Alanus Amauricus; a obra-prima do alquimista português Tristão d’Oliveira, o De Arcanis Olivariae; Bellator Triumphans, um conto apócrifo atribuído ao centurião romano Numa Servilius Tardus. Em suas mãos, o livro de capa verde era o divertido Viagens de Vittorio dei Santi, um frade italiano que descreve as estranhas criaturas que encontrou em sua peregrinação à Terra Sagrada.

Paulus desembrulha uma manta plástica, e embrulha cuidadosamente suas mais novas aquisições. Sai flutuando do mesmo jeito que entrou, dirigindo-se suavemente na direção da estrada que margeia a mansão dos Bolton. Já está pensando na glória que o espera como recompensa pelas inestimáveis “aquisições”.

Se ele olhasse para trás neste momento, veria que uma das gárgulas do telhado está seguindo-o com os olhos de pedra. E sorrindo.


O ALFARRABISTA foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 17: Todos merecem uma Segunda Chance

Fui apenas um colessionador de fracaços

Istou partindo desSa pra melhor

Adeus mundo cruÉU

O bilhete era uma coleção de clichês, com horríveis erros de português. Ele então se olhou no espelho pela última vez. O reflexo era de um homem pequeno, esquálido, de cabeça raspada. Apontou a arma contra o queixo. Disparou.

E tudo se apagou.

No meio da escuridão foi surgindo um túnel de luz, e no final estava um homem, com enormes asas brilhantes. Sorrindo, ele dizia: “Não morra, meu filho. Você tem uma bela missão pela frente. Volte!”

Sentiu-se deitado, com os braços dormentes. Foi abrindo os olhos lentamente. Sentia uma dor aguda no rosto. À sua frente, sentado na cadeira, estava um gordo de óculos e cabelos encaracolados.

— Estou morto? — perguntou.

— Poderia estar. Mas felizmente sua pontaria é tão ruim quanto a sua ortografia. Há um enorme ferimento na sua bochecha, mas já está começando a cicatrizar. Não toque.

— Aaiiii ! – gritou, quando passou a mão no rosto e sentiu a ardência.

— Eu disse para não tocar...

— O que está acontecendo? Onde estou?

— Pergunta errada, devia ser “Quem sou eu?”. Por onde devo começar? Você não é o que pensa: você é um Nefilim, como eu. Seu pai era um anjo, e você tem poderes sobrenaturais. Estou aqui para ajudá-lo a conviver com seus poderes. Desculpe pelo atraso. Eu deveria ter chegado aqui uma hora mais cedo. Meu nome é Louis Rivet, mas pode me chamar de Gargântua.

— Heim? – gritou à medida que se sentava. O ferimento já estava bem menor.

— Sua mãe foi seduzida por um anjo, esta é a sua verdadeira origem. Você não é humano. Existem anjos espalhados pelo mundo fazendo filhos, e uma das linhagens são os Acólitos, como eu e você...Ei...preste atenção! O que está fazendo?

Ele pegou de novo a arma e apontava desta vez para o ouvido.

— Essa segunda vida é muito pior que a primeira.

Gargântua arrancou a arma das mãos do homenzinho.

— Deixa disso, homem! Isso é jeito de agir! Você é um Acólito, caramba!

— O rapaz tentou se desvencilhar, mas era difícil escapar dos mais de cem quilos de Gargântua. De repente, o olhar dele se iluminou.

Pela janela entrava uma morena maravilhosa de olhos verdes tão impressionantes quanto o decote do vestido colorido.

— Ufa! É ele, Gargântua?

— Sim. Está querendo se matar. É um osso duro de roer.

Com a chegada da moça, as feições do jovem mudaram por completo, abria um sorriso de orelha a orelha. – Você também é uma Acólita, como eu? Oi, meu nome é Lino. Foi saindo abraçado com ela.

— Eu sou Capitu, precisamos inventar um apelido para você. Os Acólitos têm uma missão muito bonita, sabe?

— Não sei, mas estou adorando aprender, pode falar!

