sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Rebelião 95: Dando Milho aos Pombos


Os pombos aglomeravam-se ao redor do sujeito vestido como um frade franciscano, rodopiando como se presos a uma hélice invisível. Os grãos de milho jogados no chão de cimento despareciam muitas vezes antes de tocar no solo. O som dos arrulhos era tão alto que sufocava até o barulho do alto-falante da pracinha que anunciava vendas na loja de móveis da cidadezinha.

Elísio Paulino, 27 anos, sergipano, tinha o topo da cabeça calva coberta por um penacho avermelhado de cabelos ralos, uma barba rala, e enormes dentes amarelados. Os olhos caídos, de cor de jerimum, chamavam a atenção dos passantes, pelo seu aspecto incomum. Alheio à chuva fina que começava a molhar a rua, continuava atirando punhados de grãos aos pássaros que esvoaçavam de alegria diante do banquete.

Um homem alto e magro se aproximava, e Elísio reconheceu o velho amigo de uma extinta Congregação na distante cidade do Recife. Leutério Jaguarana, o Venerável, com seu farto bigode e os longos cabelos negros e encaracolados que o tornavam inconfundível. Os enormes óculos escuros escondiam ajudavam a dissimular a verdadeira expressão do homem.

— Elísio, os Jórgios estão vindo em seu encalço. Rosilene está desaparecida, acho que pode ter sido capturada — as palavras eram cuspidas, quase sem pausa.

— A Congregação está terminada, Jaguarana, não tenho mais vínculos com vocês. Uma mistura de arroz e milho foi arremessada no chão, junto às raízes de um enorme jacarandá. As aves corrigiram seu vôo e se atiraram enlouquecidas atrás do jantar. A resposta de Elísio soou insuportavelmente gelada. Ele ainda completou, em tom de despedida:

— Sinto muito.

Leutério respirou fundo, pensando em algum trunfo na manga para dobrar a vontade férrea do Primal. Sabia que o amigo era teimoso como um jegue.

— Você não pode se defender sozinho, precisa de seus amigos por perto.

— Eu não tenho amigos.

Leutério cuspiu no chão, num tom de irritação. Chegou a pensar em arrastar Elísio pelos braços, mas sabe que não conseguiria. Resolveu optar por uma estratégia mais sutil.

— Nós estaremos por perto, amigo. Vou chamar Cenira e Mattione, e...

— CHEGA! — os pombos voaram para bem longe ao ouvir o grito que reverberou pela praça quase deserta. O sol já começava a se pôr no horizonte, fazendo com que os dois Nefilim mergulhassem na sombra projetada pela torre única da igreja.

Eu posso sentir seus pensamentos, Jaguarana, eu consigo captar seus planos de ficar rondando e esperar que outros venham aqui fazer o mesmo”, a frase telepática brilhou na mente perturbada de Leutério.

— Apenas me deixem em paz... — suplicou o Primal, que tornou a cobrir o chão de grãos de milho. Os pássaros criaram coragem e retornaram.

— Seu recado já foi dado, Jaguarana, pode ir embora... POR FAVOR.

Leutério percebeu que era inútil insistir. Deu meia-volta e foi embora, sem falar mais nada. “Por que você afasta todos os poucos amigos quem tem?”, pensou ele, com uma sensação mista de raiva e compaixão.

Pare de bancar o anjo protetor, Jaguarana. SUMA!” O Venerável acelerou o passo, vencido. “E isso vale pra você também, Cenira! Não pense que que não percebi você invisível!”. Leutério pôde ver o vulto esguio e ainda etéreo de Cenira deslizando pela copa florida do jacarandá, enquanto o efeito de seu Manifesto Repouso de Haniel diluía-se aos poucos.

Quando Elísio Paulino finalmente sentiu-se confortavelmente sozinho, estirou-se no velho e enferrujado banco da praça e tirou uma soneca. As ameaças de Leutério não o assustavam. A chuva começa a parar.

Já passa da meia-noite quando Elísio abre os olhos. Basta um pouco de focalização e ele percebe que três pessoas aproximam-se sorrateiramente. Ele não consegue ler os pensamentos com clareza, mas percebe que há forças espirituais envolvidas. Ele não demonstra o menor temor. Limita-se a sentar no banco, e esperar pelos misteriosos visitantes.

