segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Maytréia 31: O Terceiro Presente


Escrevo estas palavras sob o testemunho de Alá, o Misericordioso, aquele que esteve no Início e estará no Final dos Tempos. Sob sua grandiosidade, este humilde servo narra os acontecimentos que marcaram sua juventude e — a partir daí — sua vida.

Eu era um jovem e arrogante líder há trinta anos atrás. O nome de minha tribo era sussurrado pelos passantes no deserto com temor e reverência. Em nossas passagens, vimos o pôr-do-sol de diversas formas e o seu nascer nas mais diversas paisagens. Nada temíamos e todos nos temiam, e aos infiéis com palavras que nunca diziam o que demonstravam dizer garantíamos o castigo do Criador, pois eles ofendiam aos Seus olhos (que Alá seja misericordioso para com nossos erros!). Tudo e todos se afastavam ou se escondiam diante de nosso grito de guerra. Menos o deserto e o sol, estes eram perenes e imperturbáveis para com nossas ações. De vez em quando eles juntavam-se para mostrar que nada pode ser orgulhoso diante da Obra do Todo-Poderoso. Quando isto acontecia, o sol se impacientava e agitava aos ventos, que em sua fúria se juntavam ao deserto e tentava nos engolir. Estes eram momentos de orar e implorar pela misericórdia divina, pois não havia prepotência humana que se mantivesse diante da ira das areias que já engoliram cidades inteiras.

Na época em que narro estes acontecimentos a tempestade já durava dias. Ela estava à nossa frente, o que nos mantinha alertas mas confiantes, pois esta se afastava à medida que caminhávamos para o oásis que sempre nos recepcionava. O primeiro susto veio exatamente quando descobrimos que o oásis que sempre havia resistido às mais diversas intempéries estava desaparecido. Isso era uma notícia ruim e os primeiros sussurros sobre a ira de Alá ou de como Ele “nos havia virado a face” começaram a percorrer minha tribo. Eu precisava de exemplos e o primeiro dos meus guerreiros que surpreendi comentando isto recebeu as chibatadas que serviram de alerta para todos (já tinha ouvido crianças e mulheres comentando, mas não agi — elas não conseguiriam resistir e não podemos castigar alguém que segue sua natureza).

Viramos para o sol poente na tentativa de contornar a tempestade, que parecia não arrefecer, e encontrarmos outro oásis que estaria a mais dois dias de distância. Foi com grande alegria e alívio que chegamos nele e pudemos descansar.

Infelizmente, a tempestade mudou de direção e nos alcançou na primeira noite que lá estávamos.

Foi com um aperto no coração que acompanhei a mais terrível de todas as tempestades que enfrentei. Ela atravessou a noite e começou a se tornar difícil resistir aos seus desmandos. Minha favorita, Jade, sumiu naquela noite para nunca mais aparecer, engolida pela fome voraz do deserto. Parecia não haver ninguém na tribo que não tenha perdido alguém que amava naquela noite. Os sussurros sobre o castigo de Alá se tornaram gritos que se perdiam na noite dentro de gargantas que engoliam pó quando tentavam inspirar ar.

Foi a mais terrível das noites, que seria acompanhada pela mais estranha das manhãs.

Não acreditei quando acordei de manhã e vi que a tempestade nos cercava como um gigantesco colosso, uma muralha de cor ocre e cinza que nos isolava do resto da Criação. Parecia que o Todo Poderoso em pessoa havia resolvido nos intimidar, cansado das lições não aprendidas com os movimentos anteriores dos ventos e das areias. Achávamos que nosso fim viria quando aquela gigantesca muralha que desapareceu com o brilho do próprio sol desabasse sobre nós ou — numa visão mais assustadora — nosso isolamento permanecesse como um exemplo de até onde a arrogância humana pode irritar a Aquele que é eterno.

Só que quando a manhã passou, aconteceu a mais surpreendente das situações.

Um homem caminhava do deserto em nossa direção.