Gargântua ficou parado no quarto, sozinho.

— Isso, divirtam-se! Vou ficar aqui esperando até que alguém venha dizer “Obrigado por salvar a minha vida, irmão!”, ou “Obrigado por me dar uma segunda chance!” ou, melhor ainda “Obrigado por me salvar de uma vidinha patética e ridícula!”. Eu não tenho pressa.


TODOS MERECEM UMA SEGUNDA CHANCE foi escrito por Simoes Lopes

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Rebelião 16: Bate-papo de Boteco


Lá estavam eles há algumas horas, bebendo e conversando, um cortejo enorme de garrafas vazias acompanhando tudo. Os outros boêmios olhavam com inveja toda aquela capacidade de beber indefinidamente e manter ainda assim um dialeto de português inteligível e bem articulado. Depois de esvaziar seu uísque à cowboy ("bebida fermentada é pra viado, e gelo nas destiladas também"), o Paladino disse:

"Mas no fim Sathanael estava com inveja do Nume-Filho, vocês sabem, a Segunda Pessoa da Trindade, e não o protagonista dos evangelhos. Devo dizer que sua elevação acima de toda Criação deixou o primeiro e mais antigo dos anjos muito irascível... ao ponto de reunir a terça parte das hostes e se rebelar."

"Porra, Lucas, você só está parafraseando Milton", falou o Visionário, colocando uma "mini-saia" vazia de cerveja preta na mesa. "Acha que somos tão ignorantes que nunca lemos Milton?"

"Foi só uma tentativa... você sabe, não é bem o que se diz, mas como se diz. Retórica é tudo", retrucou o Paladino. O Guardião sorri.

"O fato", insiste o Visionário (e levanta a mão para chamar o garção, pedindo outra garrafa), "é que não precisaria haver mais rebeldes. Primeiro Sathanael, em seguida Lúcifer e Samael, e depois Samiaza com todo o restante da trupe, atrás de turismo sexual e diversão barata. Se Deus viu que os anjos estavam começando a dar trabalho, era melhor ‘descriar’ alguns deles para desencorajar novas rebeliões."

"Acha que ir pro inferno não é ruim o bastante?", pergunta o Guardião, não muito certo de ter dado uma talagada na sua própria bebida.

"Acho que é mais inteligente destruir as ovelhas negras que as acumular todas em um só lugar, onde ficam inventando merda."

"Você fica vulgar quando bebe", observa o Paladino (que examina sua bebida, que parece repentinamente ter diminuído bastante).

"Está tergiversando... (um arroto). O fato é... que horas são?"

"São 02:05" responde solicitamente o garção, colocando mais uma garrafa sobre a mesa.

"Obrigado, ‘faz-me-rir’."

"Mas, acho que, muito mais importante que o fato de Deus não ter destruído os rebeldes é... por que eles se rebelaram?", diz o Guardião, aproveitando a pausa do amigo (que além de vulgar fica esquecido quando bebe).

"Sathanael não era a favor da Criação, Lúcifer era louco, Samael detestava o homem e Samiaza e nossos pais fizeram tudo por tesão", resmunga o Visionário, satisfeito em ver um copo cheio à sua frente.

"Gostaria de poder gravá-lo... para mostrar a você sóbrio como você fica... o médico provavelmente morreria de vergonha do monstro."

"Não é este o meu ponto", corta rapidamente o Guardião, vendo o Visionário surrupiar o copo que encheu para beber — "o ponto é... eles são anjos, não é?"

"Você está bêbado, Marcos" — acrescenta o Visionário com um sorriso empolgado.

"A primeira coisa que um bêbado faz é dizer que os outros estão bêbados" — diz o Paladino, fazendo cara de nojo depois de tomar um generoso gole da cerveja do Guardião — "Droga, Marcos, você está tomando o meu uísque!"

"Desculpa cara, mas perdi o paladar há meia hora. Como eu estava dizendo, uma coisa divertida sobre anjos e demônios é que eles não mudam..."

"Não era isso que você estava dizendo."

