Barbudo estava sentado, contemplando as estrelas, quando tudo começou. Ele se sentia triste e melancólico, porque as luzes da cidade ofuscavam o céu. No interior, a colcha escura do firmamento ficava salpicada de pequenos furos luminosos; aqui, uma claridade baça dava ao céu noturno um tom doentio e fantasmagórico. Foi quando ele a viu — era uma menina magra e suja, com olhos brilhantes, intensos. Ela sorri, mostrando dentes amarelos, e baixa uma das alças de seu top, deixando um seio à mostra. É só um pedaço de carne que mal cobre seus ossos, mas por algum motivo isso o deixa muito excitado. Mas alguma coisa está errada, terrivelmente errada. Ela passa uma língua escura sobre os dentes, como se isso devesse ser algo bem sensual. Aí Barbudo entende: feromônios. Seu faro sensível conseguiu captar conscientemente o que a maioria dos homens de barro só percebem a nível subconsciente, e por isso acabam caindo na armadilha — estes não são feromônios humanos. Esta é uma loba em pele de cordeiro. Ela caminha na sua direção, gingando seus quadris ossudos, quando ele se levanta em guarda, totalmente em prontidão. A coisa pára, com um ricto de ódio no olhar. De repente, sua pele começa a esticar como borracha, até que se rompe em alguns pontos, deixando tufos grossos e hirsutos de pêlos aparecerem. Antes que o nefilim possa reagir, o Versipellis ataca, o arremessando a dois metros de distância — suas costas batem num poste baixo de metal, o fazendo envergar. A lâmpada cai no chão com um estouro barulhento, e nas choupanas próximas os mortais apagam as luzes. Provavelmente estarão se escondendo em baixo de suas camas — o bom senso lhes diz que é apenas mais um tiroteio entre traficantes, mas seu instinto sussurra em seus ouvidos que são titãs, deuses monstruosos se enfrentando. A mulher-coisa começou uma risada estridente como o ganido de uma hiena, mas parou quando viu Barbudo se levantar, as costelas quebradas voltando para o lugar, os olhos brilhando freneticamente.
Existe em seu peito uma cavidade escuro e rija, do tamanho de um punho, dentro da qual mora algo — é a coisa mais próxima de Deus que Barbudo conhece. Ela é como as tempestades que derrubam as árvores e limpam o ar; é como a loba que luta até a morte por seus filhotes, ou como o tigre saltando sobre o fogo. É lava e tremor, e corre por suas veias, vitalizando seu corpo, tornando-o forte. O miserável homem cresce, desdobra-se: seus músculos estalam por baixo de seu couro lustroso e brilhante, enquanto chifres de alvíssimo marfim brotam de sua cabeça, curvilíneos e pontiagudos. Seus pés rompem os sapatos rotos, e são cascos fortes e pesados. Uma crina negra desce de sua cabeça e une-se à sua barba lanzuda. A besta rosna incrédula — a fera ergue-se e a encara. Mais uma vez, o Versipellis investe contra Barbudo, mas encontra seus chifres ao invés de seu peito. Num movimento rápido a besta é arremessada para cima, dois furos profundos, um em sua garganta, outro em seu ombro. Antes que ela toque o chão, a fera invoca Tenacidade, centuplicando sua já prodigiosa força. Quando ela aterriza, rachando o asfalto com seu peso medonho, a fera já está sobre ela, com punhos rijos como bolas de demolição esmagando seus ossos. Seus cascos arrancam pele e fraturam membros — a fera espuma e ruge, castigando a besta antinatural. Mais uma investida e seus chifres a arremessam a meio quarteirão de distância. Ele observa sua oponente descrever um arco longo e demorado contra o céu, e quando ouve o baque surdo de sua queda, salta com os punhos cerrados. A coisa tentava levantar-se quando ele a atingiu, cascos e punhos de uma só vez, e uma gofada de sangue quente e viscoso manchando seu pêlo lustroso. A besta se contorce, como se algo estivesse saindo de dentro dela, até que um par de mãos abre caminho através de seu peito. A menina magra e suja se arrasta, alquebrada e ferida até a quase morte, para fora de seu corpo sobrenatural.
Tão rápida quanto surgiu, a fúria de Barbudo se vai, porque assim são as coisas na natureza — não há excessos. Ela veio quando era necessária, e partiu quando não precisava mais dela.
"E… eu era… um monstro tão bonito… tão feroz…" — sua voz é quase um sibilo chiado através de uma glote partida.
"Não havia beleza. Ferocidade não é crueldade. Você estava doente". O olhar da moça pareceu então muito triste e cansado, como se finalmente tivesse se dado conta de que adorava a uma coisa falsa e suja. Contemplando aqueles olhos (baços como o céu urbano) Barbudo entendeu o que os Acólitos falam da humanidade. A brevidade de suas vidas cheias de dúvidas, o terrível sentimento de solidão, de abandono, as perguntas lançadas contra um cadáver de louça pendente num madeiro, e as respostas que nunca vinham... tantas oportunidades de errar, e tantas pedras no caminho. Ele sentiu uma profunda piedade por aquela raça de perdidos, com todos os motivos do mundo para cair.
"Há muito... tempo... não articulo... palavras..."
"Gostaria que eu a tirasse dessa situação?"
"Não... não. Deixe-me... aproveitar a claridade... enquanto... as sombras..."
Ela nunca chegou a terminar esta frase, porque num gorgolejo de sangue e dor ela sufocou suas últimas palavras. Uma coisa escura como breu escorreu de seu corpo para as sombras. Barbudo sabia o que era — os Visionários e Precursores os chamavam Damnati, danados, feras abissais que tomam os vivos. Numa gargalhada rouquenha o monstro voltou para o inferno, e Barbudo sabia que não havia ido só.
Os Veneráveis dizem que algo dos humanos sobrevive à morte de seu corpo, e esse algo é imortal de uma maneira que mesmo os nefilim não são. Barbudo não sabia se era esse algo que o mastim infernal tinha arrastado consigo para o Sheol, mas enfim, não importava. Se isso era realmente imortal, mesmo os piores tormentos do Tártaro seriam apenas um momento, um pequeno instante, numa existência que se estenderia ao infinito. Esse pensamento é acolhido por sua mente com grande conforto — por baixo de toda dor e tristeza, toda alegria, paixão e júbilo, a natureza se mantinha em paz.
Tudo estava bem.
Barbudo olha novamente para as ruas, e lhe ocorre que realmente a Natureza é muito sábia. Talvez os humanos não tenham feito mais que trazer as estrelas, que estavam tão distantes, para mais perto, onde poderiam ser contempladas. Sujo com o sangue de uma abominação, ele se senta no topo de uma comunidade de miseráveis e esfomeados, e observa o lençol de luzes que se estende por toda cidade, coriscando suavemente como as estrelas escondidas no céu.
É tudo tão lindo, tão empolgante.
No meio do clamor da luta pela vida, da morte e da violência, Barbudo encontrou a única coisa que está em silêncio no meio de um universo louco de som e luz, em constante conflito e mudança.
E acariciando suavemente este sentimento em seu peito, ele está em paz.
Retornar ao Universo Germinante
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