Imediatamente imaginamos que fosse um temível djinn, vindo nos tentar em nossas horas de pavor com plano de nos fazer virar as costas para o próprio criador com suas palavras macias de desejo e poder. Os homens se prepararam para o ataque. Não os culpo: eles precisavam descarregar suas frustrações e um homem surgindo do meio de uma tempestade parecia tentador naquele momento.

Mas algo em mim fez com que a ordem para que não atacassem fosse dada. Quando se aproximou de nós, o peregrino — que parecia tão seguro à distância — praticamente desabou aos meus pés e sussurrando me disse:

“Só existe um Deus...”

Não fugi da resposta:

“... e Maomé é o seu Profeta.”

E ele desmaiou.

* * *

Meus homens estavam divididos. Havia os que enxergavam um djinn no estrangeiro e achavam que deveríamos matá-lo, outros enxergavam um alquimista e pensavam no mesmo fim. Parecia que apenas eu ainda via uma possibilidade de que ele fosse apenas humano, com seus defeitos e qualidades. Não que ele merecesse confiança e não que eu não quisesse matá-lo; mas pelo menos ele morreria como um humano em minha consciência e não como um monstro ou um bruxo.

Sei que Alá me perdoará eternamente pela minha presunção. Eu era jovem então e achava que sabia de tudo, que teria todas as respostas. Confiava na força e na astúcia ao invés da inteligência e experiência. Acredito que o Misericordioso também protegerá aos meus homens e anciões. Afinal de contas, estávamos sendo duramente castigados e aquele homem demonstrava ter atravessado a mesma tempestade misteriosa e terrível que parecia bradar pelo nosso fim. Como não pensar que ele poderia ser um amaldiçoado com a presença eterna da tempestade? Como não desconfiar de que ele seria o responsável pela existência dela?

Quando a decisão foi tomada, ele já havia acordado. Eu o encontrei sentado no alto de uma duna, olhando pensativamente para a muralha que a tempestade formava. Assim que cheguei, ele me saldou respeitosamente mais uma vez:

“Eu lhe devo a minha vida, portanto acho justo que queira tirá-la. Se esse é o desejo de Alá, não me oporei.”

“Como já pode ter certeza da decisão?”

“E, por acaso, não falo com Ash-Sharrastani, o terrível líder desta tribo, aquele cujo nome é sussurrado pelos pais para assustar as crianças à noite? Não estou diante do maior de todos os defensores do Livro Eterno e Sagrado? Estarei enganado?”

“Não. Tu acertas.”

“Devo então deduzir que um destino diferente espera por aquele que surge repentinamente em meio a uma tempestade como nunca vista antes?”

E eu — que não temia homem algum — me senti um tanto confuso e intimidado diante daquele. Desviei-me da resposta:

“Posso então saber o nome daquele que me reconheceu e surgiu diante de minha tribo?”

“Djabir Ibn-Hajjan Gerber, um servo satisfeito do Criador Eterno.”

“Pode também me dizer como conseguiu sobreviver a esta tempestade? E como surge no momento em que ela assume uma forma jamais vista?”

“Eu sobrevivi até agora pelos desígnios do Criador Eterno. E, como me perdi de meus companheiros, não sei informar o motivo pelo qual surjo aqui exatamente neste instante. Que se pode saber dos desejos de Alá? Mas permita-me corrigir: como pode o grande líder ter tanta certeza de que esta tempestade é única?”

Naquele momento, eu me preparava para dar a sentença. Contudo, como se adivinhasse o que estava pronto para ouvir, ele perguntou:

“E por que razão pretendem me matar?”

“Os anciãos acreditam que você foi enviado por Alá como prova de nosso castigo eterno. E também acreditam que ao matá-lo estaremos provando ao Senhor de Todas as Coisas nosso arrependimento. Talvez nos liberte assim...”

Ele fica pensativo por um momento. Quando fala, carrega uma tranqüilidade que vi em poucos homens conscientes do seu fim:

“Estranha lógica. Como saber se na verdade fui enviado para salvá-los? E que, ao me matar, não estarão matando a salvação?”