"Quieto Matheus, eu quero ver onde isso vai dar" — diz o Paladino ao Visionário, inclinando-se para frente na cadeira.

"… não mudam porque não podem. Não têm livre arbítrio."

"Estou vendo onde isso vai dar..."

"Como caras que não têm domínio da própria vida podem se rebelar contra alguém?"

"Marcos, você está dizendo que Deus não destruiu os rebeldes porque queria que eles se rebelassem?" — fala o Paladino não muito convicto de sua conclusão — "Mas o que ele ganharia com isso?"

"Lucas... Luquinha... não parece óbvio para você? (sorriso de perspicácia se estampando lentamente) Nós estamos aqui, não estamos?"

Todos parecem pesar as palavras por alguns minutos, quando o Paladino muito sério (e se servindo de uma dose dupla de uísque) volta a falar:

"Matheus tem razão... você está bêbado."

O sorriso do Guardião se apaga numa careta de tédio, e o Visionário gargalha tão intensamente que derruba seu copo. Mais uma rodada é pedida: mais cerveja para Matheus, e Martini para Lucas.

Por insistência dos amigos, Marcos bebe água de côco.



BATE-PAPO DE BOTECO foi escrito por Renato Simões


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Rebelião 15: Vaidade


Com pouco esforço elevo-me cerca de 30cm do chão. Concentro-me mais um pouco e eles se tornam 30m. Abaixo de mim, Günter sorri com satisfação. Ele é um suíço dos Alpes, e fala um dialeto obscuro do alemão carregado de sotaque. Se não fosse por um Manifesto que descobri recentemente, Gnose, que me permite absorver conhecimentos alheios por um curto período de tempo, até mesmo nossa comunicação seria impossível. Eu odeio esta língua bárbara de fonemas aspirados, cheia de grunhidos guturais.

E odeio a inocência imbecil e meio selvagem deste Guardião.

"Aprendi com você, e você comigo. Poderei copiar sua Bíblia esta noite?"

"Claro, assim que acrescentar estes Manifestos e a forma como desenvolvê-los. O que acha de chamarmos este de Dom de Simão?"

"Hmm... é adequado. Simão é o mago que levitou, certo?"

“Sim.”

"Sabe, vê-lo aqui... já faz algum tempo desde que vi um nefilim pela última vez. Achava que estava sozinho... e agora saber que as Linhagens estão organizadas, que estamos estabelecendo formas de contato no mundo todo. É realmente fascinante!"

"Sim, é." Este selvagem me entedia. Graças aos Triarcas os Guardiães não têm uma organização séria.

"Mas fale-me de sua Linhagem. Já ouvi falar de vocês... Precursores. Adotam nomes latinos e são muito formais... querem romanizar-se?" — ele acrescenta isso com um sorriso que, imagino eu, deva achar divertido. Acho patético.

"De certa forma. Gostamos do espírito romano, de seus ideais de força e civilização. Achamos que é esta nossa missão."

"Criar uma civilização para os nefilim?"

"Não. Os nefilim não precisam de civilização — eles já têm poder. A civilização é, principalmente, para os fracos e selvagens. Animais, em geral, precisam ser pastoreados." Meu interlocutor pareceu não gostar muito de minha última observação, visto viver entre estes homens de barro.

"Pastorear as massas através da força. Um conceito darwinista um tanto gasto e repetitivo, não acha?"

"Acho, mas apostamos em idéias que funcionam. Somos pragmáticos, a originalidade é para Paladinos."

"E a diplomacia, para Visionários." — ah, finalmente uma fagulha de espírito! Talvez, se o provocar por, digamos, uns trinta anos, surja um nefilim forte do fundo dessa casca humana indulgente.

Mas nós, é claro, não teremos este tempo.

"Você então não viaja com os Escribas — é esse o nome, não? — aquela Congregação que está catalogando os Manifestos?"

"Não... mas pretendo apresentar-lhes o meu trabalho. Gostamos de ser úteis."

