O som do fósforo sendo riscado foi seguido pelo despontar de uma chama amarelada, débil demais para permanecer acesa. A segunda tentativa foi mais eficiente, e o clarão foi forte o bastante para verificar como eram as marcas no portão de madeira.
Após observar aquilo com muito cuidado, a japonesa de estatura baixa e pernas grossas aproveitou a mesma chama para acender um cigarro. Seus cabelos estavam tingidos de um cor-de-rosa pastel, um traço peculiar que dera origem ao apelido pelo qual ficara conhecida, ou seja, “Algodão-Doce”. Tizuko Yamamura, nascida em 1945, aparentava ter pouco mais de 20 anos de idade, e vestia uma jaqueta sem mangas por cima de uma camiseta preta. Puxou um bloquinho encardido de um dos bolsos e começou a anotar alguns pensamentos. Segurava numa das mãos um pingente de cristal azulado, com caracteres hebraicos gravados nas faces do brilhante.
Os indícios eram fortes e incontestáveis: algo de sobrenatural estava ocorrendo naquele bairro, especialmente naquela casa abandonada. As inscrições no Cristal Azul de Zorobabel refulgiam com um leve brilho amarelado, indicando a presença de poderes infernais ativos nas redondezas. A madeira velha porém resistente tinha sido feita em pedaços por alguém de força muito acima do nível humano. Três pessoas já eram dadas como desaparecidas, e duas outras haviam sido encontradas mortas nesta rua. Um Acólito local — Lance Merman era seu nome — percebeu que havia algo muito estranho ocorrendo e mandou um e-mail para Gargântua, que imediatamente localizou Algodão-Doce, uma das melhores pesquisadores de toda a Linhagem. Especialista em investigar eventos paranormais e confrontar ameaças de todos os tipos, Tizuko tomou rapidamente um avião e seguiu de Tóquio para Saskatchewan, no Canadá. Com as indicações de Lance, a japonesa de cabelo rosa não teve nenhuma dificuldade em localizar a tal rua “maldita”.
Lance, aliás “Rastejante”, como era mais conhecido, insistiu em acompanhar a investigação de Algodão-Doce, mas Tizuko sempre preferiu agir por conta própria, e dispensou qualquer auxílio. Cá estava ela, parada em frente ao prédio abandonado, sem se importar com a geada cobria as ervas daninhas que persistiam em crescer no chão estéril.
Algodão-Doce decidiu acionar a sua Prontidão, a fim de detectar a presença de alguma entidade, mas o ataque inesperado foi tão rápido que ela nem precisou de seus sentidos místicos para entender o que acontecia. Uma escuridão absoluta envolveu-a por completo, mergulhando-a em trevas tão compactas que pareciam estar sólidas. Tal artifício não seria capaz de deter uma Acólita tão experiente quanto ela, e com a Centelha Ofuscante, ela conseguiu dissipar parte de seu negro envoltório. Quando voltou a enxergar, percebeu que duas baratas enormes caminhavam por sua perna.
O horror que sentia aos insetos fez com que acabasse tropeçando e caindo num buraco do assoalho. As baratas agora não eram duas, mais algumas dúzias, e cobriam seu corpo com uma avidez nojenta. A legião de insetos parecia estar multiplicando-se à uma velocidade impossível, o bastante para ela intuir a sua origem: Sussuro de Samael, um manifesto abissal característico dos Nefilim, da mesma forma que a Escuridão de Tehom.
Antes que Algodão-Doce conseguisse elaborar mais algum pensamento claro, uma nova onda de trevas invadiu o cômodo vazio, e junto com ela, algo rugindo e gritando. A japonesa foi arremessada com toda força contra a parede, e caiu no chão sem respirar. Sentiu algumas costelas quebradas, e tentou conjurar uma Espada de Gabriel, mas as baratas continuavam engolfando seu corpo num vagalhão de pernas e cascas mal-cheirosas. O medo tomou conta da corajosa Nefilim, que sentiu sua fobia a insetos crescer num rompante asqueroso. A conjuração da arma celeste vacilou, e sentiu garras monstruosas rasgando seu peito, e arrancando parte de seu braço.
Três formas espectrais ergueram-se do chão, bruxuleando em horríveis semblantes disformes. Três pessoas mutiladas estavam à sua frente, gritando palavras de agourentas.
“Ele vai matá-lo como matou a nós!”, gritava um dos fantasmas, enquanto o outro segurava a própria cabeça decepada com uma das mãos esquálidas.
Fobia e Corporificar Fantasma. Tizuko detectou imediatamente mais dois poderes infernais. Quem seria esse Nefilim?
As trevas sumiram por um instante, e ela pôde ver claramente o seu oponente, o que provocou um grito de horror.
Um homem enorme e obeso, inteiramente nu, cambaleava com os ombros arqueados, e enormes braços terminando em mãos grosseiras com unhas desmesuradamente grandes. O corpo estava coberto por enormes feridas e por uma espessa camada de pêlos ruivos, que juntavam os cabelos e a barba numa formação tão compacta que quase recobria seus enormes olhos azuis.
— Não, você não! — gritou Tizuko, chorando. — Eminência?!!!