Os três homens altos, trajando roupas escuras, parecem um pouco surpresos pela inexplicável calma de sua vítima. Um deles puxa uma adaga. À medida que a lâmina move-se no ar, parece desenhar uma linha de luz escarlate no ar. Elísio percebe alguns símbolos místicos gravados no metal brilhante. O seu companheiro, bem mais alto, traz um pingente cristalino em volta do pescoço. O terceiro inimigo, um anão de barbas grisalhas, entoa um cântico em grego bizantino. O Primal não consegue entender nenhuma palavra, mas sente com seus dons sobrenaturais que uma energia muito poderosa está sendo emanada. Ele sente o corpo tomado gradativamente por uma paralisia cada vez mais intensa. Tenta mover-se mais não consegue. O mais alto dos três chega mais perto. Sem tom de voz é insolente, e traz um sotaque afrancesado.

— Os solitárrios são prresas bem mais fáceis. Seus amigos não estão aqui para defendê-lo, abominação.

— O ritual vai exaurir o maná da criatura para que possamos prendê-lo — disse o homem com a adaga, pressionando a ponta afiada no peito de Elísio até que um filete de sangue começasse a escorrer. O ancião de baixa estatura permanecia concentrado em sua ladainha extática.

Eu não estou sozinho, senhores”, os três Cavaleiros de São Jorge estavam ouvir a mesma mensagem telepática do Nefilim, que permanecia imóvel, com os olhos bem fechados. “Tenho muitos amigos e eles estão aqui”, os guerreiros jórgios se entreolharam, e começaram a notar uma algazarra de arrulhos ao seu redor.

Elísio Paulino, filho do anjo Nasrel, abriu os olhos, que brilharam com um fogo alaranjado. Neste exato momento, dúzias de olhos abriram-se por toda parte, repetindo o mesmo brilho mágico.

Todos os dias eu os alimento com os melhores grãos...”, a voz do Primal parecia retumbar dentro das cabeças do trio de cavaleiros, que oraram pelos seus proterores.

MAS NESTA NOITE, ELES VÃO MUDAR A DIETA”.

Uma nuvem de bicos e garras furiosas envolveu a praça, transformando as orações em gritos de agonia.

Elísio podia ser uma pessoa de poucos amigos, mas os poucos que tinha eram extraordinários.

AMIGOS DE LONGA DATA foi escrito por Simões Lopes


terça-feira, 22 de setembro de 2009

Rebelião 94: Amigos de Longa Data


A Catedral de Nossa Senhora Madre de Deus estava vazia, como de costume naquela hora do dia. Umas poucas pessoas rezavam em silêncio, e um trio de senhoras acendia velas do lado de fora. Um homem impecavelmente barbeado e de têmporas raspadas, com uma enorme cicatriz na metade esquerda do rosto escuro, olhava fixamente para a imagem do Cristo crucificado no altar, enquanto esperava por alguém. Já fazia mais de uma hora que tinha chegado, e seu amigo de longa data ainda não aparecera.

— Chico!!! — gritou uma voz possante, vinda de fora da Igreja.

—Chico!!!! — a voz de trovão era insistente.

Antes que os paroquianos começassem a reclamar do súbito importúnio, "Chico" decidiu ir ao encontro daquela voz que lhe soava cada vez mais familiar.

Um homem baixo mas incrivelmente robusto, com a barba espessa de um castanho muito escuro e olhos azul-celeste, acenava com os braços musculosos e um tom de alegria quase frenética no semblante.

— Chico, há quanto tempo! Você não sabe como foi difícil localizá-lo, guerreiro!

— Ildebrando? — disse Francisco Xavier, em tom de reconhecimento.

— Claro que sim... Quem mais poderia ser?

Enquanto recebia um abraço forte o bastante para fraturar costelas, o capitão Francisco Xavier da Luz se lembrou de quando conhecera Ildebrando, há mais de um século e meio atrás, nos dias sangrentos dos Farrapos. Ildebrando Carraro acabara de chegar da Itália, acompanhando Giuseppe Garibaldi, em busca de emoções fortes e combates sem fim.

— Por onde andas? — perguntou Francisco, trocando a alegria por um ar mais compenetrado.

— Antes de tudo, há muito que não sou o "Ildebrando". Hoje em dia ando sendo chamado de Márcio Martins, ou Alex Monte, dependendo da situação.

— Situação? — estranhou Francisco.

— Isto não vem ao caso, velho amigo... Para você, eu continuo sendo o mesmo Ildebrando de sempre.