"Ou da fama. Imagino que em alguns anos seus nomes serão venerados e respeitados entre os mais jovens de nossa espécie." Eu teria dito nossa estirpe, mas não espero muita sutileza de meu primo pobre.

"Creio que esta seja uma conseqüência do que fazemos. Nossa intenção real é fortalecer a coletividade."

"Nem todos vocês são latinos, não é mesmo? Vocês é que escolhem seus nomes?"

"Não, nem todos somos latinos — há asiáticos, saxões e mesmo ameríndios entre nós — e sim, escolhemos nossos nomes. O Primaz chama-se Aurelius em homenagem ao autor das Meditações, um imperador que ele muito admira."

"Paulus... a quem está homenageando? Não me lembro de um imperador com este nome." Hmm, devo dizer-lhe? Normalmente isso seria perigoso... mas a tentação é grande. E acho que ele é obtuso o bastante para que a idéia não lhe ocorra logo.

"A São Paulo, é claro. Ele é provavelmente o homem mais inteligente do Novo Testamento."

"Ora, por quê?"

"Ele, judeu e cidadão romano, caçava os cristãos — até matou Estevão apedrejado — mas, veja bem, com o tempo ele percebeu que só matava vasos. O conteúdo é que era importante, e não se mata idéias com pedras."

"E o que há de admirável nisto?" A conversa está ficando complexa demais para ele que, maçado, se senta e começa a folhear meu exemplar da Bíblia.

"Ora, como não podia matar a idéia, ele se apossou dela. Ele transformou uma meia dúzia de preceitos simples numa religião-filosofia que controla a vida de uma boa parte do mundo, hoje. Sem Paulo de Tarso, não haveria o cristianismo como o conhecemos."

"Ah, sei." Já nem está mais me ouvindo. Tão fácil que chega a ser doce.

"Gosto de sua forma de pensar... ele não procurou originalidade, mas soube manipular o caminhar dos eventos a seu favor, e hoje é um santo. Veja só, de assassino a apóstolo, de pecador a precursor venerado da religião de meio mundo!"

"Há, há, então acho que agora é hora de você apedrejar Estevão e tornar-se apóstolo! Muito boa essa, não é, Paulus?"

"Paulus…?"

VAIDADE foi escrito por Renato Simões

domingo, 16 de dezembro de 2007

Rebelião 14: O Pai de minha Filha


Eu observo a menina que sai sorridente da água e caminha pela areia da praia. Ela sorri para mim e meu coração se enche de alegria. Minha filha é meu tesouro e a razão de toda a minha existência. Sou relações-públicas de uma empresa de prestígio e tenho tudo o que gostaria materialmente. Minha saúde é perfeita e admito com certa vaidade que aparento ser mais jovem do que realmente sou e que agrado aos representantes do sexo masculino em geral.

Mas não consigo deixar de pensar que isso tem dedo do pai dela.

Engraçado pensar nele hoje. Eu o conheci em uma festa que minha mãe promovia. Eu era apenas a filha dondoca de 17 anos que não queria de maneira nenhuma estar lá e ele dizia ser um empresário no ramo de “reconstruções”. Relembrando nos dias de hoje, ele realmente deu um tom estranho no uso desta palavra. Lembro-me bem de perguntar que tipo de reconstrução e ele me responder “do tipo que o mundo anda precisando”. Rimos juntos. Na hora me pareceu divertido e fascinante aquele homem falar daquela maneira. Aliás rimos muito naquela noite. Ele tinha uma mistura de protetor angelical com um ar de quem seria capaz de acabar com a Criação em um piscar de olhos. Sim, eu cheguei a comentar no decorrer da festa que ele lembrava um mafioso. Ele riu e disse que eles eram amadores. E rimos novamente.

Incrível que me lembre de tanta coisa e não me lembre do nome dele.

Estranho também é saber que me rendi ao seu charme e beleza naquela mesma noite. Parecia que simplesmente ninguém nos percebia mais na festa ou mesmo dava por nossa falta. Era como se nunca tivéssemos existido. A noite parecia mágica. E continuou assim. Saímos sem que ninguém percebesse e lá estávamos nós em seu chalé. Eu estava pronta para me entregar à aquele homem.

