Os pombos aglomeravam-se ao redor do sujeito vestido como um frade franciscano, rodopiando como se presos a uma hélice invisível. Os grãos de milho jogados no chão de cimento despareciam muitas vezes antes de tocar no solo. O som dos arrulhos era tão alto que sufocava até o barulho do alto-falante da pracinha que anunciava vendas na loja de móveis da cidadezinha.
Elísio Paulino, 27 anos, sergipano, tinha o topo da cabeça calva coberta por um penacho avermelhado de cabelos ralos, uma barba rala, e enormes dentes amarelados. Os olhos caídos, de cor de jerimum, chamavam a atenção dos passantes, pelo seu aspecto incomum. Alheio à chuva fina que começava a molhar a rua, continuava atirando punhados de grãos aos pássaros que esvoaçavam de alegria diante do banquete.
Um homem alto e magro se aproximava, e Elísio reconheceu o velho amigo de uma extinta Congregação na distante cidade do Recife. Leutério Jaguarana, o Venerável, com seu farto bigode e os longos cabelos negros e encaracolados que o tornavam inconfundível. Os enormes óculos escuros escondiam ajudavam a dissimular a verdadeira expressão do homem.
— Elísio, os Jórgios estão vindo em seu encalço. Rosilene está desaparecida, acho que pode ter sido capturada — as palavras eram cuspidas, quase sem pausa.
— A Congregação está terminada, Jaguarana, não tenho mais vínculos com vocês. Uma mistura de arroz e milho foi arremessada no chão, junto às raízes de um enorme jacarandá. As aves corrigiram seu vôo e se atiraram enlouquecidas atrás do jantar. A resposta de Elísio soou insuportavelmente gelada. Ele ainda completou, em tom de despedida:
— Sinto muito.
Leutério respirou fundo, pensando em algum trunfo na manga para dobrar a vontade férrea do Primal. Sabia que o amigo era teimoso como um jegue.
— Você não pode se defender sozinho, precisa de seus amigos por perto.
— Eu não tenho amigos.
Leutério cuspiu no chão, num tom de irritação. Chegou a pensar em arrastar Elísio pelos braços, mas sabe que não conseguiria. Resolveu optar por uma estratégia mais sutil.
— Nós estaremos por perto, amigo. Vou chamar Cenira e Mattione, e...
— CHEGA! — os pombos voaram para bem longe ao ouvir o grito que reverberou pela praça quase deserta. O sol já começava a se pôr no horizonte, fazendo com que os dois Nefilim mergulhassem na sombra projetada pela torre única da igreja.
“Eu posso sentir seus pensamentos, Jaguarana, eu consigo captar seus planos de ficar rondando e esperar que outros venham aqui fazer o mesmo”, a frase telepática brilhou na mente perturbada de Leutério.
— Apenas me deixem em paz... — suplicou o Primal, que tornou a cobrir o chão de grãos de milho. Os pássaros criaram coragem e retornaram.
— Seu recado já foi dado, Jaguarana, pode ir embora... POR FAVOR.
Leutério percebeu que era inútil insistir. Deu meia-volta e foi embora, sem falar mais nada. “Por que você afasta todos os poucos amigos quem tem?”, pensou ele, com uma sensação mista de raiva e compaixão.
“Pare de bancar o anjo protetor, Jaguarana. SUMA!” O Venerável acelerou o passo, vencido. “E isso vale pra você também, Cenira! Não pense que que não percebi você invisível!”. Leutério pôde ver o vulto esguio e ainda etéreo de Cenira deslizando pela copa florida do jacarandá, enquanto o efeito de seu Manifesto Repouso de Haniel diluía-se aos poucos.
Quando Elísio Paulino finalmente sentiu-se confortavelmente sozinho, estirou-se no velho e enferrujado banco da praça e tirou uma soneca. As ameaças de Leutério não o assustavam. A chuva começa a parar.
Já passa da meia-noite quando Elísio abre os olhos. Basta um pouco de focalização e ele percebe que três pessoas aproximam-se sorrateiramente. Ele não consegue ler os pensamentos com clareza, mas percebe que há forças espirituais envolvidas. Ele não demonstra o menor temor. Limita-se a sentar no banco, e esperar pelos misteriosos visitantes.
Os três homens altos, trajando roupas escuras, parecem um pouco surpresos pela inexplicável calma de sua vítima. Um deles puxa uma adaga. À medida que a lâmina move-se no ar, parece desenhar uma linha de luz escarlate no ar. Elísio percebe alguns símbolos místicos gravados no metal brilhante. O seu companheiro, bem mais alto, traz um pingente cristalino em volta do pescoço. O terceiro inimigo, um anão de barbas grisalhas, entoa um cântico em grego bizantino. O Primal não consegue entender nenhuma palavra, mas sente com seus dons sobrenaturais que uma energia muito poderosa está sendo emanada. Ele sente o corpo tomado gradativamente por uma paralisia cada vez mais intensa. Tenta mover-se mais não consegue. O mais alto dos três chega mais perto. Sem tom de voz é insolente, e traz um sotaque afrancesado.
— Os solitárrios são prresas bem mais fáceis. Seus amigos não estão aqui para defendê-lo, abominação.
— O ritual vai exaurir o maná da criatura para que possamos prendê-lo — disse o homem com a adaga, pressionando a ponta afiada no peito de Elísio até que um filete de sangue começasse a escorrer. O ancião de baixa estatura permanecia concentrado em sua ladainha extática.
“Eu não estou sozinho, senhores”, os três Cavaleiros de São Jorge estavam ouvir a mesma mensagem telepática do Nefilim, que permanecia imóvel, com os olhos bem fechados. “Tenho muitos amigos e eles estão aqui”, os guerreiros jórgios se entreolharam, e começaram a notar uma algazarra de arrulhos ao seu redor.
Elísio Paulino, filho do anjo Nasrel, abriu os olhos, que brilharam com um fogo alaranjado. Neste exato momento, dúzias de olhos abriram-se por toda parte, repetindo o mesmo brilho mágico.
“Todos os dias eu os alimento com os melhores grãos...”, a voz do Primal parecia retumbar dentro das cabeças do trio de cavaleiros, que oraram pelos seus proterores.
“MAS NESTA NOITE, ELES VÃO MUDAR A DIETA”.
Uma nuvem de bicos e garras furiosas envolveu a praça, transformando as orações em gritos de agonia.
Elísio podia ser uma pessoa de poucos amigos, mas os poucos que tinha eram extraordinários.