“Ou que não fará a menor diferença para a tempestade a sua morte?”

Ele me observou com suas órbitas brilhando dentro da face. Não demonstrou, mas parecia bastante satisfeito. Não sei o motivo, mas a mim pareceu naquele momento que ele estava mais satisfeito com a minha percepção do que ocorria do que com o fato de que isso lhe daria uma chance de sair vivo. Na verdade, ele me parecia alguém capaz de escapar tranqüilamente de qualquer tentativa de nossa parte para destruí-lo. Então, ele entrou com um assunto que me pareceu estranho à época:

“Sabe, a Criação de Alá tem muitos reinos. Alguns nós visitamos durante os sonhos. A maioria da humanidade não sabe, mas batalhas gloriosas e horríveis pelo destino dela ocorrem neste lugar. Em alguns momentos raros, a tempestade provocada por estas batalhas pode tocar o nosso mundo...” Olhou sério em minha direção. “... talvez isso tenha acontecido agora.”

Eu retruquei da maneira mais suave que pude:

“E alguém que luta por nós pode se ferir e cair de volta em nosso mundo, não é mesmo?”

Ele ficou em silêncio por um longo tempo. Sabia que o que me dissesse poderia afetar a minha decisão.

“Existem batalhas pelas quais vale a pena lutar.”

E sentamos em silêncio, olhando a assustadora muralha que se erguia e urrava a nossa volta. Então, tive um lampejo e perguntei:

“E por quê o trabalho de proteger uma simples tribo do deserto?”

Ele se permitiu um sorriso.

“Porque toda vida é sagrada. E porque alguém pode ter um papel a cumprir... apenas Alá sabe.”

Minha decisão estava tomada.

“Da necessidade de algumas batalhas, eu entendo. Parta com a benção de Alá. Não poderei mantê-lo aqui, mas acredito que você saberá como evitar a tempestade melhor do que nós.”

Ele sacudiu a cabeça afirmativamente.

“Que o Misericordioso lhe abençoe por isso. Mas não terei sido um bom convidado se não lhe presentear e acordo com sua hospitalidade...”

Tirou um anel de ouro que carregava no dedo e me entregou.

“Espero que me permita a ousadia de lhe passar um pouco de minha parca experiência. Não sei se este presente lhe tornará a vida melhor... mas com certeza fará com que saiba se portar em todos os momentos.”

Olhei a inscrição no anel:

TUDO PASSA.

Quando me voltei para ver meu interlocutor, este apenas se levantou e me disse:

“Apenas Alá é Onipresente... aceite isso e serás feliz.”

E ele se foi.

* * *

A tempestade terminou naquela tarde mesmo. Simplesmente se desfez no ar. Para minha tribo, contei que o misterioso homem havia desaparecido e deixado o anel no lugar de seu desaparecimento junto com a promessa de que a tempestade acabaria e que Alá nunca deixou de olhar por nós ou por qualquer de Suas criações.

Desde então, sonhei muito com batalhas onde inimigos de Alá e da humanidade tentam a qualquer custo nos escravizar. Em meus sonhos mais angustiantes, vejo quando estes inimigos ganham; com a Criação em pedaços e com seus vencedores devorando uns aos outros pelos espólios da guerra. Nos mais tranqüilizadores, a vida floresce e seguimos para mundos paradisíacos dominados pela fartura e fraternidade.

Por duas vezes vi meu amigo — um amigo de breves instantes, é verdade — lutando bravamente pelo que acreditava ser um mundo melhor. Numa das vezes, ele se virou para mim e sorriu de uma forma que não vi quando em nosso mundo.

Hoje, minhas idéias são debatidas com fervor que a transitoriedade provoca. Sinto-me tranqüilo. Mesmo estas idéias passarão um dia. Hoje sei que tudo o que tem início tem um fim.

E agradeço a sabedoria do Supremo por isso.



O TERCEIRO PRESENTE foi escrito por Danilo Faria


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