E eu nunca mais encontrei o chalé.

Na primeira noite ele foi... divino. Me senti como devem sentir os anjos no paraíso. Parecia que um coro angelical acompanhava tudo o que fazíamos. Ele comandava o bailado e eu obedecia. Não havia erros ou momentos engraçados, coisas que tornam esse tipo de noite humana. Mas era tudo perfeito demais. Robótico. Me senti como se tivesse perdido o livre arbítrio. Agia como se eu não tivesse outra escolha. Mas isso não impediu que eu me sentisse uma deusa. Eu entrei em um estado de delírio tão grande, que quando ele atingiu o seu clímax, eu vi asas. Vi que ele tinha asas lindas como a noite que guiava os navegantes ou que permitia que os namorados se apaixonassem sob a luz da lua. A mistura daquelas sensações e daquelas visões me fez atingir meu clímax também. Depois, eu comentaria com ele que os anjos eram tristes pois não tinham escolha. Sei lá, me pareceu ser certo dizer isso. Ele olhou para mim. Seus olhos pareciam negros como a noite. Como as asas que acreditei ver. Parecia ter visto a própria origem e fim do universo. Disse que isso era verdade e me mandou dormir. Eu dormi carregada de tristeza.

Eu não fui embora, como se deveria esperar. Não consegui. E na noite seguinte ele me tomou nos braços novamente. Desta vez foi... infernal. Eu fiz coisas que a mais baixa das meretrizes não faria. Ele era meu senhor e eu era a sua escrava. Quanto mais ele me humilhava, quando mais me submetia, quanto mais eu me rebaixava, mais eu desejava. Eu havia sido uma deusa, agora era uma espécie de prostituta do inferno. Ele também parecia outro. Em meio a minha loucura, percebi que em seu clímax as asas apareciam de novo. Mas desta vez a noite era tenebrosa e assustadora, como a noite que esconde coisas que não deveriam existir ou serviam para ocultar o que era criminoso e vergonhoso. Era a noite que existia na alma de todos nós. Até hoje me envergonho daquela noite e não sei se me envergonho do que fiz ou do que vi naquelas asas.

Mas foram delírios de uma mulher em meio mergulho no mundo da luxúria. É obvio que as asas não existem.

O resto é história. Fiquei grávida de um homem que não me lembro nem mesmo do nome. Minha família (e eu) aceitamos de maneira muito estranha tudo o que ocorreu. Ou seja; não houve escândalos, como seria de se esperar com uma filha que aparece grávida depois de dois dias desaparecida. Não foi uma gravidez fácil: parecia que a natureza simplesmente tentava rejeitar minha filha. Mas ela nasceu e é o meu tesouro. Isso tem onze anos e eu não tive mais homens desde então. Toda a vez que penso em sexo, sinto algo de repulsivo, pois me vem a idéia de horas frias e mecânicas ou de depravação. Não sei qual concepção me enjoa mais. Minhas férias sempre são aqui, nesta praia particular localizada no Nordeste, onde fico em paz com minha filha e minhas memórias. Somente eu e ela.

Eu segui minha vida e não costumo pensar no que ocorreu. Nem no pai dela. Mas hoje fui obrigada a relembrar de tudo. De manhã, enquanto trazia pão e queijo para o nosso dejejum, o pai dela apareceu. Estava na porta da nossa casa de praia e conversava tranqüilamente com nossa filha. Ela nos apresentou e eu não lembro o nome dele. Trocamos frases curtas em uma conversa que também não lembro. Ele se despediu e prometeu a ela que voltariam a se ver. Eu não duvido disso.

Eu queria ir embora, mas sei que não vou conseguir. Eu sei o que vai acontecer essa noite e sei da deusa que surgirá em meu quarto. Sei também da meretriz que surgirá na noite de amanhã. Oh, Deus! Eu não queria isso, mas não posso evitar.