A conversa com o amigo começava a provocar um bombardeio de memórias na mente de Francisco. Ele se viu novamente em 1840, quando era Chico Luz, o melhor dos Lanceiros Negros do coronel Teixeira Nunes, e lutava ferozmente ao lado do rebelde florentino (acusado às vezes de ser um anarquista enrustido) Ildebrando Carraro. As tropas imperiais perderam muitas vidas pelas armas daqueles dois homens. Chico e Carraro eram Triunfantes, e embora Chico já fosse bem velho para os padrões dos mortais, com 172 anos, seu colega italiano era bem mais antigo, e nem mesmo o ex-Lanceiro sabia ao certo quanto anos ele tinha na verdade. Deveria já passar dos seiscentos anos, o que era bastante até mesmo para um Triunfante. Um sinal de que sua missão em Adamah estava longe de terminar, ou que seu prazer em guerrear conseguia se traduzir em uma vitalidade inesgotável.

— Faz muito tempo, heim? — disse Ildebrando, evitando arriscar um palpite.

— Desde a Revolução Constitucionalista de 32... — completou Chico.

— É. Alistei-me na década seguinte e fui lutar na Europa, você também?

— Fui, atuei como mercenário, lutei em ambos os lados.

— Com teu passado anarquista e carbonário, não imaginaria tu ao lado dos fascistas...

— O Vaticano estava com eles!

— Não oficialmente!

— Estar do lado “errado” pode render uma boa gama de ótimos inimigos. Há muito tempo que não me prendo a ideais ou bandeiras. Fui à guerra pelo prazer de lutar, sentir o gosto de escapar da sombra da Morte a cada instante.

— Enquanto isso, acabei engajando-me em uma nova identidade como policial, e graças a isso, ganhei esta cicatriz.

— Só voltei ao Brasil para me juntar aos grupos armados no Araguaia. Ajudei a desencarnar muitos soldados e oficiais, mas hoje não caço mais humanos — explicou Ildebrando, num tom quase professoral.

— Eu estou no BOPE, e continuo "caçando humanos", e diversas vezes o “caçador” quase tornou-se a "caça" — pigarreou Francisco.

— Na Europa conheci alguns Triunfantes que viraram justiceiros, caçando criminosos sem distintivo ou farda. Porque se ligar a uma instituição? Não se sente tolhido pelas “leis” que jura defender?

— Claro que sinto. E são justamente estas limitações que tornam minhas guerras mais emocionantes e arriscadas.

— Entendo...

— Por que quiseste marcar este encontro?

— Quero fazer uma proposta... digamos.... de "emprego"...

— Ahn?

— Como já disse, não caço mais humanos. São presas fáceis demais. Estou caçando Nefilim, não para destruí-los, mas para capturá-los. É tão difícil que se torna uma proeza de grande renome.

— Sucessos?

— Alguns.

— Derrotas?

Ildebrando não falou nada. Limitou-se a mostrar a mão esquerda espalmada. Dois dedos tinham suas pontas mutiladas. Sorriu, escancarando três dentes de ouro. Desabotoou um pouco a camisa, mostrando uma enorme marca de queimadura no peito, meio encoberta pelo tecido.

Chico Luz coçou a cabeça, e sentiu o celular o tocando. Não atendeu.
— Os malditos são quase invencíveis, Chico. Tu não imaginas do que são capazes... Aceita o desafio?

— Sempre em busca do triunfo mais improvável, velho amigo. Assim vivemos e assim morreremos...

O aperto de mão foi forte e caloroso.

— Pode contar com o velho Chico Luz!

Ildebrando sorriu.

— O que tu fazes com os Nefilim após capturados?

O sorriso sumiu da face barbuda.

— Tudo a seu tempo, meu amigo. Tudo a seu tempo. Primeiro vamos comemorar nossa longa data. É uma pena que tenhamos mais o vinho forte do Bar do Figueiró.

— O Figueiró morreu em 1892. Se tivermos sorte, os descendentes talvez tenham mantido o bar.

— Sorte é o que jamais falta a um Triunfante, amigo! — soltou uma gargalhada, que assustou as colegiais que atravessavam a rua.

— Com certeza, Ildebrando, com certeza. Se lembra em qual rua ficava?

O sorriso decorado com dentes de ouro indicava que sim.

Ele se lembrava.


AMIGOS DE LONGA DATA foi escrito por Simões Lopes

Voltar para o Universo Germinante