Aquele monstro disforme que estava li parado, babando e grunhindo como se fosse um animal irracional, já fora um Acólito no passado. Everett Walker era seu nome de batismo, e na Linhagem foi conhecido como Eminência devido à sua imponência e cultura. Era simpático, bem-humorado e caridoso. Junto com Algodão-Doce e Oedipus, fora tutelado pelo Pianista, na própria cidadela secreta de Heliópolis. Uma seqüência de acontecimentos infelizes levara o atormentado Everett aos limites de seu equilíbrio, e ele foi o primeiro Acólito a ceder às tentações do Sheol, tornando-se um diavolo, uma besta irracional mantendo os poderes de um Nefilim. Algodão-Doce já enfrentara os mais diversos tipos de inimigos em todas as partes do mundo, mas jamais tinha lidado com isso.
Nada era pior que enfrentar um próprio ex-amigo.
A criatura que já foi Eminência soltou um grito feroz e golpeou sua vítima, com força suficiente para partir as placas do assoalho. Quando preparava para saborear o próprio triunfo, percebeu que Algodão-Doce havia desaparecido por completo.
A decepção o fez guinchar mais uma vez, com a baba escorrendo pelos cantos da boca.
No segundo andar do prédio, um vulto começou a tomar forma em pleno vazio, solidificando-se rapidamente. Era a Nefilim que voltava à sua forma real. O manifesto celestial Dispersão do Silfo salvara a sua vida mais uma vez. Sua preocupação imediata era concentrar-se para acelerar a cicatrização dos ferimentos, e fez um torniquete para deter o sangramento do braço decepado. Sua situação tornava-se crítica. Foi quando lembrou-se do que estudara uma vez nas anotações da Polaca Voadora: os diavoli tornam-se seres tão caóticos e incontroláveis que não podem ser mandados sozinhos de volta a Adamah. Se havia um Nefilim abissal, devia haver algum humano responsável pela invocação servindo de guia para o demônio.
Ela podia ouvir seu ex-amigo gritando e esmurrando no andar de baixo, não podia mais perder tempo. Ativando sua Gnose — o que fez com certa dificuldade, pois os ferimentos prejudicavam sua concentração —, Algodão-Doce conseguiu detectar linhas de força mística brilhando de forma sinistra. Ela podia perceber um elo de energia infernal atravessando a casa, ligando o Diavolo a alguém — algum bruxo, sem dúvida — em outro cômodo. A ação estava clara em sua mente.
Mais uma vez vaporizou seu corpo e seguiu rapidamente até a direção de onde vinha a aura maligna. Materializando-se com cautela, ela percebeu o homem de feições esquálidas e cabelo cor de palha que sentava-se num sofá mofado. A Gnose tornava visível a silhueta espectral de uma criatura horrenda de chifres espiralados pairando e envolvendo o corpo do feiticeiro. Eminência estava agachado no chão, coberto de suor e sangue coagulado, como se fosse uma espécie de cão de guarda.
O Diavolo virou a cabeça rapidamente, e retesou os músculos, quando viu a moça oriental brandindo uma espada de luz em sua direção. O salto foi perfeito e ele usou seu próprio corpo como um aríete esmagando-a junto à parede com barulho abafado. A moça caiu com o crânio esmagado no chão, o que fez a fera humana urrar de júbilo.
— Eu aprendi com você, Eminência — o monstro foi surpreendido pela voz da mulher subitamente aparecendo na direção oposta. A seus pés a imagem do cadáver de Tizuko desvanecia-se no ar, e quando ele virou o rosto. Pôde ver o bruxo morto, caído com os olhos revirados aos pés da Acólita. Nos ombros da japonesa brilhavam duas enormes asas de luz, visíveis para os olhos inumanos do Diavolo.
O nefilim insano quis atacá-la, mas uma grande chama envolveu seus pés,e ele sentia seu corpo queimando em agonia. Os olhos de Algodão-Doce brilhavam, e ela percebia claramente o que estava acontecendo. Sem a “âncora” humana do feiticeiro, o Diavolo não podia permanecer na Terra, e estava retornando ao Sheol.
— Foi você quem me ensinou a usar o dom da Consciência Vazia, querido mestre — disse a mulher, aos prantos. Infelizmente eu não estou forte o bastante para matá-lo agora, mas acho que voltaremos a nos encontrar.
Nos pontos onde o Diavolo pisava, o chão parecia derreter e transformar-se num plasma efervescente que envolvia o seu corpo, removendo-o dolorosamente da dimensão terrestre.
— Como eu lutei para salvar sua alma, Eminência! O quanto eu batalhei para evitar que você sucumbisse à Queda!
Quando as chamas envolveram por completo a atormentada criatura bestial, ele pareceu balbuciar: — ULGDN...DUSSSSS
Tizuko Yamamura, vulgo Algodão-Doce, deixou a casa abandonada, satisfeita por ter derrotado mais um desafio. Estava exausta e ferida, e precisaria de muito tempo para regenerar o corpo enfermo.
Em sua mente um pequeno som, como o tinido de um minúsculo sino ressoou. Ela não deu importância.
Era doloroso confrontar um ente querido que seguira a trilha da Queda.
Mas sem perceber, ao descuidar-se do próprio equilíbrio para enfrentar tão difícil missão, ela dera o primeiro passo, ainda que na direção oposta.
A trilha da Ascensão.
Retorne ao Universo Germinante
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