Eu espero que ela goste de seu irmãozinho que virá.

O PAI DE MINHA FILHA foi escrito por Danilo Faria

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Rebelião 13: Morangos


O cheiro dos morangos silvestres envolvia o bonito jardim num suave perfume. Arbustos cuidadosamente podados formavam um curiosos padrão geométrico. No centro do jardim, Laura estava sentada, com o avental sujo de terra, e uma cesta de morangos recém-colhidos. O jardim está maravilhoso, e ela é a grande responsável por isso. O jardim é como um filho para ela.

Algo a incomodava, como um zumbido ou uma leve arrepio. Passou seus olhos de íris azul-violeta rapidamente pelos morangueiros. O senho franziu-se, e algumas faíscas começaram a se formar em pleno ar. No meio dos arbustos desenhou-se a silhueta de um homem, de barba castanha-escura e óculos escuros, todo de preto.

- Nunca mais faça isso, Neal! Não entre no meu jardim sem me avisar!

- Ora, Laura, é assim que os Guardiaens tratam os amigos? – comentou com irreverência o “intruso”.

- Sim, quando eles preferem ser invasores e não convidados! – gritou ela, enquanto tirava a terra do avental – Nunca mais faça isso! No meu território, não!

- Calma, Laurinha. Sorry. Tenho assuntos importantes a tratar.

- Então vamos entrar – disse ela, enquanto o “escoltava” pela trilha de terra batida até a sua casa. Após deixar a cesta de morangos encima da mesa da copa, Laura foi até a sala e se atirou num grande almofadão. Neal Moore, seu amigo inglês, continuava em pé.

- Não quer tirar a fantasia? Está meio quente para um sobretudo...

- Legal, né? Tá com inveja, baby?

- O dia que tiver inveja de um Guerrilheiro, é porque o Sheol se aproxima!

O inglês fez uma cara de desdém, coçou os bigodes, e deixou o sobretudo pendurado numa cadeira de vime. Viu que era a hora de mudar de assunto.

- Soube que sua amiga Visionária andou invadindo um templo de uma seita celeste, confirma?

- Parece que sim.

- E o que ela descobriu?

- Só perguntando para ela, o que não vai ser nada fácil. Depois daquele dia, ela tem evitado falar no assunto.

Neal coçou os bigodes mais uma vez, deu uma leve erguida nos óculos, percorrendo com um rápido olhar as pernas bronzeadas de Laura, mal cobertas por um short minúsculo.

- It must be serious... Os morangos estão bons?

- Claro! São meus morangos, não?

O inglês passou a mão no cesto de morangos, e pegou um deles, engolindo quase inteiro.

- Ela disse que vinha hoje conversar comigo. Felizmente, nem todos meus amigos andam por aí invisíveis invadindo a casa dos outros!

O barbudo nem ouviu o que ela disse. Estava com metade do corpo enfiado na geladeira, remexendo em algo.

A garota se levantou com raiva e foi até a copa - Eu disse que ela vem aqui hoje! – repetiu, gritando nos ouvidos dele com tanta força que quase ficou sem fôlego. – Algo mais, Mr. Moore?

Neal voltou para a sala com um prato cheio de morangos. Refastelou-se no almofadão. Abriu um pequeno laptop, deu uma conferida rápida em sua agenda, e disse, com um ar inteligente.

- Não estou com pressa mesmo, darling. Temos todo tempo do mundo. Eu espero ela chegar.

Laura lançou um olhar tão gélido que até os morangueiros devem ter sentido calafrios.

Neal, alheio a tudo, enquanto mordiscava um morango bem suculento, cumprimentou Laura com um sorriso largo.

- Tem chantilly?

Ele ainda sorria quando uma maçã arremessada da copa atingiu-o como um asteróide em miniatura.

Algumas horas depois, quando sua amiga chegou, Neal Moore vestia os mesmos óculos escuros e sobretudo de sempre, agora acompanhados de um vistoso curativo no nariz. O prato de morangos continuava intacto.

MORANGOS foi escrito por Simoes Lopes